RESUMO: Neste artigo se propõe analisar a possibilidade de se julgar ação declaratória de inconstitucionalidade cujo objeto venha a ser revogado supervenientemente. A temática se mostra relevante na medida em que a revogação posterior à propositura da ação pode ter por objetivo escapar ao controle exercido pelo Supremo Tribunal Federal. O presente trabalho será desenvolvido utilizando-se como método de abordagem, o dedutivo, como método de procedimento, o interpretativo, e como técnica de pesquisa, a bibliográfica e a legal. Após o estudo e a sistematização da matéria, espera-se refutar ou não a necessária perda superveniente do objeto da ação declaratória de inconstitucionalidade em razão da revogação do ato normativo.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Ação declaratória de inconstitucionalidade. Revogação. Perda superveniente do objeto.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO 3 1 Os fundamentos do controle de constitucionalidade 4 2 Sistema brasileiro de controle de constitucionalidade 8 3 Análise jurisprudencial 12 CONCLUSÃO 17 REFERÊNCIAS 18
INTRODUÇÃO
Objetiva-se, neste trabalho científico, examinar as consequências processuais da revogação do ato normativo que esteja sendo objeto de controle de constitucionalidade objetivo, notadamente se haverá necessariamente o reconhecimento da prejudicialidade da questão e a extinção do processo. Para tanto, a pesquisa se desdobrará em três fases.
De início, investigar-se-á os fundamentos do controle de constitucionalidade, destacando-se as contribuições jurídicas para a criação e aperfeiçoamento da legislação de regência da matéria, em especial, aquelas granjeadas nos Estados Unidos da América e na França. Além disso, buscar-se-á compreender o contexto histórico e as preocupações filosóficas que conduziram ao florescimento da Justiça Constitucional.
No segundo capítulo, adentrar-se-á na verificação do modelo de controle de constitucionalidade elaborado no Brasil, a partir de um estudo comparado, cotejando-se o modelo brasileiro e os sistemas americano e austríaco. Após, examinar-se-á as normas constitucionais e infraconstitucionais que disciplinam as ações diretas de inconstitucionalidade, delineando um panorama geral acerca do tema.
Por fim, averiguar-se-á o posicionamento da Corte Constitucional brasileira acerca do possível julgamento de ação de controle concentrado abstrato cujo objeto tenha sido revogado posteriormente à sua propositura, trazendo a lume excertos de decisões proferidas pelo Pretório Excelso.
1 Os fundamentos do controle de constitucionalidade
O constitucionalismo moderno, em especial, aquele erigido pela cultura jurídica norte-americana e francesa, constituiu a base necessária para o desenvolvimento do controle de constitucionalidade nos moldes atuais.
Com a formação dos Estados Unidos da América, fruto de aliança estabelecida entre as antigas treze colônias britânicas – à época, já independentes, e a elaboração da Constituição norte-americana em 1787, na Filadélfia, avançou-se de maneira significativa em direção à consolidação do controle judicial sobre as normas infraconstitucionais à luz do Texto Fundamental. Nos dizeres de Novelino (2013, p. 56-57):
As ideias de supremacia da Constituição e sua garantia jurisdicional são algumas das principais contribuições da tradição norte-americana. Por estabelecer as “regras do jogo” político, a Constituição estaria, por uma questão lógica, em um plano juridicamente superior aos dos que dele participam (Poder Legislativo, Executivo e Judiciário). Sua principal finalidade consiste em determinar quem manda, como manda e, em parte também, até onde pode mandar. A garantia da supremacia constitucional é atribuída ao Poder Judiciário em razão de sua neutralidade, fator que tornaria o mais indicado para se manter à margem do debate político. Nesta concepção, o constitucionalismo se resolve em judicialismo destinado a assegurar o respeito às regras básicas de organização política. (…) Entre as inovações e principais características do constitucionalismo norte-americano, podem ser destacadas: I) a criação da primeira Constituição escrita e dotada de rigidez; II) a ideia de supremacia da Constituição; III) a instituição do controle judicial de constitucionalidade (1803) (…).
Vê-se que a Lei Maior estadunidense, ao acolher, as ideias de supremacia e rigidez constitucional, firmou os pilares necessários à estruturação da doutrina do judicial review. Segundo Mendes e Branco (2014, p. 109):
A rigidez é atributo que se liga muito proximamente ao princípio da supremacia da Constituição. A supremacia fixa o status hierárquico máximo da Constituição no conjunto das normas do ordenamento jurídico. Essa superioridade se expressa na impossibilidade de o legislador ordinário modificar a Constituição, dispondo em sentido divergente do que o constituinte estatuiu. Se a Constituição pode sofrer transformações pela mesma maneira como se elaboram as demais leis, não se assegura a supremacia da Carta sobre o legislador ordinário. A rigidez distingue o poder constituinte dos demais poderes constituídos e positiva uma hierarquia entre as normas jurídicas, em que a Constituição aparece como o conjunto de normas matrizes do ordenamento jurídico, em posição de prevalência sobre todos os atos normativos que hão de nela encontrar fundamento último. A rigidez, expressando a supremacia da Constituição, demanda, também, a instituição de um sistema de controle de validade dos atos praticados pelos poderes constituídos, em face das normas do Texto constitucional. A rigidez, para ser efetiva, requer um sistema de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, como garantia eficaz da supralegalidade das normas constitucionais.
Em 1791, sob a influência dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que insuflaram a revolução de 1789, elaborou-se na França a primeira constituição escrita europeia, cujo texto impunha limites ao poder – antes absoluto – do soberano. Conforme o artigo terceiro, da primeira seção, do segundo capítulo da Constituição de 1791, que versava sobre o Rei e a Realeza, a partir daquele momento, inexistiria autoridade na França superior à lei; o rei apenas reinava pela lei e somente poderia exigir obediência em nome da lei.
A sujeição de todos – inclusive do Monarca – aos ditames de uma Lei Maior escrita foi imprescindível ao surgimento de normas impositivas de controle sobre os demais atos normativos. Ademais, ainda que de modo embrionário, há a previsão de mecanismos voltados à verificação de compatibilidade das leis ordinárias com a ordem jurídica vigente. Nesse sentido, é a lição de Novelino (2013, p. 57):
A apelação do constitucionalismo norte-americano aos juízes nos casos de violação dos direitos naturais inerentes ao homem, no modelo francês, é substituída pela apelação ao povo mediante um direito de censura das leis ordinárias, assim como de variadas formas de reforma constitucional e referendo. (grifo nosso)
No século XX, o fim da Segunda Guerra Mundial, a queda dos regimes nazifascistas e o sentimento de repúdio às atrocidades cometidas sob o manto da legalidade fundamentaram o fortalecimento da jurisdição constitucional. Os textos constitucionais se tornaram abrigo de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e estrangeiros em face do Estado, visando impedir a reprodução dos tenebrosos acontecimentos. Buscava-se, assim, superar as falhas do Poder Legislativo. Além disso, as normas constitucionais foram elevadas ao patamar de normas superiores, dotadas de força normativa. Consoante Mendes e Branco (2014, p. 84):
Terminado o conflito, a revelação dos horrores do totalitarismo reacendeu o ímpeto pela busca de soluções de preservação da dignidade humana, contra abusos dos poderes estatais. Os países que saíam do trauma dos regimes ditatoriais buscaram proteger as declarações liberais das suas constituições de modo eficaz. O Parlamento, que se revelara débil diante da escalada de abusos contra os direitos humanos, perdeu a primazia que o marcou até então. A Justiça Constitucional, em que se viam escassos motivos de perigo para a democracia, passou a ser o instrumento de proteção da Constituição – que, agora, logra desfrutar de efetiva força de norma superior do ordenamento jurídico, resguardada por mecanismo jurídico de censura dos atos que a desrespeitem.
Cumpriu ao pós-positivismo, teoria surgida no pós-guerra, o papel de resgatar os valores, reaproximar a ordem jurídica da moral, reconhecer normatividade aos princípios e força normativa aos preceitos contidos nos textos constitucionais. As constituições deixaram de ser vistas como meras cartas de intenções e passaram a ser compreendidas como normas vinculantes de observância compulsória por constituintes derivados, legisladores ordinários, administradores públicos, chefes de governo e chefes de Estado – e até mesmo por particulares. Conforme Novelino (2013, p. 207):
A doutrina pós-positivista prega o reconhecimento definitivo da força normativa da Constituição com o consequente abandono da concepção estritamente legalista das fontes do direito. (...) Enquanto estatuto dotado de força normativa, a Constituição impõe amplos limites materiais ao Parlamento, especialmente no que se refere aos direitos fundamentais, retirados da esfera de disposição da política ordinária. O deslocamento da prevalência da lei para a centralidade da Constituição foi sintetizada por Paulo Bonavides na célebre frase: “Ontem os códigos; hoje as constituições”.
Neste contexto, o controle de constitucionalidade reflete a opção do constituinte pela rigidez e supremacia constitucionais e destaca-se como uma forma de se salvaguardar os direitos fundamentais consagrados na Lei Maior. Assim leciona Moraes (2017, p. 519):
O controle de constitucionalidade configura-se, portanto, como garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na constituição que, além de configurarem limites ao poder do Estado, são também uma parte da legitimação do próprio Estado, determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um Estado de Direito.
Estabelecidas as premissas sobre as quais se funda o controle de constitucionalidade, bem como o seu contexto histórico, mister se faz analisar a disciplina jurídica da matéria no âmbito do Direito brasileiro.
2 Sistema brasileiro de controle de constitucionalidade
Tradicionalmente, dois modelos de controle de constitucionalidade são tidos como paradigmáticos, a saber: o sistema austríaco e o sistema americano. O sistema austríaco considera a norma inconstitucional como anulável, prevendo o reconhecimento do seu defeito através de decisão constitutiva de efeitos ex nunc, proferida por um Tribunal específico em um processo objetivo; enquanto o sistema americano compreende o vício de inconstitucionalidade como uma nulidade ab origine, maculando o ato normativo em seu nascedouro e provocando a jurisdição constitucional – atribuída a todos os órgãos do Judiciário – a prolatar uma decisão declaratória com efeitos ex tunc diante de um caso concreto.
O Brasil não adota um ou outro. Tem-se um sistema jurisdicional misto, precipuamente repressivo, sendo exercido de tanto de forma concentrada, como de forma difusa. Diz-se precipuamente repressivo, pois, apesar de a atuação do Judiciário realizar-se notoriamente após a edição do ato normativo, o Supremo Tribunal Federal admite a impetração de mandado de segurança por parlamentar que vise ter assegurado o seu direito ao devido processo legislativo, devendo a Corte impedir a tramitação de projetos de lei que afrontem a Lei Fundamental. No caso, há controle preventivo jurisdicional difuso.
Aproxima-se do modelo americano, ao estabelecer a possibilidade de qualquer juízo declarar a inconstitucionalidade de ato normativo, desde que referida declaração seja requerida de forma incidental – e não como objeto principal da lide.
Entretanto, apesar de sofrer fortes influxos da compreensão norte-americana, também se constatam traços da influência do sistema austríaco, ao se perscrutar a ordem jurídica nacional. Há inegável similitude com o modelo austríaco, quando o constituinte elege um Tribunal como guardião da constituição e torna-o responsável pelo controle constitucional realizado de forma concentrada. Exemplo disso é a previsão constitucional inserida no artigo 102, I, a, dispondo competir ao Supremo Tribunal Federal o processamento e julgamento originário de ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade.
As ações diretas de inconstitucionalidade são instrumentos que servem para submeter ao crivo da Corte Constitucional a análise abstrata da conformidade de determinada lei ou ato normativo com a Constituição. É apreciada mediante um processo objetivo, no qual não existe lide ou partes processuais. A legitimação para a sua propositura recai sobre sujeitos especificamente escolhidos pelo constituinte e elencados no artigo 103 do Texto Fundamental, que assim dispõe:
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Há ainda, por força de interpretação realizada pelo Supremo Tribunal Federal, exigência, dirigida a certos legitimados, de demonstração da pertinência temática entre os interesses que defendem e o objeto da ação. Neste diapasão, preleciona Moraes (2017, p. 536):
Para alguns dos legitimados do art. 103 da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal exige a presença da chamada pertinência temática, definida como o requisito objetivo da relação de pertinência entre a defesa do interesse específico do legitimado e o objeto da própria ação.
Assim, enquanto se presume de forma absoluta a pertinência temática para o Presidente da República, Mesa do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, Procurador-Geral da República, Partido Político com representação no Congresso Nacional e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em face de suas próprias atribuições institucionais, no que se denomina legitimação ativa universal, exige-se a prova da pertinência por parte da Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, do Governador do Estado ou do Distrito Federal das confederações sindicais ou entidades de âmbito nacional.
Quanto ao parâmetro adotado para se aferir a constitucionalidade das normas, tem-se que, de início, considerando a literalidade do artigo 102, I, a, da Constituição Federal de 1988, firmou-se o entendimento no sentido de que apenas o texto constitucional deveria ser utilizado como parâmetro. Todavia, interpretando-se sistematicamente a Constituição, verifica-se que as convenções e tratados internacionais podem servir como parâmetro, por força do artigo 5º, § 3º, da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004, segundo o qual os tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao Direito brasileiro conforme o trâmite e o quórum especial estabelecido para a votação e aprovação de emendas constitucionais a estas se equiparam – e, portanto, ao lado do texto constitucional, formam o que se chama de “bloco de constitucionalidade”.
O artigo 102, I, a da Constituição Federal de 1988 também delimita o objeto da ação declaratória de inconstitucionalidade, restringindo o controle a leis ou atos normativos federais ou estaduais.
A sua propositura se condiciona à observância dos requisitos exigidos pela Lei nº 9.868/1999, a saber: a indicação do dispositivo da lei ou do ato normativo impugnado; exposição dos fundamentos jurídicos do pedido em relação a cada uma das impugnações, bem como do pedido, com suas especificações; instrumento de procuração, quando subscrita por advogado.
Em conformidade com o artigo 103, § 3º, da Constituição, o Advogado-Geral da União deverá ser citado, oportunizando-o a realização da defesa do ato ou texto impugnado. Além disso, consoante o artigo 6º da Lei nº 9.868/1999, o relator deverá solicitar informações aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou ato normativo questionado.
Em relação ao seu julgamento, o artigo 22 da Lei nº 9.868/1999 exige a presença de, pelo menos, oito Ministros para que se viabilize a instalação da sessão e a declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, conforme o seu artigo 23, só poderá ser pronunciada pela manifestação de seis Ministros. Em regra, dota-se a referida decisão de efeitos ex tunc. Contudo, o artigo 27 do mencionado estatuto legal prevê a possibilidade de modulação de efeitos, por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, desde que aprovada por maioria de dois terços de seus membros.
Ocorre que, por vezes, durante o trâmite da ação, o ato questionado é expurgado da ordem jurídica antes de o Tribunal Constitucional ter tempo suficiente para discutir a temática e julgar a ação, posicionando-se acerca da constitucionalidade ou não do dispositivo legal. A princípio, firmou-se o entendimento no sentido da prejudicialidade da ação. Todavia, certos aspectos subjacentes ao debate posto em juízo levaram o Supremo Tribunal Federal a flexibilizar o seu posicionamento.
3 Análise jurisprudencial
Em regra, o Supremo Tribunal Federal não admite o prosseguimento de ações diretas de inconstitucionalidade cujo objeto tenha sido revogado no curso do processo. Entende-se ter ocorrido perda superveniente do objeto, o que impede o conhecimento da ação. Conforme Moraes (2017, p. 532):
O Supremo Tribunal Federal não admite ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo já revogado ou cuja eficácia já tenha se exaurido (por exemplo: medida provisória convertida em lei) entendendo, ainda, a prejudicialidade da ação, por perda do objeto, na hipótese de a lei ou ato normativo impugnados virem a ser revogados antes do julgamento final da mesma, pois, conforme entende o Pretório Excelso, a declaração em tese de ato normativo que não mais existe transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concreta.
Nesse sentido, manifestou-se o Tribunal Pleno, em julgamento proferido sob a relatoria da Ministra Carmen Lúcia, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei nº 6.121/1999 do Estado de Alagoas, requerida pelo seu Governador, cuja ementa colaciona-se abaixo.
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ALAGOANA N. 6.121/1999. INSTITUI FAIXAS VENCIMENTAIS DE PAGAMENTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS DO PODER EXECUTIVO ALAGOANO, CONCEDE ABONO E REAJUSTA VENCIMENTOS DO QUADRO DE PESSOAL DA POLÍCIA CIVIL. 1. A Lei alagoana n. 6.121/1999 foi revogada tacitamente pelas Leis n. 6.252/2001, 6.253/2001, 6.276/2001, 6.592/2005 e 6.788/2006, que versaram sobre matéria objeto da lei impugnada. Precedentes. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada prejudicada em razão da perda superveniente de seu objeto.
(ADI 2118, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 13/05/2010, DJe-111 DIVULG 17-06-2010 PUBLIC 18-06-2010 REPUBLICAÇÃO: DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-02 PP-00340)
Todavia, o referido entendimento comporta exceções, reconhecidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Por vezes, constatou-se que a revogação dos atos normativos tinha por propósito tão somente se esquivar da jurisdição constitucional. Tais situações não passaram despercebidas pela Corte Constitucional. Conforme ensina Mendes e Branco (2014, p. 1647):
Essa posição do Tribunal, que obstava o prosseguimento da ação após a revogação da lei, ocasionava, seguramente, resultados insatisfatórios. Se o Tribunal não examinasse a constitucionalidade das leis já revogadas, tornava-se possível que o legislador conseguisse isentar do controle abstrato lei de constitucionalidade duvidosa, sem estar obrigado a eliminar suas consequências inconstitucionais. É que mesmo uma lei revogada configura parâmetro e base legal para os atos de execução praticados durante o período de sua vigência.
A continuidade normativa consiste em um dos impedimentos à declaração da perda do objeto da ação. Assim, caso o legitimado consiga demonstrar que a essência do ato impugnado, posteriormente revogado, persiste no ordenamento jurídico – seja por ter havido a sua reprodução em outro dispositivo legal, seja por uma análise sistêmica do ordenamento jurídico, é possível que a ação direta de inconstitucionalidade tenha o seu mérito julgado.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. MEDIDA CAUTELAR. AÇÃO CONHECIDA EM PARTE, E NELA INDEFERIDA A CONCESSÃO DE LIMINAR. ART. 33 DA LEI 8.212/1991. SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. CONCURSO DE PROGNÓSTICOS. ORÇAMENTO FISCAL DA UNIÃO. 1. Não há perda superveniente do objeto na hipótese, uma vez que o suposto vício de inconstitucionalidade, se houver, permaneceria no ordenamento jurídico. Isso porque as contribuições sociais ainda integram o orçamento da Seguridade Social, assim como a Receita Federal remanesce responsável pelas contribuições sociais incidentes sobre a receita de concursos de prognósticos. 2. O artigo 33 da Lei 8.212/1991 não viola a Constituição Federal, porque as incumbências de fiscalização e arrecadação imputadas à Receita Federal não modificam a destinação específica da contribuição em questão. O critério constitucional de afetação de receita orçamentária não se pauta no órgão de arrecadação, mas, sim, no custeio de políticas públicas direcionadas à Seguridade Social, conforme dispõe o artigo 195 do Texto Constitucional. Precedentes. 3. O artigo impugnado cinge-se à atribuição eminentemente fiscal, especificamente na seara de recolhimento das contribuições sociais. Assim, a Secretaria da Receita Federal não dispõe, em absoluto, de condições de possibilidade para ingerir na destinação orçamentária desses tributos. 4. Ação direta de inconstitucionalidade que se conhece em parte e, nesse ponto, julgada improcedente.
(ADI 763, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 25/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-245 DIVULG 03-12-2015 PUBLIC 04-12-2015) (grifo nosso)
Entretanto, cumpre salientar que tal prova é dever do interessado, que deve apresentar oportunamente pedido de aditamento. Caso não se desincumba do referido ônus, o reconhecimento da prejudicialidade da ação é medida que se impõe. Tal foi o entendimento firmado pelo Tribunal Pleno, ao negar provimento a agravo regimental interposto nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 11.644, de 22 de dezembro de 2000, do Estado de Santa Catarina, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Senão, vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEIS 11.644/2000 E 15.327/2010 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. INSTITUIÇÃO DE SISTEMA DE GESTÃO CENTRALIZADA DE DEPÓSITOS SOB AVISO À DISPOSIÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. REVOGAÇÃO DA NORMA IMPUGNADA. LEI POSTERIOR QUE REGULA A MESMA MATÉRIA. PERDA DE OBJETO DA AÇÃO E CONSECTÁRIA PREJUDICIALIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A revogação da norma impugnada faz com que o objeto da pretensão inicial não mais subsista, revelando a inviabilidade do exame de sua compatibilidade com a Carta Maior por meio do controle abstrato de constitucionalidade. 2. A jurisprudência desta Suprema Corte é pacífica quanto à prejudicialidade da ação direta de inconstitucionalidade, por perda superveniente de objeto, quando sobrevém a revogação ou a alteração substancial da norma cuja constitucionalidade se questiona. Precedentes: ADI 1.454/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJ 3.8.2007; ADI 1.445-QO/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 29.4.2005; ADI 519-QO/MT, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ 28.6.2002; ADI 2.515-MC/CE, Rel. Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 1º.3.2002; ADI 2.290-QO/DF, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ 29.6.2001; ADI 1.859-QO/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 26.11.1999; ADI 2.001-MC/DF, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ 3.9.1999; ADI 520/MT, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 6.6.1997; ADI 709/PR, Rel. Min. Paulo Brossard, Tribunal Pleno, DJ 24.6.1994 e ADI 2.118/AL, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJE nº 145, de 06/08/2010. 3. A revogação da norma impugnada impõe ao autor o ônus de apresentar eventual pedido de aditamento, na forma e no tempo processual adequados, caso entenda subsistentes as mesmas inconstitucionalidades na norma revogadora. 4. In casu, no entanto, o requerente manteve-se inerte, cabendo ao relator o reconhecimento dos efeitos processuais decorrentes da revogação da norma originalmente impugnada, especialmente quando transcorrido considerável lapso de tempo desde a revogação, sem qualquer providência das partes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(ADI 2542 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-247 DIVULG 26-10-2017 PUBLIC 27-10-2017) (grifo nosso)
Outra hipótese que legitima o julgamento da ação de controle de constitucionalidade dá-se quando a revogação do ato normativo consiste claramente em manobra processual para que o Supremo Tribunal Federal não possa apreciar a questão. Deve-se verificar que o legislador ou administrador, ao assim proceder, visou impedir que a prolação de decisão com efeitos retroativos declarando a sua nulidade viesse a invalidar os efeitos já produzidos pela lei. Em julgado proferido sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso, no dia 27 de outubro de 2016, o Tribunal Pleno assim se manifestou. Por seu teor didático, segue abaixo sua ementa.
CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. REVOGAÇÃO DA NORMA OBJETO DA AÇÃO DIRETA. COMUNICAÇÃO APÓS O JULGAMENTO DO MÉRITO. DESPROVIMENTO. 1. Há jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal no sentido de que a revogação da norma cuja constitucionalidade é questionada por meio de ação direta enseja a perda superveniente do objeto da ação. Nesse sentido: ADI 709, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ, 20.05.1994; ADI 1442, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 29.04.2005; ADI 4620-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje, 01.08.2012. 2. Excepcionam-se desse entendimento os casos em que há indícios de fraude à jurisdição da Corte, como, a título de ilustração, quando a norma é revogada com o propósito de evitar a declaração da sua inconstitucionalidade. Nessa linha: ADI 3306, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe, 07.06.2011. 3. Excepcionam-se, ainda, as ações diretas que tenham por objeto leis de eficácia temporária, quando: (i) houve impugnação em tempo adequado, (ii) a ação foi incluída em pauta e (iii) seu julgamento foi iniciado antes do exaurimento da eficácia. Nesse sentido: ADI 5287, Rel. Min. Luiz Fux, Dje, 12.09.2016; ADI 4.426, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje, 17.05.2011; ADI 3.146/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ, 19.12.2006. 4. Com maior razão, a prejudicialidade da ação direta também deve ser afastada nas ações cujo mérito já foi decidido, em especial se a revogação da lei só veio a ser arguida posteriormente, em sede de embargos de declaração. Nessa última hipótese, é preciso não apenas impossibilitar a fraude à jurisdição da Corte e minimizar os ônus decorrentes da demora na prestação da tutela jurisdicional, mas igualmente preservar o trabalho já efetuado pelo Tribunal, bem como evitar que a constatação da efetiva violação à ordem constitucional se torne inócua. 5. Embargos de declaração desprovidos.
(ADI 951 ED, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 27/10/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-134 DIVULG 20-06-2017 PUBLIC 21-06-2017) (grifo nosso)
Da decisão acima colacionada extrai-se não só a possibilidade de se apreciar a ação direta de inconstitucionalidade quando há fraude, como também em duas outras situações, quais sejam: quando o objeto for lei de eficácia temporária impugnada em tempo hábil e o julgamento da ação tiver sido iniciado antes da cessação da sua eficácia; e quando o Tribunal não for informado acerca da revogação normativa e decidir o mérito da ação.
Em síntese, os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal acima debatidos demonstram que a Corte Constitucional admite o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, ainda que revogado o seu objeto, desde que haja uma justificativa para tanto.
CONCLUSÃO
Este estudo teve por escopo verificar a viabilidade da realização do controle de constitucionalidade sobre normas revogadas. Por todo o exposto, conclui-se que existe a possibilidade se prosseguir com a instrução e julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade mesmo após a revogação do seu objeto.
Da análise do arcabouço jurídico que rege o controle de constitucionalidade no Brasil, observa-se que nenhum dispositivo positivado impede expressamente a atuação do Poder Judiciário na hipótese em testilha.
Ademais, a efetividade e a preservação da força normativa da Constituição dependem inexoravelmente da atividade de controle exercida pelo Supremo Tribunal Federal. A imposição aos legisladores e administradores do devido respeito às regras e princípios constitucionais transforma a Lei Maior em texto vivo, notadamente no que concerne aos direitos e garantias fundamentais contidos explícita ou implicitamente na redação das normas constitucionais.
Diante das considerações tecidas, pode-se afirmar que, embora a Corte Constitucional se posicione, em regra, pelo reconhecimento da perda do objeto da ação e extinção do processo, referido entendimento comporta exceções, mormente quando se visa evitar o desvirtuamento da ordem jurídica estabelecida e do exercício dos poderes constitucionais por seus detentores transitórios, bem como o esvaziamento dos instrumentos de controle de constitucionalidade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Controle de constitucionalidade. Embargos Declaratórios opostos na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 951. Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, DF, 21 jun. 2017.
_____. Supremo Tribunal Federal. Controle de constitucionalidade. Agravo Regimental interposto nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2542. Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DF, 27 out. 2017.
_____. Supremo Tribunal Federal. Controle de constitucionalidade. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 763. Relator: Min. Edson Fachin. Brasília, DF, 04 dez. 2015.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
Bacharela pela Universidade Federal da Paraíba e Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Servidora Pública do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Rebecca Braz Vieira de. Controle de constitucionalidade sobre normas revogadas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51440/controle-de-constitucionalidade-sobre-normas-revogadas. Acesso em: 06 nov 2024.
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