Resumo: O artigo em questão visa promover o debate acerca dos Direitos Humanos, o acesso à Cultura e a sua importância nos movimentos sociais. Para tanto será tomado como ponto de referência o episódio em que ocorreu a proibição referente à realização do show de Caetano Veloso no dia 30 de outubro de 2017 que seria realizado na ocupação do MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, em São Bernardo do Campo. Dessa forma, será exposta a Cultura como um direito e como instrumento de identificação social. Iniciando por um breve relato do fato acontecido, permeando pela descrição quanto à presença da Cultura como direito inerente à pessoa humana e sua positivação na legislação Brasileira e avaliando a cultura como instrumento de afirmação de cidadania e sua atuação dentro da sociedade brasileira. Para tanto será utilizado informações constantes na imprensa local além de referencial teórico pertinente.
Palavras chaves: Cultura. Movimentos sociais. Direitos humanos
Sumário: Introdução. A cultura como um direito. A Cultura na Sociedade . Conclusão.
No dia 30 de outubro o Estado, através da 2ª Vara da Fazenda Pública de São Bernardo do Campo do estado de São Paulo, ratificou o que há muito já sabia-se: estamos em uma era de negação de direitos fundamentais à pessoa humana motivada por interesses políticos! Através de uma decisão judicial em atendimento a um pedido do Ministério Público, a referida vara proibiu a realização de um show de Caetano Veloso que ocorreria na ocupação Povo sem Medo em São Bernardo do Campo. Tal realização se daria como forma de incentivo aos ocupantes visto que os mesmos, no dia posterior, realizaram uma marcha de 27 km do acampamento onde se encontram até o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo, com o intuito de pressionar os legitimados a desapropriarem a área onde estão acampados e transformar o espaço com construção de moradia popular.
O MTST, Movimento dos Trabalhadores sem Teto, ocupam desde do dia 1º de setembro do corrente ano, uma área de 78 mil m² em São Bernardo do Campo. O terreno em questão pertence a construtora MZM Incorporação Limitada e encontrava-se abandonado há pelo menos 30 anos, acumulando inclusive uma dívida de 500 mil reais em IPTU atrasado. No local estão alojadas cerca de sete mil famílias em busca da possibilidade de conseguir a afirmação no que tange o direito à moradia.
No entanto, o objetivo desse artigo pauta-se no que se refere ao direito à cultura. E mostra-se pertinente ao analisarmos a situação colocada pelo paradigma de quem tem direito à cultura nessa sociedade em que se insere os atores envolvidos.
O direito à Cultura encontra-se amparado no sistema legal mundial através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na qual no Artigo 27 determina que “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes ...”. No Brasil, o posicionamento é ratificado na Constituição Federal de 1988 através do art. 215 em que temos “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional ...”. Suscitando o art. 5º, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ... “, entende-se pelo Caput do art.215, CF, que cabe ao poder estatal promover meios de acesso à cultura, na sua integridade, como forma de afirmação de cidadania.
No livro Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Flávia Piovesan, salienta a importância de se saber que após um período de mais de 20 anos de ditadura militar ocorreu o processo de democratização do Brasil e que tal processo foi de grande importância para as forças de oposição da sociedade civil já que essas alcançaram as importantes conquistas sociais do país como a consolidação das garantias e direitos fundamentais e a proteção para grupos vulneráveis o que deu à Constituição Federal de 1988 o título de Constituição Cidadã por estimular a plena cidadania.
A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário (PIOVESAN, 2013, p.86).
Quando se fala de direito à cultura é necessário o entendimento de que esse se dá através do direito ao acesso, produção, fruição e gozo da cultura em todas as suas esferas e diversidade. Dessa forma, além do direito ao modo de viver, fazer, criar, formas de expressão, conjuntos urbanos de valor histórico, criações científicas e tecnológicas, tem-se também o direito de usufruir das artes e, dentre elas, da música, de acordo com o art. 216 da Constituição Federal/88. A cultura funciona também como instrumento agregador e identificador de um povo e possui um papel essencial na construção e desenvolvimento de uma nação.
No entanto o maior desafio no que tange aos Direitos Humanos atualmente não está em comprovar a sua existência e sim em buscar instrumentos para afirmação. Segundo Norberto Bobbio (1909), fundamentar a existência dos Diretos do Homem já não é o problema com o advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada na Assembleia Geral da Nações Unidas em 10 de dezembro de 1848. Nesse sentido ele defende:
A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade (BOBBIO, 1909, p.46).
A cultura popular, categoria na qual se inclui o show do caso em questão, serve como poderoso e dinâmico instrumento que dá forma e originalidade a uma determinada comunidade através da promoção de interações pessoais, sociais e políticas. No entanto, a elite brasileira ainda custa em insistir em confundi-la com a cultura letrada, e mais, busca a todo custo extermina-la das raízes das comunidades no intuito de promover desagregação, estranhamento e falta de conexão entre os indivíduos.
No que tange à cultura individual, entende-se como a relação indivíduo-meio (sociedade) que se representa pela junção do conhecimento adquirido formalmente, como a educação escolar, e as experiências adquiridas individualmente. E a importância que aqui é colocada, reside no fato de que a cultura individual é responsável pela formação da tão necessária percepção, que vem a ser um importante instrumento de análise da sociedade onde se está inserido. As artes, nesse sentido, possuem papel fundamental pois agem como disseminadoras das ideias e ratificadoras de pontos de convergência social. Zigmund Bauman, no livro Cultura Líquida, nos coloca então tal ideia:
Segundo o conceito original, a cultura seria um agente da mudança do status quo, e não de sua preservação; ou, mais precisamente, um instrumento de navegação para orientar a evolução social rumo a uma condição humana universal (BAUMAN, 2013)
O termo cultura passou a possuir um entendimento de cultivo e cuidado do desenvolvimento humano a partir do século XVI durante o desenvolvimento do colonialismo fortalecendo a separação de culto e não culto. No século XVIII surge a cultura dividida em 3 categorias por Johann Gottfried von Herder: processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético; referência a um povo, um grupo, um período; e obras e práticas intelectuais e artísticas como a música, pintura, escultura, teatro e cinema. Foi durante o Iluminismo que a cultura passou a ser utilizada como instrumento de mudança com o intuito de elevação do homem na sua condição humana. O iluminismo via a cultura como uma alternativa milagrosa de aproximar o povo e a elite da sociedade eliminando classes através da paixão pela doçura e a luz que a cultura possui. Apesar dos esforços de artistas e filósofos durante o Iluminismo, a cultura sempre teve um papel de separação de classes, do letrado e do não letrado, do culto e do não culto. O culto, era aquele que possuía a educação formal e o acesso à educação cultural, entre essas a arte. Trata-se da cultura letrada. Nesse ponto, Bauman no livro Modernidade Líquida nos traz:
Em La distinction, de Bourdieu, a cultura manifestava-se acima de tudo como um dispositivo útil, conscientemente destinado a assinalar diferenças de classes e salvaguarda-las: como uma tecnologia inventada para a criação e proteção das divisões de classes e das hierarquias sociais (BAUMAN, 2014).
A cultura tem um grande poder de movimentação de massa e ao mesmo tempo na individualidade de cada ser, além de que, se bem utilizada, fortalece o cidadão dentro de sua cultura no conhecimento da sociedade e de si próprio. Assim Zygmunt Bawman (2013) nos contempla com a seguinte análise:
Desde os primórdios da cultura, e através de sua longa história, seu motor tem sido a necessidade de preencher o abismo que separa transitoriedade e eterno, finitude e infinito, vida mortal e imortalidade, ou o ímpeto de construir uma ponte que permita a passagem de uma extremidade à outra, ou o impulso de capacitar os mortais para imprimir na eternidade sua presença contínua, nela deixando a marca de nossa visita, ainda que breve (BAUMAN, 2014).
Nietzsche descreve a forma como a cultura pode determinar o comportamento de uma sociedade e, nesse sentido, ele utiliza exemplo do uso da moral pela religião e a forma desvirtuada desse instituto como instrumento de alienação dos indivíduos. A intensão desse poder aprisionador conseguido através de dogmas morais, usando a cultura como instrumento, era transformar o indivíduo em um ser vulnerável e doente através do medo, da dor, do sofrimento e da fome. O pensamento de Nietzsche remete à necessária análise em relação a forma de como a cultura, ou a falta dela, pode ser utilizada para reduzir a liberdade de ser dos indivíduos.
Diante do colocado é possível identificar e explicar o comportamento da elite brasileira quando visa o escracho da cultura popular: busca confundi-la com a cultura letrada e pretende impedir sua ascensão dentro de uma sociedade. Isso se dá por três motivos principais:
Primeiro porque a cultura como instrumento agregador empodera e fortalece os vínculos dentro de um grupo, legitimando as demandas coletivas e incentivando a busca do desejado;
Segundo porque para essa elite é inaceitável que a plebe tenha direito a algo que lhes deem a condição de sentir-se iguais aos intocáveis burgueses. Negar-lhes à cultura é impedir-lhes de terem a efetivação da cidadania. E, na visão preconceituosa dessa sociedade, pobre não é cidadão, pobre é objeto a ser explorado, historicamente explorado, explorado pelo orgulho burguês em nome do capital. Utilizar a cultura letrada como objeto de reinvindicação é o que lhes resta já que, diante do novo constitucionalismo, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana já não lhes permite muito além disso. É um ato desesperado na tentativa de manter uma estrutura de privilégios.
Terceiro e mais importante no caso em questão, impedir a disseminação de manifestação cultural entre esse grupo é uma tentativa de impedir a organização. Busca-se o desestímulo à luta, à união, à esperança e à resistência diante dos já inúmeros obstáculos enfrentados.
Mesmo que a referida decisão de proibição da realização do show de Caetano Veloso na ocupação tenha um viés jurídico, é importante ressaltar que o mesmo também possui uma característica política de censura, já que, ao utilizar-se do argumento de manter a segurança dos envolvidos, visto que o local onde seria realizado o show não possuía a estrutura suficiente para atender a demanda de pessoas (certeza essa tomada através da presunção por não ter ocorrido visita ao local por qualquer dos órgãos responsáveis por tal avaliação técnica), o judiciário não mostra um comportamento isonômico se comparado com outras ocasiões. A preocupação com a segurança seria de uma nobreza relevante se utilizada em vários outros exemplos em que a segurança da população foi colocada em risco, como a queda do camarote em show sertanejo em Arandu/SP em março, a também queda do camarote em festa a fantasia em Aracaju/SE em outubro e o desabamento do palco durante apresentação de DJ em agosto em Presidente Prudente/SP só para citar alguns dos acidentes ocorridos no ano corrente. Ressalta-se aqui, que os eventos citados foram promovidos pela indústria cultural voltados para um público específico, no qual os Sem Teto ou Sem Terra ou Sem Trabalho ou Sem Dinheiro não tem lugar. Nesses casos, apesar da evidente e material falta de segurança, não houve impedimento para a realização dos shows.
Assim, visualiza-se então, que apesar das inúmeras reações populares através dos incontáveis movimentos sociais ativos no Brasil atualmente, na busca de igualdade de direitos e sua efetivação além da diminuição da extrema desigualdade social, esses mostram-se insuficientes quando se tem um poder legislativo corrupto, um judiciário corrompido e um executivo ilegítimo que pratica a espoliação de direitos dos cidadãos e ainda se mantem em exercício, apesar de uma margem de aprovação do plano de governo de apenas 4% por parte da população.
No entanto, é necessário suscitar que apesar de parecer insuficiente, tais lutas não são em vão. A resistência utilizada e a estruturação desses coletivos têm provocado um movimento de contra cultura que mostra-se altamente relevante quando no questionamento da conjuntura atual. Trata-se de um objetivo a médio e longo prazo, de mudança cultural da sociedade. Como dito, a cultura é dinâmica e acompanha as mudanças comportamentais, assim como também as mudanças de entendimento quanto às estruturas. Insistir nessas mobilizações é insistir na esperança e na certeza de que não existe apatia e sim organização para uma mudança definitiva.
BAUMAN, Zygmunt. Cegueira moral. A perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014
______. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BARBALHO, Alexandre. Política Cultural.
BOBBIO, Norberto, 1909. A Era dos Direitos - 9ª ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. – 3ª Reimpressão.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. 1988
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. Crepúsculo dos Ídolos, ou, como se filosofa com o martelo - Porto Alegre, RS, 2014.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional – 14 ª. Ed., ver. e atual, - São Paulo: Saraiva, 2013.
Acadêmica de Direito. Faculdade de Administração e Negócios de Sergipe - FANESE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LARA SOBRAL ARAGãO, . Sobre o direito à cultura ou quem tem direito a ela Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51109/sobre-o-direito-a-cultura-ou-quem-tem-direito-a-ela. Acesso em: 07 nov 2024.
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