RESUMO: O presente trabalho analisará os principais princípios da interpretação constitucional, fundamentais para a fixação da premissa de que o texto da Constituição da República não se confunde com as normas constitucionais dele extraídas. Com vistas a esta conclusão, o artigo se inicia com a explanação dos métodos clássicos de interpretação de normas jurídicas, posteriormente aborda os princípios específicos da interpretação constitucional e, por fim, conclui diferenciando texto de norma, bem como a importância desta distinção para a mutação constitucional. O tema é de fundamental relevância para dar maior eficácia às normas constitucionais e compreender como o direito se concretiza.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Hermenêutica constitucional. Princípios. Métodos de interpretação. Mutação constitucional.
ÍNDICE: INTRODUÇÃO. DESENVOLVIMENTO. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
O presente artigo irá abordar um tema que ainda provoca bastante debate no seio da comunidade jurídica: a diferença entre o texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88 e as normas que dele podem ser extraídas.
Como é notório, a sociedade e os valores que a informam estão em constante mudança, muito além do que o direito consegue acompanhar. Diante disso, parcela expressiva da doutrina e das Cortes Constitucionais, tanto no Brasil quanto em outros países, consideram ser possível que, mesmo sem mudança formal do texto constitucional, os comandos jurídicos exteriorizados sejam alterados.
Em um primeiro momento serão tratados dos métodos e princípios que informam a interpretação do direito e, em especial, da CRFB/88, como forma de perceber os instrumentos que possibilitam o processo de concretização constitucional.
Em um segundo momento, objetiva-se discorrer a respeito da atividade conduzida pelos intérpretes da Constituição, em especial sua expressão através da mutação constitucional, que possibilita uma maior flexibilidade à CRFB/88.
Por fim, o artigo é concluído com a exposição, de forma sintética, de como ocorre o surgimento da norma constitucional.
DESENVOLVIMENTO
O conceito de norma jurídica é polêmico em sede doutrinária. O grande civilista Francisco Amaral, citando Miguel Reale, defende que a norma jurídica deveria ser considerada como uma regra de comportamento socialmente garantida[1].
Objetivando que estas regras de comportamento tenham eficácia social é preciso que sejam adequadamente interpretadas pelos operadores do direito. Novamente recorrendo ao Professor Francisco Amaral, pode-se definir a atividade de interpretação como “descobrir o sentido e o alcance da norma jurídica”[2].
Os métodos clássicos de interpretação das normas infraconstitucionais são o gramatical, o histórico, o sistemático, o lógico e o teleológico[3].
O método gramatical é originário da Escola da Exegese, tendo por base a utilização das normas linguísticas, compreendendo que o texto legal é o início e o fim da atividade de interpretação.
O método histórico valoriza os antecedentes da criação da norma, assim como a chamada mens legislatoris, ou seja, as razões que conduziram os representantes do povo, em um dado momento histórico, a editar o texto submetido para análise.
O método sistemático, por sua vez, busca interpretar conjuntamente o objeto da atividade do exegeta e as demais prescrições do ordenamento jurídico, buscando conferir uma maior coerência ao ordenamento jurídico.
O método lógico se vale da, nas palavras de Stolze[4], “utilização de raciocínios lógicos (dedutivos ou indutivos) para a análise metódica da norma em toda a sua extensão, desvendando o seu sentido e alcance”.
Por fim, o método teleológico interpreta objetivando sempre a realização dos fins pretendidos pelo texto legal, de forma que considerada adequada será a interpretação que der maior efetividade aos objetivos da norma.
Os anteriormente citados mecanismos de interpretação são considerados pela doutrina como insuficientes para a interpretação da Constituição. Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco explicam o porquê:
Nenhum deles propicia um critério seguro para a fixação de algum exato sentido da norma constitucional. Nenhum deles isenta o intérprete de perplexidade. Na realidade, são frequentes os casos em que a “utilização sucessiva de todos os métodos não redunda em um sentido unívoco”.[5]
Como forma de facilitar a atividade de interpretação da Constituição, necessariamente distinta da realização em relação as normas infraconstitucionais, Alexandre de Moraes lista os seguintes princípios[6]:
1. Unidade;
2. Efeito integrador;
3. Máxima efetividade;
4. Conformidade funcional;
5. Concordância prática ou harmonização;
6. Força normativa da Constituição.
O princípio da unidade “postula que não se considere uma norma da Constituição fora do sistema que se integra, dessa forma, evitam-se contradições entre as normas constitucionais”[7].
O princípio do efeito integrador preconiza que “seja dada a maior primazia aos critérios favorecedores da integração política e social, bem como reforço da unidade política”[8].
O princípio da máxima efetividade defende que “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê” [9], ou seja, o intérprete deve sempre objetivar valorizar os objetivos da Constituição na sua atividade interpretativa.
O princípio da conformidade funcional veda que se chegue a uma conclusão que “subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido pelo legislador constituinte originário”[10].
O princípio da concordância prática “recomenda que o alcance das normas seja comprimido até que se encontre o ponto de ajuste de cada qual segundo a importância que eles possuem em cada caso concreto”[11].
Por fim, o princípio da força normativa da Constituição preconiza que:
seja conferida prevalência aos pontos de vista que se tornem a norma constitucional mais afeita aos condicionamentos históricos do momento, garantindo-lhe interesse atual e, com isso, obtendo-se ‘máxima eficácia, sob as circunstâncias de cada caso. [12]
O Ministro Gilmar Mendes, contudo, alerta que estes princípios não são uma panaceia, ao contrário, também envolvem riscos, como se depreende do excerto abaixo transcrito:
Repara-se que a invocação desses princípios pode levar a resultados não unívocos. O postulado da máxima eficácia de norma de direito fundamental pode resultar em uma solução desaconselhada pelo princípio da conformidade funcional, por exemplo. Esses princípios não devem ser vistos como elementos de uma fórmula capaz de produzir soluções necessárias e absolutamente persuasivas. Tampouco há de se falar em hierarquia entre eles. Esses princípios da interpretação constitucional apenas auxiliam a que argumentos jurídicos se desenvolvam em um contexto de maior racionalidade, favorecendo algum controle sobre o processo de concretização das normas constitucionais, com proveito, igualmente, para o valor segurança jurídica. [13]
A utilização dos princípios acima explanados serve como exemplo da força do chamado constitucionalismo, devendo este ser entendido, para fins didáticos, como a ideia de que a Constituição possui força normativa apta a influenciar todos os ramos do direito.
Nem sempre foi assim. Durante muito tempo adotou-se o método clássico de interpretação das normas constitucionais, pelo qual a interpretação destas normas deveria ser conduzida pelos mesmos mecanismos interpretativos das demais.
Em contraposição a este método, surgiram, inicialmente, os métodos científico-espiritual – que preconizava que a interpretação da Constituição deveria se guiar pelos valores da sociedade no qual ela está inserida – e o método da tópica – de cunho utilitarista, pelo qual a interpretação deveria ser conduzida sempre a obter a melhor solução no caso concreto, ou seja, há uma verdadeira prevalência do problema concreto sobre as disposições constitucionais.
Muito similar ao método da tópica é o método hermenêutico-concretizador, porém neste, “diferentemente do método da tópica, o primado não é do problema, mas do texto constitucional”[14]. Neste método o interprete não pode desdobrar dos parâmetros constitucionais, o que fortalece a posição da Constituição como principal norma do ordenamento jurídico pátrio.
CONCLUSÃO
Em consonância com os pontos abordados, é possível afirmar que, pela aplicação dos princípios de interpretação constitucional e conforme o método hermenêutico-concretizador, o texto da Constituição nem sempre será igual a norma constitucional, ao contrário: por vezes eles serão destoantes.
Conforme leciona Ingo Sarlet, interpretação e concretização não se confundem:
A interpretação constitucional não se confunde, a despeito da relação que se estabelece entre os fenômenos, com a assim chamada concretização constitucional (concretização da constituição), que consiste na construção de uma norma jurídica mediante um processo de densificação de princípios e regras constitucionais, a partir do texto (enunciado) para uma norma jurídica concreta, processo que se complementa apenas quando da “descoberta” da norma e decisão que dá solução aos casos (problemas) jurídico-constitucionais.[15]
Logo, da lição do professor Ingo Sarlet acima destacada é possível concluir que a norma é fruto da interpretação da norma concretizada, sendo por isso que se afirma não existir norma jurídica senão norma jurídica interpretada[16]
Esta noção é fundamental para compreender a chamada mutação constitucional, posto que, pela mudança do contexto em que a Constituição está inserida as normas constitucionais podem se alterar ainda que o texto permaneça o mesmo.
A mutação constitucional é definida como a alteração da constitucional pela via informal[17], sem que ocorra sua alteração pelos rígidos mecanismos previstos na CRFB/88.
Novamente recorre-se ao Professor Ingo Sarlet que, em brilhante passagem de sua obra, correlaciona a mutação constitucional a distinção entre texto e norma constitucional:
Tendo em conta que a mutação constitucional diz respeito essencialmente ao hiato entre texto normativo e realidade (mas também guarda conexão com a distinção entre texto e norma) e a mudança de sentido de uma norma jurídica, é possível perceber que a mudança de sentido de uma norma jurídica não é um problema exclusivamente constitucional, pois o déficit de sinergia de um texto normativo com a realidade fática que busca captar e regular não se revela apenas ao nível do direito constitucional, tratando-se, pelo contrário, de um problema científico do direito como um todo, embora, no caso da mutação constitucional, tenha alcançado uma dimensão particularmente relevante e dotada de aspectos peculiares em função da especial posição hierárquica e função da constituição na ordem jurídica.”[18]
Conclui-se o presente artigo, em que se buscou listar os principais instrumentos da interpretação constitucional, sejam os seus princípios específicos ou seus métodos interpretativos, para afirmar-se, com certeza, que a distinção entre texto e norma constitucional existe e produz importantes impactos no meio jurídico, em especial através da chamada mutação constitucional, que confere uma maior flexibilidade e dinamicidade a ordem constitucional vigente.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 3. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.
MENDES, Gilmar. GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang. MITIDIERO, Daniel. MARINONI, Guilherme. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história, métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
NOTAS:
[1] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 99.
[2] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 120.
[3] GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 1, parte geral. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 109
[4] Idem.
[5] MENDES, Gilmar. GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014 p. 84/85.
[6] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p.16.
[7] MENDES, Gilmar. GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014 p. 94.
[8] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 16.
[9] MENDES, Gilmar. GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014 p. 96.
[10] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 16.
[11] MENDES, Gilmar. GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 96.
[12] Idem.
[13] Idem, p. 97.
[14] Idem, p. 92.
[15] SARLET, Ingo Wolfgang. MITIDIERO, Daniel. MARINONI, Guilherme. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, P. 214/215.
[16] Idem, p. 215.
[17] SOUZA NETO, Cláudio Pereira. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história, métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, P. 339.
[18] Idem, p. 161.
Advogado. Pós-graduado em Direito do Estado e da Regulação na FGV-RJ (2016). Graduado em Direito pela UFRJ (2015).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TOMAZ, Dante Silva. Intepretação constitucional e concretização: princípios, métodos e distinção entre texto e norma Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 set 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50664/intepretacao-constitucional-e-concretizacao-principios-metodos-e-distincao-entre-texto-e-norma. Acesso em: 08 nov 2024.
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