Sumário: I. Premissas; II. Realismo Jurídico e Discricionariedade: Duas Chaves Para o “Golpe”; III. As Chaves Maquiavélicas do “Golpe”; IV. O Habeas Corpus n. 126.292/SP; V. Rede de Citações do HC n. 126.292/SP; VI. Golpe de Estado Judicial ou Bootstraping (1): Fonte e Rigidez Constitucional; VII. Golpe de Estado Judicial ou Bootstraping (2): Norma e Interpretação; VIII. Golpe de Estado Judicial ou Bootstraping (3): O “Motor da História”. Considerações Finais.
I. PREMISSAS
Tratar do tema “golpes de estado” pode ser uma tarefa árdua, inglória e pretensamente fadada a receber pouca atenção (e com ela, seriedade), em razão da “guerrilha ideológica” e “predatória” do/no direito, que contemporaneamente permeia o núcleo da discussão. Mais ainda se a temática estiver imbricada com reflexões sobre sua incidência no poder judiciário. Com tais palavras, utilizadas como farol iluminador dos passos deste artigo, prossigo consciente de que mesmo assim, tal empreitada pode ser de alguma serventia, considerando as recentes discussões sobre o tema[1].
“Técnica do Golpe de Estado”[2] é o título do famoso livro de Curzio Malaparte - pseudônimo do italiano Kurt Erich Suckert (1898-1957) -, escrito em 1931, cuja ideia fundamental é a de que o Golpe de Estado seria um problema técnico, e não político. No livro, são visitados os Golpes de Estado mais famosos, alguns exitosos, outros fracassados, e o Golpe de Bonaparte (“o 18 Brumário”), seria o golpe de estado moderno por excelência.
O livro termina com o fracassado Golpe de Estado de Adolf Hitler, em 1923, culminando com sua prisão, ironicamente desdenhado pelo autor como “um ditador fracassado”. No entanto, o livro foi escrito em 1931, e Hitler assumiria o Poder, democraticamente, em 1933; o resto é história.
Democracia, Constituição e Golpe de Estado são temas incomodamente próximos. A este propósito, são relevantes as reflexões de Hubert Rottleuthner sobre o positivismo jurídico na pré-história do ordenamento jurídico do Nacional Socialismo, para uma contribuição à teoria do desenvolvimento jurídico, mencionando que não era o positivismo jurídico o campo fértil para o golpe, e sim a jurisprudência dos conceitos e a jurisprudência dos valores, como teorias jurídicas dominantes em Weimar, na Alemanha[3].
Pois bem, Malaparte menciona: “ainda que me proponha a mostrar como alguém se apodera de um Estado moderno, e como se lhe defende, e muito embora seja, em certo sentido, o mesmo tema tratado por Maquiavel, este livro está longe de ser uma imitação, por mais moderna que fosse, vale dizer, por pouco Maquiavélico que tenha sido O Príncipe” [4].
O ponto de contato entre Maquiavel, Malaparte e o Supremo Tribunal Federal, é o Habeas Corpus n. 126.292/SP, no julgamento que representou um aparente “Golpe de Estado Judicial”, com aspectos maquiavélicos e de realismo jurídico à brasileira, abordados neste texto a partir da CHD – Crítica Hermenêutica do Direito, sendo certo que a temática pode ser analisada do ponto de vista jurídico, político e/ou sociológico, com a especial advertência de Lenio Streck de que “o Direito foi substituído por uma TPP (teoria política do poder).”[5]
Este é exatamente o viés central deste artigo, que aborda o ato de suplantar a Constituição. Com isso, pensemos inicialmente, por exemplo, na imagem traçada pelo segundo Presidente norte-americano assassinado, James Garfield. Algum tempo antes de sua morte, eis as palavras por ele proferidas em sustentação oral perante a Suprema Corte dos Estados Unidos no caso ex parte Milligan (1866) acerca do problema da jurisdição militar, após a guerra civil ocorrida naquele país:
“Cavalheiros educados nos disseram que a necessidade justifica a lei marcial. Mas qual é a natureza da necessidade? Se, neste momento, o general Lee, com seu exército rebelde, estivesse em uma das ruas na avenida Pensilvânia, e o general Grant viesse com o exército da União pelo outro lado, com banners hostis, portando armas, e se aproximassem deste Tribunal, o assento sagrado da justiça e do Direito, eu tenho certeza de que expulsariam Vossas Excelências da bancada, assim como o Senado e a Câmara dos Deputados. A “jurisdição da batalha” suplantaria a “jurisdição do Direito”. Esta Corte seria silenciada pelos trovões da guerra.
Se um terremoto sacudisse a cidade de Washington, deixando este local em ruinas, sob nossos pés, isso iria retirar Vossas Excelências da bancada e, desta vez, o Direito vulcânico iria suplantar a Constituição.
Se a Suprema Corte de Pompéia ou Herculano estivessem em sessão quando as cinzas vulcânicas arruinaram aquelas cidades, repentinamente sua autoridade seria usurpada e substituída, mas eu questiono a adequação de chamar a isso de Direito, pois em sua essência, representaria a destruição ou a suspensão do Direito”[6].
Essa é a dose cavalar mais didática sobre o sentido de “realismo jurídico”, agravada se espelharmos “escolhas políticas” e “escolhas constitucionais”, pois para o realismo, muitas vezes é necessário suspender (e substituir) o sentido de Constituição, se os fins justificarem os meios, como Adrian Vermule, ao justificar algumas atuações da Suprema Corte desconectadas da sua fonte de poder e legitimidade (Constituição), na sua abordagem sobre o “bootstraping”[7] (abordado ao final do texto).
Recorde-se que os 3 principais “mantras” do realismo jurídico são: a) a Constituição é aquilo que a Corte Suprema diz que ela é; b) Direito é Política; e, c) decide-se primeiro, e somente depois deduz-se logicamente a fundamentação.
Este é o “Triumviratum” perfeito para destruir (ou atacar) qualquer Constituição, jamais para defendê-la, pois a “jurisdição da batalha” pode suplantar a “jurisdição do Direito”, o “Direito vulcânico” pode suplantar a Constituição, e a suspensão do direito pode se “naturalizar”, se essa for a resposta da Suprema Corte, que apenas deduzirá uma fundamentação, já que também foi sua “escolha” política, e a Constituição será aquilo que ela (Corte) disser que ela (Constituição) é. Estes temas aparecem também no Habeas Corpus n. 126.292/SP.
O Primeiro ponto a ser esclarecido é sobre a autoridade (fonte) normativa (legal e jurisprudencial) mais remota, usada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal que integraram a maioria no Habeas Corpus n. 126.292/SP, ao fixar o entendimento de que após o julgamento em segundo grau de jurisdição seria permitido o imediato cumprimento antecipado da sentença penal condenatória.
Para esse fim, realizo a abordagem sobre as “Redes” de citação dos julgados mais antigos, para localizar a (fonte) autoridade deste julgamento, para só então, em um segundo momento, abordar o tema dos golpes de estado judiciais. Antes, no entanto, os pressupostos decisórios (realismo jurídico e discricionariedade, como chaves para o entendimento) do entendimento do tribunal.
II. REALISMO JURÍDICO E DISCRICIONARIEDADE: DUAS CHAVES PARA O “GOLPE”
Se a Constituição for o que a Suprema Corte disser que ela é, como apregoado pelo “mantra” mais conhecido do realismo jurídico[8] (do tipo norte-americano), haurido pelo mesmo pragmatismo (como aspecto filosófico) que anima a Análise Econômica do Direito (na direita) e os Critical Legal Studies (na esquerda), através da chamada “teoria da ferradura”[9], então tudo é possível, inclusive ditaduras, arbitrariedades, como espécies de “ativismos” praticados pelo Poder Executivo, já como “suspensão” ou “destruição” do direito (e da Constituição).
Ou seja, se o judiciário pode violar a Constituição, por qual motivo (ou critério) seria também inadequado que os poderes executivo e legislativo praticassem violações? O que torna um “ativismo” judicial melhor que um “ativismo executivo”, como aquele do Ato Institucional n. 5?, só para refletirmos sobre um, dentre vários exemplos.
As metáforas e exemplos acima servem para visualizarmos também os tribunais, representando atos de suspensividade da Constituição, quando assumem posturas “vulcânicas” (que suplantam a Constituição) ou de “batalha” política (que suplantam a jurisdição e o direito).
O que o falecido presidente James Garfield disse não foi o mesmo dito pelo ministro Nelson Hungria, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Mandado de Segurança n. 3.557/DF, em novembro de 1956, no caso do impedimento presidencial de Café Filho, em período de decretação de Estado de Sítio, insurreição armada e diatribe política com participação do Exército, sob o comando do Ministro da Guerra, general Teixeira Lott.
No seu polêmico voto, temos uma dose ainda mais cavalar de “realismo jurídico”, quando Nelson Hungria afirmou que tanques de guerra e baionetas “estão acima das leis, da constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal” e, respondendo a provocação feita antes do julgamento por Afonso Arinos, em entrevista jornalística, sobre o histórico Mandado de Segurança representar o momento ideal para verificar se os ministros do Supremo “eram leões de verdade ou leões de pé de trono”, respondeu em seu voto que “a espada da justiça é apenas um mero símbolo (...) como pintura decorativa no teto ou na parede das salas de justiça”, mencionando-se, ainda, que esta espada não poderia ser “oposta a uma rebelião armada” uma vez que conceder o mandado de segurança contra a autoridade coatora “seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas”.
Não há diferença ontológica entre dizer que “a Constituição é aquilo que a Suprema Corte diz que ela é” e uma afirmação que apenas mudasse o órgão ou pessoa (ou grupo de pessoas) detentora (es) do poder de decisão (escolha), algo que soaria como “a Constituição é aquilo que o Presidente da República, o Füher ou o grupo “insurrecional” com baionetas, fuzis ou armas de assalto” disserem que ela é.
Mas essa foi a ideia de Nelson Hungria, e tem sido o pensamento enraizado nos corações e nas mentes de muitos juristas, que enxergam como antídoto (ou segurança) apenas a garantia de indicação de Juízes que pensem de determinado modo, ou no afastamento de quem pensa diferente, quando mudam as relações de poder. Nos tornamos juristas em clima de torcida futebolística, como denunciado há muitos anos por Lenio Streck[10], ou como mencionado no recente texto do “El País”, comparando o STF a um time de futebol, e os jurisdicionados à torcedores[11].
Por estes e outros motivos, para compreender o significado de “Defender a Constituição”, é inadiável (re)definir a posição da Constituição no contexto das 4 necessidades jurídicas de nossa modernidade tardia, com uma renovada: 1) Teoria das Fontes (que fonte é a Constituição?), 2) Teoria da Norma (que normas provém da (e estão contidas na) Constituição?), 3) Teoria da Decisão (quais os limites e que tipo de decisão que defende – adequadamente – a Constituição?), e, 4) Teoria da Interpretação (quais os parâmetros, limites e condições de possibilidade de interpretar a fonte normativamente concretizada através de uma decisão, constitucionalmente adequada?)[12]
E isto a partir de um entrelaçamento, como condição de possibilidade hermenêutica, que considere (e permita) compreender o Direito como um conceito interpretativo[13], e cuja exploração mais fecunda, relevante e constitucionalmente apropriada parece advir dos marcos da CHD – Crítica Hermenêutica do Direito[14], ou seja, aquela matriz teórica do direito que envida esforços para que a Constituição não seja “Não-Constituição”, ou subvertida por atos voluntaristas e, portanto, transformada em álibi (ou pretexto) perfeito para as mais perigosas atrocidades jurídicas, por mais bem intencionadas que sejam. A CHD, por questão de princípio, não admite que os fins suplantem os meios, e nem admite a ausência de limites, pois nem tudo pode ser inconstitucional.
A Crítica Hermenêutica do Direito, portanto, é uma verdadeira matriz teórica, não como uma epistemologia tradicional ou filosofia das ciências, mas como uma “epistemologia hermenêutica”, já produtora de muitas ideias concebidas sob seu guarda-chuva teórico, como a teoria da Constituição adequada aos países de modernidade tardia, a tese da resposta adequada a? Constituição, a noção de autonomia do direito, a formulação de que por trás de toda regra ha? um princípio, a crítica às teorias argumentativas e ao neoconstitucionalismo, a resistência ao “pamprincipiologismo”, bem como a postura crítica ao ativismo e ao solipsismo judicial, além do desenvolvimento de uma robusta teoria da decisão jurídica[15].
Numa síntese necessária: a resposta correta para cada caso concreto de violação à Constituição precisa estar revestida (e também será resultante) da chamada “condição hermenêutica suprema”, qual seja, a suspensão dos prejuízos que ocorrem quando somos interpelados por algo, ou no dizer de Gadamer: será uma hermenêutica adequada aquela em que a própria compreensão da realidade da história esteja relacionada a própria coisa em questão, também vinculada a chamada “consciência dos efeitos da história”, que cumpre o papel de verdadeira “moralidade institucional”[16].
Agregue-se a isso a observação de que é importante não perder de vista os chamados “12 Pontos de Streck”, demonstrativos de que é inviável e inconsistente sustentar a dualidade entre (casos fáceis) “easy cases” e (casos difíces) “hard cases”, do ponto de vista da dupla estrutura da linguagem, pois é preciso levar a Constituição (e sua interpretação aplicada) à sério, não permitindo-se que se fale “qualquer coisa sobre qualquer coisa”, compreendendo que “interpretar é explicitar o compreendido”[17]. Neste sentido, não se pode falar no HC 126.292/SP, julgado pelo STF em 2016, como sendo um “hard case”.
Também por isso, a inversão (ataque/defesa e interpretação da norma superior à luz de norma inferior) arbitrária e solipsista só seria permitida em um universo de sentido invertido, ou “non sense”, como na narrativa de Lewis Carrol em “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Através do Espelho”, pois o “dentro” e o “fora” precisam ser diferenciados assim como “norma acima” e “norma abaixo”, sob pena do texto Constitucional ser transformado, de maneira ilegítima e inconstitucional, disso resultando a mutação que transmuda os alicerces de sentido para elementos extratextuais presentes apenas na mente do “narrador de estórias constitucionais”, transformado em “fonte” autorreferente de suas próprias interpretações, a partir de narrativas “nonsensicais”.
Alias, só se admitiria a presença exclusiva e preponderante de tais “fenômenos extralinguísticos”[18] (relembro ainda de “Alice”) se estivermos diante de algo parecido com uma “Constituição Invisível”, tal qual descrita por Laurence Tribe[19], criticado, neste particular, exatamente por isso, além de favorecer (ou privilegiar acriticamente) a inadmissível discricionariedade: quando se refere ao termo “invisível”, referindo-se, na verdade, a elementos extratextuais de interpretação, e se a distinção entre uma “Constituição visível” e uma “Constituição invisível” não parece ser muito útil, torna-se necessário focar na distinção que realmente importa: doutrina e sentido[20].
Não se deve confundir a proposta de Tribe sobre a “constituição invisível” com a proposta hermenêutica de Akil Reed Amar sobre o “Intratextualismo”[21], mas a eventual mixagem de tais propostas hermenêuticas é demonstrativa de que a Constituição pode servir como álibi retórico e pretexto discricionário enquanto “fonte”, “norma” interpretada/aplicada, embora não se admita a possibilidade de cisão entre “compreensão-interpretação-aplicação” (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi)[22].
Além do mais, é inquestionável a relação existente entre posturas discricionárias (que subvertem a relação entre norma superior e norma inferior e/ou lastreadas em argumentos que torcem o (con)texto da Constituição) e o positivismo jurídico, mas isso decorre de uma má compreensão sobre este último. Propositalmente ou não, costuma-se ignorar que um dos aspectos inerentes ao positivismo é que, desde o início, ele possui como característica fundamental, justamente, a discricionariedade[23].
Relembremos que discricionariedade significa “excesso”, e é preciso recordar que há uma fronteira entre a decisão judicial (notadamente, a decisão de “defesa da constituição”) e a escolha política, uma vez que podemos imaginar direito e política como “dois grandes reinos”, como refletiu Clarissa Tassinari: aquele elemento (discricionariedade) seria o muro de contenção que separa os dois reinos a partir dos tijolos soerguidos desde o interior das cercanias da política[24]. É justamente neste quadrante em que ataque (à Constituição) não pode significar defesa (da Constituição), e norma superior não pode ser tida por norma inferior, por ato decorrente da exclusiva escolha política do intérprete.
III. AS CHAVES MAQUIAVÉLICAS DO “GOLPE”
Fica aí, aliás, exposto o cerne maquiavélico da diatribe político-jurídica, na exata medida da expressão (imagem) utilizada em “O Príncipe”, acerca da necessidade de o governante saber ser, a um só tempo, Leão e Raposa (respectivamente, para espantar os lobos com a força, e se defender das armadilhas, através da esperteza)[25] e que, assimilado pela maioria formada dos ministros do STF, acaba por representar duas situações que se complementam na inadequação da interpretação constitucional levada a efeito no HC 126.292.
Para ilustrar, no caso ex parte Milligan (1866), as imagens que suplantam a Constituição, ora são os trovões da guerra, ora o “Direito Vulcânico”, ora as “cinzas na Suprema Corte de Pompéia”. No caso Café Filho, pelo STF, MS 3.557/DF (1956), o que suplantou a Constituição foram as “baionetas” e os “tanques de guerra”, com expressa referencia a leões. Como será abordado neste artigo, no caso do Habeas Corpus n. 126.292/SP, o que suplantou a Constituição de 1988 foram a suposta “insatisfação social” com a impunidade, números estatísticos percentuais de baixo provimento de recursos especiais e extraordinários criminais, o suposto uso “protelatório” dos recursos, e sistema que supostamente funcionaria diferentemente para “ricos” e para “pobres”, como elementos linguísticos extratextuais não inseridos na Constituição de 1988, a partir de decisão que se fundamenta também no regime constitucional da ditadura militar.
Portanto, primeiro, assume-se aqui a premissa de que “Golpes de Estado Judiciais” podem ser realizados por juristas que encarnam o cerne Maquiavélico da imagem de Leões e Raposas, em todo o caso, para suplantar a Constituição, pela força, ou pela astúcia argumentativa de elementos extratextuais e meta-jurídicos.
Segundo, ressalta-se o chamado “momento maquiavélico” percebido no republicanismo norte-americano, sobre o qual J. G. A. Pocock[26] mencionou ser algo compreendido de duas formas: 1) denotativo do momento e da maneira em que o pensamento de Maquiavel surgiu (definidos temática e seletivamente), e, 2) denotativo de aspectos ligados ao fato de que a república teria sido vista confrontando a ideia de sua própria finitude temporal, na tentativa de se manter política e moralmente estável num período intenso de eventos concebidos como essencialmente destrutivos a todos os sistemas de estabilidade secular, ligados ao trio: “virtude”, “fortuna” e “corrupção”.
Portanto, estudar o pensamento florentino significa estudar como Maquiavel e seus contemporâneos encararam tais expressões. Como síntese possível, observo que é isso o que permite observarmos, desde a tradição jurídica norte-americana, uma disputa “campal” pela indicação das vagas para os cargos de Justice da Suprema Corte, encampada com brutalidade entre republicanos e democratas, ao tempo em que, não apenas pela mera tradição jurídica (common law; precedente e stare decisis), há a mais acentuada adoção do republicanismo maquiavélico sobre o “ridurre ai principii”[27], transformado no “princípio curativo” (“healing principle”) pelos constituintes norte-americanos de 1787.
Alguns deles acreditavam estar diante de algo que permitiria o “aperfeiçoamento” da Constituição norte-americana (ligado ao poder de revisão e também ao poder de realizar “aditamentos” constitucionais), significando não apenas a expectativa de um poder constituinte permanente, mas especialmente um poder constituinte permanente institucionalmente identificado: o fundamento do poder de revisão constitucional no federalismo norte-americano, mas não a partir da Suprema Corte[28].
Maquiavel discute o tema da perspectiva de prevenir as ameaças de corrupção, argumentando que os chamados “corpos mistos” (como as repúblicas, monarquias e as religiões) teriam uma existência mais longa se forem renovados periodicamente com o regresso aos seus “princípios iniciais”, e tais princípios seriam virtuosos por natureza; como esta virtude se corromperia com o tempo, apenas a interrupção deste processo degenerativo teria o condão de evitar a morte do corpo social, assim como na igreja, pois se a igreja católica não tivesse retornado “às suas origens através de São Francisco ou São Domingos, estaria totalmente extinta”[29].
Durante a fase prévia à Independência Americana, no momento constituinte, a ideia de Constituição (em John Adams) sugere uma linha tradicional (com um mecanismo combinado de poderes), mas há a introdução de um elemento novo, qual seja, a stamina vitae, vale dizer, as regras e normas que não podem ser infringidas, pois dão vida ao corpo que constitui a comunidade, segundo Bernard Bailyn e Ricardo Leite Pinto, que representam um motivo especial de proteção tanto às cláusulas pétreas quanto à separação de poderes[30].
Portanto, o suposto discurso iluminista de que o STF deveria fazer com que HC 126.292 empurrasse a história, com a intepretação que “emenda” o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, para “salvar a nação”, consegue ser a um só tempo maquiavélico e anti-maquiavélico: 1) é maquiavélico porque encarna a percepção de raposas e leões, para usar astúcia e força bruta em seu elã hermenêutico “peculiar”; e 2) é anti-maquiavélico quando descarta a necessidade de preservação dos princípios e normas fundamentais que mantém a Constituição, como as cláusulas pétreas e a separação de poderes.
Embora haja certa tentativa de fazer com que a Suprema Corte Americana seja vista como uma espécie de “atualizadora do projeto constitucional”, no sentido maquiavélico, isso não se aplica ao Brasil, pelos motivos que são os mais óbvios, mas as vezes o óbvio precisa ser dito: diferenças nos modelos e percepções constituintes, aliado à diferença no desenvolvimento dos modelos de identidade jurídica, com suas próprias complexidades, e a partir do momento em que não podemos falar no Brasil de qualquer indício de delegação (implícito ou explícita) para que o STF pudesse exercer os poderes Constituintes de maneira permanente. Antes, o contrário.
Quando a última Ditadura Civil-Militar Brasileira pretendeu pensar a abertura política, imaginou-se projeto de reforma que transferisse os poderes da ditadura ao STF, que seria transformado em uma espécie de Conselho Constitucional, com poderes de governo e jurisdicionais, conforme relembrou o antigo ministro Themístocles Cavalcante:
“O Projeto de Reformas Políticas apresentado pelo governo em junho de 1978 pro[punha] a criação de um Conselho Constitucional, cujas funções políticas preten[diam] substituir a ação discricionária do governo revolucionário. Não se trata[va], na realidade, de uma Corte Constitucional, cuja função precípua seria o controle da constitucionalidade, geralmente a cargo de órgãos jurisdicionais. Ao que parece, esse Conselho Constitucional é [era] uma excrescência no sistema geral da Constituição acumulando ação constitucional, com funções tipicamente políticas em uma tentativa de recolocar o país num Estado de Direito”[31].
Mas esse órgão imaginado pela ditadura, visualizando no STF uma espécie de Conselho Constituinte com poderes de gestão estatal e constituinte permanente não foi aceito, e também não foi o que se desenhou institucionalmente na Assembleia Nacional Constituinte, vale dizer, não adotamos aqui nenhum grama do peso do argumento sobre o “ridurre ai principii” a partir do Supremo[32], que segundo alguns teria se transformado no “princípio curativo” (“healing principle”) pelos constituintes norte-americanos de 1787.
Sem negligenciar os vários problemas que uma simples cópia como essa pode representar, juntamente com nossos próprios problemas, observo que mistura-se força bruta irracional (Leão) com astuta racionalidade (Raposa) para finalidades que subvertem (ou pouco se importam com) a dupla relação entre meios e fins (de antecedência e consequência, e de não subversão – inferior por superior), culminando com a Constituição sendo tornada irrelevante, suplantada decorativamente, como adorno ou adereço simbólico, decorrente (principalmente) de uma não compreensão sobre a dupla transformação entre a transição necessária da Constituição moderna para a Constituição contemporânea.
Por um lado, como aponta Giorgio Pino, a partir de Giovani Tarello, a passagem da Constituição como “manifesto político” para a Constituição como “norma jurídica”, e, por outro lado, a “passagem da concepção da Constituição como <<limite>> para a concepção da Constituição como <<fundamento>>”[33].
Manifestos podem ser “rasgados” e limites podem ser “empurrados”. O posicionamento (vencedor) de Nelson Hungria no Mandado de Segurança de Café Filho, contrasta com o voto (vencido) do ministro Ribeiro da Costa, neste mesmo caso, para quem “a função do juiz [seria] aplicar a Constituição”, e embora o mesmo ministro também tenha mencionado que, na condição de Juízes Constitucionais (defensores da Constituição), e para que estes a salvaguardassem, deveriam fazê-lo “não como páginas frias, que ali estão, mas como letras de fogo, que queimam a quem se aproximar delas, para viola?-las. Esta e? a constituição, regra e caminho de grandeza traçado pelo povo e para o povo”, mas acabou concluindo que com o resultado do julgamento, “arrebataram [seu] instrumento de trabalho, [seu] gla?dio e [seu] escudo: a Constituição”.
O mesmo problema será verificado no julgamento do Habeas Corpus n. 126.292/SP, em cuja postura dos votos vencedores é possível identificar certo cheiro florentino, num artificial (e oculto) “revival” maquiavélico que, valendo-se de uma aura de pretenso “Poder Constituinte Permanente”, se arrogou o poder de revisar e declarar inconstitucional uma norma constitucional originária. Quais as consequências, se acaso existirem, e quais os limites, se eles também forem palpáveis e existentes?
IV. O HABEAS CORPUS N. 126.292/SP
São relativamente recentes as discussões conceituais e acadêmicas sobre o tema “golpe de Estado Judicial”[34]. O presente artigo busca refletir sobre isso, tendo em vista a decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito do Habeas Corpus n. 126.292/SP, que foi “editada”[35] em fevereiro de 2016, para fixar (por maioria de votos) a tese de que seria possível o início do cumprimento da pena privativa de liberdade antes do efetivo transito em julgado, após o julgamento em segundo grau de jurisdição.
A tese presente neste artigo, alude ao fato de que a decisão de 2016 se enquadra naquilo que juristas estrangeiros vêm denominando de “Golpe de Estado Judicial”, também decorrente de um “bootstraping” (descolamento da fonte constitucional), mais se assemelhando a uma espécie de “Medida Provisória Judicial”, cujos pressupostos emprestados de “relevância” e “urgência” (fundamentos ocultos da “decisão”) são similares à “pretextos” de índole realista à brasileira, arraigados nos três maiores mantras do realismo jurídico: (1) a Constituição é aquilo que a Suprema Corte diz que ela é; (2) Direito é Política; e, (3) decide-se antes, para só depois fundamentar, que foram as chaves para o “Golpe de Estado Judicial” no Habeas Corpus n. 126.292/SP.
Na ocasião, o STF mudou radicalmente a orientação jurisprudencial até então prevalecente, fixada no Habeas Corpus n. 84.078/MG, que por sua vez havia fixado (em fevereiro de 2009) o entendimento jurisprudencial sobre a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena, para deixar registrado que o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal não permitiria a prisão decorrente de sentença, senão depois do transito em julgado da sentença penal condenatória.
Cabe o registro de que de 1988 até 2009, vigorou entre nós o mesmo entendimento de antes da Constituição de 1988, o que pode ter se dado, conforme esta pesquisa explorará, em razão da chamada “interpretação retrospectiva”, e de que, quando da alteração interpretativa realizada no 2009, buscou-se privilegiar a normatividade da Constituição, mas de 2016 em diante, a Corte voltou ao modelo de interpretação retrospectiva, violando a Constituição Federal de 1988.
É que a Constituição ora vigente (novidade inaugurada em 1988) trouxe expressa vinculação do trânsito em julgado para o início do cumprimento da pena (art. 5º, LVII), muito embora a Suprema Corte, em muitos casos, tenha adotado a partir de 1988, inicialmente, modelo interpretativo no qual um dispositivo constitucional novo é interpretado à luz – e sob a perspectiva – do ordenamento constitucional anterior, ou “interpretação retrospectiva”, como prefere o professor e ministro Luís Roberto Barroso[36] ou como apontado por Lenio Streck, “é possível afirmar que diante da inovação representada pela Constituição [de 1988] a dogmática jurídica continuou a operar com o velho modelo interpretativo que sempre operou no Brasil”[37].
No âmbito do julgamento de 2016, no HC n. 126.292/SP, o parecer do Ministério Público Federal (Procuradoria-Geral da República), fiscal do ordenamento jurídico-constitucional (custos constitutionis), foi pela concessão da ordem, em razão de uma peculiaridade ocorrida no caso concreto: o paciente havia sido condenado em primeiro grau, com direito à recorrer em liberdade, mas somente a defesa apelou, tendo o Tribunal de Justiça negado provimento à apelação, e decretado a prisão do recorrente, fazendo com que a PGR dissesse que o tribunal acabou: “afrontando assim a proibição da reformatio em pejus”.
Em termos gerais, o STF interpretou o art. 5º, inciso LVII, da CF/88 no sentido de que ele permitiria o imediato início do cumprimento da pena após o julgamento em segundo grau de jurisdição, com a tese de que haveria intensa “insatisfação social” com a impunidade, números percentuais de baixo provimento de recursos especiais e extraordinários criminais, uso “protelatório” dos recursos, e sistema que funcionaria diferentemente para “ricos” e para “pobres”. Argumentos, evidentemente, de política pública e, como tais, meta-jurídicos.
Após o STF fixar a nova tese, o paciente opôs Embargos de Declaração, arguindo que a decisão precisava ser modulada, por representar mudança radical na jurisprudência do Tribunal, e que além disso deixava de considerar o art. 283 do CPP, tendo dito o ministro relator, nos Embargos de Declaração, que tal argumento seria improcedente, pois “[a] dicção desse dispositivo, cujo fundamento constitucional de validade e? o princípio da presunção de inocência, comunga, a toda evidência, da mesma interpretação a esse atribuída. Assim, o controle da legalidade das prisões decorrentes de condenação sem o trânsito em julgado submete-se aos mesmos parâmetros de interpretação conferidos ao princípio constitucional.”
Aqui, o falecido Ministro Teori Zavascki estava repristinando seu entendimento dos tempos em que era Juiz do STJ, sobre a “miscigenação normativa”, quando estabeleceu a premissa de que a repetição de norma da Constituição em norma infraconstitucional seria “típica hipótese [de] miscigenação jurídica imposta pela pluralidade de fontes (...) [e que] além de incorporar a essência da norma superior (que, no fundo, não é uma norma propriamente de processo, mas de afirmação do princípio da presunção de validade dos atos normativos, presunção que somente pode ser desfeita nas condições ali previstas), esses dispositivos estabelecem o procedimento próprio a ser observado pelos tribunais para a concretização da norma constitucional”[38].
Foi exatamente por isso que o Conselho Federal da OAB e um Partido Político ingressaram com duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC n. 43 e ADC n. 44), questionando - educadamente - ao STF se por acaso seria inconstitucional o artigo 283 do CPP (que repete, como visto, a essência do comando da norma constitucional), com a inicial do CFOAB sendo firmada pelos juristas Lenio Streck, Andre Karam Trindade, Claudio Lamachia, Juliano Breda e Oswaldo Ribeiro Jr, também com base na tese sobre o “espelhamento”, para dizer que se o STF declarasse inconstitucional o art. 283 do CPP, estaria declarando igualmente, por via reflexa, a inconstitucionalidade de norma constitucional originária (tese de Otto Bachoff, inclusive rechaçada pelo STF).
É este o busílis da questão. Por mais que se tente dizer o contrário, o que o STF fez (e está a fazer) foi declarar a inconstitucionalidade de uma norma constitucional originária, que não se aproxima, em nenhuma hipótese, de mutação constitucional, ao menos no que se refere ao mais denso escrito sobre os limites da mutação constitucional, nas palavras de Konrad Hesse que, analisando o tema, mencionou que em casos como esse, mais se recomenda uma nova constituição, pela impossibilidade de mutação[39].
Como será abordado, o julgamento do HC n. 126.292/SP, por parte do Supremo Tribunal Federal, representa uma espécie de “bootstraping”, com descolamento da Constituição enquanto fonte, e com aspectos daquilo que a recente literatura jurídica vem denominando de “Golpe de Estado judicial”.
É importante analisar os aspectos explícitos e os aspectos implícitos contidos no acórdão do STF, quando do julgamento do HC n. 126.292/SP, para uma análise ampliada e “não apaixonada”.
O ministro relator, Teori Zavascki, utiliza como argumento inicial de sua conclusão pela possibilidade de execução antecipada da pena de prisão, antes do efetivo transito em julgado, o fato de que na vigência inicial da Constituição de 1988, do seu início e até 2009, a Corte admitia o entendimento: “a execução provisória da pena privativa de liberdade era orientação que prevalecia na jurisprudência do STF”.
Para tanto, o relator fez referencia a 10 outros casos anteriores, como forma de “robustecimento” retórico de seu ponto de vista. Como forma de fazer deste artigo uma pesquisa que se preocupa com a investigação da atribuição de sentido à Constituição, realiza-se sobre esses 10 casos citados uma espécie de “mapeamento da rede de citações”, visando deixar esclarecidos alguns pontos, quais seja: 1) localizar a origem mais remota do entendimento judicial, a partir a observação atenta dos casos citados (que também citam outros casos); 2) localizar a efetiva fonte que embasou o entendimento.
V. REDE DE CITAÇÕES DO HC N. 126.292/SP
Conforme se pode observar, a partir de Marcos Moraes e Outros, usando a mesma técnica para consolidação de dados, referindo-se a citações pela sua conceituação na ABNT, temos a citação como a
“menção de uma informação extraída de outra fonte”. Assim, a partir da citação, um documento remete a outro, estabelecendo inter-relação entre eles. As citações em trabalhos acadêmicos são utilizadas para estabelecer ligações com outros trabalhos A Análise de Citações baseia-se na premissa de que os pesquisadores concebem seus trabalhos a partir de obras anteriores e demonstram isso citando as obras precedentes em seus textos e em uma lista ordenada e padronizada de referências.”[40]
Assim, buscaremos fazer uma busca pelos 10 casos citados pelo Ministro Teori Zavascki no HC n. 126.292/SP, com vistas a chegar à fonte originária destas 10 citações, que por sua vez estabelecerão redes de citações próprias, para sabermos se estes 10 casos referidos em 2016 para fundamentar o posicionamento do STF, tem sua origem na Constituição de 1988, ou se a origem é distinta. Eis os 10 casos citados:
- HC 68.726 (Rel. Min. Ne?ri da Silveira), de 28/6/1991;
- HC 74.983, (Rel. Min. Carlos Velloso), de 30/6/1997;
- HC 72.366/SP (Rel. Min. Ne?ri da Silveira), DJ 26/1/1999;
- HC 71.723, (Rel. Min. Ilmar Galva?o), DJ 16/6/1995;
- HC 79.814, (Rel. Min. Nelson Jobim), DJ 13/10/2000;
- HC 80.174, (Rel. Min. Mauricio Correa), DJ 12/4/2002;
- RHC 84.846, (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ 5/11/2004;
- RHC 85.024, (Rel. Min. Ellen Gracie), DJ 10/12/2004;
- HC 91.675, (Rel. Min. Cármen Lúcia), DJe de 7/12/2007;
- HC 70.662, (Rel. Min. Celso de Mello), DJ 4/11/1994;
Sobre cada um destes casos, busca-se mapear alguns dados específicos, como por exemplo, quantas e quais foram as decisões pretéritas mencionadas (exclusivamente sobre o mesmo tema) como forma de robustecimento da autoridade do julgado, e qual o contexto fático resumido, para em um segundo momento realizarmos um segundo mapeamento das origens da autoridade jurisprudencial (Rede n. 1):
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Autos |
Relator |
Data |
Fonte Leg. |
Casos Citados |
Cit. Jurisp. mais antiga |
Resumo da Decisão |
1.1 |
HC 68.726 |
Néri da Silveira |
06.1991 |
Arts. 5º, LVII, CF; 27, § 2º, Lei 8.308/90; 699 do CPP. |
N/C |
N/C |
Mantido entendimento sobre a possibilidade da prisão do paciente após a confirmação da sentença pelo TJ/RJ. |
1.2 |
HC 70.662 |
Celso de Mello |
06.1994 |
N/C |
HC 70.798; |
HC 70.798 (06.05.1994) |
Entre outros motivos estranhos ao tema da pesquisa, mantido o entendimento de que não é cabível o arbitramento de fiança execução antecipada da sentença penal condenatória, impugnada por recurso não dotado de efeito suspensivo. |
1.3 |
HC 71.723 |
Ilmar Galvão |
03.1995 |
Art. 117, da LEP. |
HC 68.012; HC 68.123; RHC 65.589; HC 68.118; |
RHC 65.589 (23.10.1987) |
Mantido o entendimento de que pode haver execução provisória da pena privativa de liberdade em regime mais rigoroso, se no local não existir casa de albergado. |
1.4 |
HC 72.366 |
Néri da Silveira |
09.1995 |
Arts. 5º, LVII, e LXI, CF; Art. 393, I; 408, § 1º; 594, 595 e 669, I, CPP; Súmula 9/STJ; |
HC. 68.841; HC 68.726; HC 69.964; HC 69.535; HC 71.874; HC 69.696; HC 69.714; HC 69.710; HC 45.232; RE 86.297; |
HC 45.232 (21.02.1968) |
Mantido o entendimento, por 6 votos contra 5, de que a sentença penal condenatória de primeiro grau pode evitar que o réu apele em liberdade ao 2º grau, se não for réu primário e for reincidente. |
1.5 |
HC 74.983 |
Carlos Velloso |
06.1997 |
Art. 393, I, CPP; |
RHC 66.720; |
RHC 66.720 (02.09.1988) |
Mantido o entendimento de que “um dos efeitos da sentença condenatória é de ser o réu preso ou conservado na prisão (art. 393, I, CPP)”, chancelado também pelo TJ/RS.
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1.6 |
HC 79.814 |
Nelson Jobim |
05.2000 |
Art. 321, § 4º, RISTF; |
HC 68.726; RHC 38.254; HC 72.518; HC 73.930; HC 74.852; HC 78.051; |
RHC 38.254 (27.01.1961) |
Mantido o entendimento de que é possível a execução antecipada da sentença penal condenatória, impugnada por recurso não dotado de efeito suspensivo. |
1.7 |
HC 80.174 |
Maurício Correa |
06.2000 |
Art. 393, I; 594; 597 do CPP; |
HC 72.610; |
HC 72.610 (06.09.1996) |
Mantido o entendimento de que a apelação não tem efeito suspensivo, e que para apelar ao 2º grau , em regra, o réu deveria se recolher à prisão; mantido o entendimento de que o princípio da não culpabilidade somente impede que se lance o nome do réu no rol dos culpados antes do transito em julgado. |
1.8 |
RHC 84.846 |
Carlos Velloso |
10.2004 |
Art. 5º, LV, LVII e LXVIII da CF; 27, § 2º, Lei 8.308/90 |
HC 77.978; HC 74.852; HC 72.102; |
HC 72.102 (20.04.1995) |
Mantido o entendimento de que a pendência de recurso especial ou extraordinário, por não possuírem efeito suspensivo, não impedem a execução antecipada da pena. |
1.9 |
RHC 85.024 |
Ellen Gracie |
11.2004 |
N/C |
HC 81.392; HC 81.003; HC 81.964; HC 81.340; HC 82.812; HC 83.152; HC 83.067; HC 83.982; HC 84.347 (declinou a comp. sem analisar o mérito); |
HC 81.003 (14.08.01) |
Mantido o entendimento de que a pendência de recurso especial ou extraordinário, por não possuírem efeito suspensivo, não impedem a execução antecipada da pena. |
1.10 |
HC 91.675 |
Cármen Lúcia |
09.2007 |
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RHC 85.024; HC 85.616; HC 85.886; RHC 84.846 |
RHC 84.846 (19.10.04) |
Mantido o entendimento de que a pendência de recurso especial ou extraordinário, por não possuírem efeito suspensivo, não impedem a execução antecipada da pena. |
Assim, com relação as citações mais antigas contidas na rede de citações pesquisada (supra), podemos fazer um outro mapeamento nos mesmos moldes acima mencionados, para vislumbrar a origem mais remota da fonte jurisprudencial do entendimento fixado do Habeas Corpus n. 126.292/SP, mas desde já podemos dizer que é possível identificar traços de “interpretação retrospectiva”, tendo em vista que é possível constatar nesta primeira rede a presença de casos que foram julgados sob a égide do ordenamento jurídico de uma Constituição anterior a 1988.
Além do mais, verifica-se que os temas tratados nos casos citados nem sempre são convergentes, ou melhor dizendo, dos 10 casos citados pelo relator para justificar seu ponto de vista, apenas em 4 deles foi possível encontrar convergência e similaridade fático-jurídica, pois nos 6 outros casos citados a situação era distinta, sendo um ponto de fragilidade na fundamentação, com o poder de macular o argumento jurídico subjacente.
Na primeira “rede de citações” supramencionada, em análise e leitura dos acórdãos, e considerando os casos mais antigos utilizados como forma de robustecimento da decisão, identificamos os seguintes julgados (9) mais antigos de cada uma das decisões, com vistas a buscar a origem da autoridade jurídica que está na raiz do Habeas Corpus n. 126.292/SP:
- RHC 38.254 (27.01.1961);
- HC 45.232 (21.02.1968);
- RHC 65.589 (23.10.1987);
- RHC 66.720 (02.09.1988);
- HC 70.798 (06.05.1994);
- HC 72.102 (20.04.1995);
- HC 72.610 (06.09.1996);
- HC 81.003 (14.08.2001);
- RHC 84.846 (19.10.2004);
Sobre cada um destes 9 casos, também buscamos mapear alguns dados específicos, quais sejam, quantas e quais foram as decisões pretéritas mencionadas (exclusivamente sobre o mesmo tema) como forma de robustecimento da autoridade do julgado, e qual o contexto fático resumido, para em um outro momento realizarmos um terceiro mapeamento das origens da autoridade jurisprudencial, até chegarmos na origem mais remota de autoridade da rede de citações a partir do Habeas Corpus n. 126.292/SP (Rede n. 2):
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Autos |
Relator |
Data |
Fonte Leg. |
Casos Citados |
Cit. Jurisp. mais antiga |
Resumo da Decisão |
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2.1 |
RHC 38.254 (vinculado ao n. 1.6 da Rede n. 1) |
Ribeiro da Costa |
01.1961 |
Art. 808, § 1º, do CPC/39; Art. 92 CPP; |
N/C |
N/C |
Estabelecido o entendimento de que quando do julgamento de crime falimentar, não se pode esperar a resolução cível antes da penal, verbis: “o recurso extraordinário é, por sua natureza, de julgamento demorado, pois o Supremo Tribunal Federal julga inúmeros processos e a ação penal ficaria inteiramente sem efeito, porque sobreviria, fatalmente, a prescrição”. |
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2.2 |
HC 45.232 (vinculado ao n. 1.4 da Rede n. 1) |
Temístocles Cavalcanti |
02.1968 |
Art. 48 do Decreto-Lei 314/67; Art. 38 da Lei 1.200; |
N/C |
N/C |
Fixou o entendimento que declarou a inconstitucionalidade do art. 48 da Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 314/67), para que nem a prisão em flagrante e nem o recebimento da denúncia pudessem conduzir à suspensão automática do exercício da profissão, do emprego ou do cargo público. |
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2.3 |
RHC 65.589 (vinculado ao n. 1.3 da Rede n. 1) |
Oscar Corrêa |
10.1987 |
Art. 594, CPP; Art. 35 da Lei 6368/76; |
N/C |
N/C |
Mantém o entendimento de que o condenado por trafico de drogas deve se recolher a prisão para apelar ao 2º grau. |
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2.4 |
RHC 66.720 (vinculado ao n. 1.5 da Rede n. 1) |
Carlos Madeira |
09.1988 |
Art. 393, I, CPP; |
N/C |
N/C |
Mantém o entendimento de queque é efeito da sentença penal condenatória de 1º grau conduzir o réu à prisão, ou nela ser mantido se já estiver preso. |
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2.5 |
HC 70.798 (vinculado ao n. 1.2 da Rede n. 1) |
Sepúlveda Pertence |
05.1994 |
Art. 324, IV, CPP; |
HC 69.984; HC 68.726; HC 69.605; HC 68.968 |
HC 68.726 (28.06.1991) Obs: Provoca circularidade, pois retorna ao n. 1.1 da Rede n. 1 |
Manteve o entendimento de que a decisão condenatória sujeita exclusivamente a recurso especial ou recurso extraordinário, porque despidos de efeito suspensivo, autoriza, por si só, a prisão imediata do acusado. |
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2.6 |
HC 72.102 (vinculado ao n. 1.8 da Rede n. 1) |
Celso de Mello |
04.1995 |
Arts. 5º, LVII, CF; 27, § 2º, Lei 8.038/90; |
HC 67.841; HC 69.026; HC 55.118; HC 59.757; HC 68.453; HC 70.792; HC 71.159; HC 71.993; |
HC 55.118 (16.06.1977); |
Manteve o entendimento de que a decisão condenatória sujeita exclusivamente a recurso especial ou recurso extraordinário, porque despidos de efeito suspensivo, autoriza, por si só, a prisão imediata do acusado |
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2.7 |
HC 72.610 (vinculado ao n. 1.7 da Rede n. 1) |
Celso de Mello |
09.1996 |
Arts. 5º, LVII; LXI; 93, IX, , CF; 617, CPP; § 2º, 27 da Lei 8.038/90; |
HC 55.118; HC 59.757; HC 70.338; HC 71.159; HC 68.453; HC 71.933; HC 71.739; HC 72.171; HC 72.621; HC 72.366; RHC 58.032; |
HC 55.118 (16.06.1977); |
Manteve o entendimento de que prisão decretada em segundo grau, ex oficio, sem recurso do MP, em caso de apelação exclusiva da defesa, não caracteriza reformatio in pejus, e que o direito de recorrer em liberdade abrange apenas a apelação criminal, não se estendendo aos recursos especial e extraordinário, que não têm efeito suspensivo. |
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2.8 |
HC 81.003 (vinculado ao n. 1.9 da Rede n. 1) |
Maurício Corrêa |
08.2001 |
Art. 1º, II, Decreto-lei n. 201/67; Art. 393, I; 594 CPP; 27 da Lei 8.038/90; 105 da LEP; |
HC 69.605; HC 72.465; HC 78.051; HC 77.945; |
HC 69.605 (04.12.1992) |
Manteve o entendimento de que em ação penal originária de Tribunal de Justiça que condena prefeito municipal em única, não permite recurso em liberdade. |
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2.9 |
RHC 84.846 (vinculado ao n. 1.10 da Rede n. 1) |
Carlos Velloso |
10.2004 |
Arts. 5º, LVII; § 2º, 27 da Lei 8.038/90; |
HC 77.978; HC 72.102; HC 74.852; |
HC 72.102 (20.04.1995)
Obs: Provoca circularidade, pois retorna ao n. 1.8 da Rede n. 1 |
Manteve o entendimento de que a decisão condenatória sujeita exclusivamente a recurso especial ou recurso extraordinário, porque despidos de efeito suspensivo, autoriza, por si só, a prisão imediata do acusado. |
Com efeito, observadas as raízes a partir da Rede n. 2, observamos que 4 dos 9 casos mais antigos previstos na Rede n. 1 não fazem referencia a julgados anteriores (números 2.1, 2.2, 2.3 e 2.4). Dos 5 casos restantes, dois deles provocam circularidade, pois retornam a julgados referidos na Rede n. 1 (n. 2.5 e 2.9). Sobram, portanto, os casos n. 2.6 , 2.7 (que citam o mesmo caso julgado mais antigo) e 2.8, quais sejam: HC n. 55.119, de 16.06.1977; HC n. 69.605, de 04.12.1992. Confira-se, portanto, idêntica análise na Rede n. 3:
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Autos |
Relator |
Data |
Fonte Leg. |
Casos Citados |
Cit. Jurisp. mais antiga |
Resumo da Decisão |
3.1 |
HC 55.119 |
Cordeiro Guerra |
06.1977. |
Arts. 408, 474, 594 e 596 CPP; |
N/C |
N/C |
Fixa o entendimento de que a alteração ocorrida no CPP, por meio da Lei 5.491/73 não infirma a regra de recolhimento a prisão para apelar, exceto se o réu fosse primário e de bons antecedentes, não podendo ser estendida ao recurso extraordinário, por não possuir efeito suspensivo. |
3.2 |
HC 69.605
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Octavio Gallotti |
10.1992 |
Arts. 5º, LVII; § 2º, 27 da Lei 8.038/90; |
HC 68.726; |
HC 68.726 (06.1991); Obs: Provoca circularidade, pois retorna ao n. 1.1 da Rede n. 1 |
Concedeu a ordem para determinar o recolhimento do Mandado de Prisão, tendo em vista que o acórdão condenatório aquo padecia de vício de fundamentação, mas manteve o entendimento de que a decisão condenatória sujeita exclusivamente a recurso especial ou recurso extraordinário, porque despidos de efeito suspensivo, autoriza, por si só, a prisão imediata do acusado. |
Uma resposta preliminar à investigação sobre a autoridade do Habeas Corpus n. 126.292/SP, após três redes de análise sobre as origens de sua autoridade mais remota, no diz que são anteriores à Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Uma segunda reflexão a respeito nos leva a concluir que se relaciona à sistemática normativa da Constituição da Ditadura Civil-Militar, em ralação à interpretação do Código de Processo Penal, e sua antiga feição que previa a necessidade de recolhimento à prisão para poder apelar contra a sentença penal condenatória, exceto se o réu fosse primário e possuísse de bons antecedentes.
Se esta é a raiz mais remota do Habeas Corpus n. 126.292/SP, é importante registrar que o Supremo Tribunal Federal, em julgamentos anteriores, mas sob a égide da Constituição de 1988, entendeu que é inconstitucional a (não recepção da) exigência de que o réu deva se recolher à prisão para poder apelar, conforme decidido no RHC 83.810 e no HC 103.986, especialmente depois que tal exigência, originalmente prevista no antigo art. 594 do CPP e no art. 31 da Lei do Colarinho Branco (Lei 7.492/86) foi revogada pela Lei 11.719/08.
Assim sendo, a discussão empreendida no Habeas Corpus n. 126.292/SP acaba por realizar a mixagem entre temáticas diversas, como a necessidade de o recorrente se recolher à prisão para poder apelar, efeito suspensivo do recurso extraordinário, mas nenhuma vinculação com a interpretação do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição.
O mesmo entendimento acabou por representar a base jurisprudencial normativa para que se fixasse (em 2016) o posicionamento de que após o julgamento pelo Tribunal de Justiça, deveria o condenado se recolher a prisão para poder interpor os recursos especial e extraordinário, ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, repristinando teses normativas da Constituição anterior, e não da atual.
Se a Constituição de 1988 não foi a baliza normativa para se alterar o entendimento fixado no Habeas Corpus n. 126.292/SP, e se esta constatação pode ser feita empiricamente, para se dizer que a maioria que firmou a suposta interpretação do art. 5º, inciso LVII, da CF/88, então é possível que estejamos diante de um “golpe de estado judicial”, da maneira como abordado teoricamente por alguns juristas contemporâneos.
VI. GOLPE DE ESTADO JUDICIAL OU BOOTSTRAPING (1): FONTE E RIGIDEZ CONSTITUCIONAL.
Ao escrever provocante artigo “The Juridical Coup d’E?tat and the Problem of Authority” para o “German Law Journal”, o jurista Alec Stone Sweet mencionou que a expressão “golpe de estado judicial” significa “a transformação fundamental nas fundações normativas de um sistema jurídico através da decisão de uma Corte”, sendo uma decisão que modifica tanto as noções da Grundnorm de Kelsen, quanto da regra de reconhecimento de Hart (embora sejam coisas diferentes).
Em termos sucintos, o tribunal passa a ser, por evidente, a fonte autorreferente se sua produção de normatividade. Algo conectado a um velho “mantra”, comum em todo o discurso que permeia novas e velhas “vontades de poder”, e relaciona-se à suposta inexistência de “direitos absolutos” e a defesa da tese de que a interpretação “literal”, supostamente, viria a ser a mais pobre das “interpretações”.
Aqui, mais uma vez, a incorreta compreensão do sentido e o alcance de/da “Constituição”, numa expressão que geralmente olvida a urgente necessidade das 4 posturas jurídicas básicas de unicidade (teoria das fontes, teoria da norma, teoria da interpretação e teoria da decisão) mencionada no início do texto. Isso colaborou para que fossem criados “cavalos de Tróia” jurídicos, permitindo que a decisão do HC n. 126.292/SP “refundasse” e fosse (tomada como) condição de possibilidade da “fonte”, cindindo texto e norma de maneira radical e inconciliável. Analisemos a construção.
A fonte. Segundo o artigo 5º, inciso LVII, da CF, podemos ler que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Em poucas e concentradas palavras, a “Constituição como fonte” significa retornar à dicotomia entre constituições rígidas e constituições flexíveis, em Bryce[41] (e além dele). Antes, também, significa situar a Constituição para longe do equívoco de Tribe[42], especialmente para deixar claro o esfacelamento conceitual da metáfora, para fixar-lhe o sentido a partir do cotejo necessário entre “fonte” no realismo de Brutau[43] e a exposição sistemática e pós-positivista de Regla[44].
Aqui importam as distinções e peculiaridades entre Constituições rígidas (e seu oposto) e Constituições analíticas (e seu oposto), cuja relevância está muito mais em se saber os motivos de sua existência do que a descrição de sua aparência, uma vez que é exatamente neste degrau que reside a condição de possibilidade de uma Constituição ser tratada como norma superior, e poder ser reduzida ou ampliada, respeitado o DNA de sua criação.
Embora já pudesse ser vista desde a lógica de Marshall, exposta em Marbury v. Madson em 1803, e ressaltado pelo mesmo Marshall em 1819, em McCulloch v. Maryland, a doutrina distintiva entre “Constituições Rígidas” e “Constituições Flexíveis” foi elaborada em 1884 por James Bryce, primeiro na famosa “The American Commonwealth”[45], depois melhor exposto em “Constitutions”[46], quando Constituição “rígida” é tomada como sinônima de Constituição “Suprema”[47].
É necessário recordar ainda, a partir de leitura de Bryce, que a construção da classificação distintiva entre “Constituições Rígidas” e “Constituições Flexíveis” advém de uma tentativa de “melhorar” a classificação então predominante entre “Constituições Escritas” (Written Constitutions) e “Constituições Não Escritas” (Unwritten Constitutions), pois as constituições não escritas denotam costumes, e quando estes passam a ser gravados em documentos escritos, não podem continuar a ser denominados de “não escritos” pois, conforme menciona Bryce, tais termos não são expressões felizes, embora a distinção que elas intentem expressar seja real[48].
Bryce procurou alguns nomes, todos eles metafóricos, para denotar as qualidades de sua classificação. Móveis e Estacionadas, porque as Constituições não escritas pareciam jamais “descansar”, pois estavam sempre em mudança (modificadas), enquanto as novas Constituições pareciam estáveis e fixas em seu lugar. Bryce pensou ainda em chamar sua nova distinção classificatória de “Constituições Fluidas” e “Constituições Sólidas” ou “Cristalizadas”, pois quando um homem deseja mudar a composição do líquido (não necessariamente de forma química), ele deveria misturar em outro líquido ou dissolver algo sólido, sacudindo a mistura, mas preferiu utilizar outra metáfora, mais simples: Rígidas e Flexíveis, embora partisse da insuficiência da distinção anterior (Escritas e Não Escritas).
A linha que a distinção tentou desenhar, entre estas duas classes de Constituições (escritas e não escritas) não parecia clara, pois em todas as Constituições escritas há (e deve haver) um elemento de uso “não escrito”, enquanto nas Constituições não escritas há a forte tendência de tornar o costume posteriormente escrito, ou de usar o precedente como “praticamente obrigatório”, nas palavras de Bryce: “tornar estes costumes escritos quase equivalem a uma lei formalmente aprovada”[49].
Ou seja, a possível confusão e insuficiência entre elementos da “Constituição escrita” com elementos da “Constituição não escrita” está na base do desenvolvimento da classificação distintiva entre “Constituições rígidas” e “Constituições flexíveis”, e a distinção encontra sua raiz mais profunda entre o que os ingleses e americanos chamam de “Constituições do Common Law” e “Constituições “Estatutárias”, ou na distinção que os romanos faziam entre “ius” e “lex”[50].
Para criar sua “nova” classificação entre Constituições rígidas e Constituições flexíveis, Bryce volta ao Direito Romano para dizer que lá, como em todo o mundo antigo, embora escassos os registros, pode-se acreditar que predominavam Constituições flexíveis, e que no século 2 d.C, havia apenas um tipo de aprovação/promulgação (enactment), pois todas as “leges” aprovadas pela assembleia geral (fossem comitia centuriata ou comitia tributa) possuíam a mesma generalidade e a mesma força, e não havia mais que uma autoridade legislativa: o povo votando na comitia[51]. Essa a Constituição flexível, no pensamento originário do criador da classificação.
Já as Constituições rígidas, a seu turno, estavam ligadas à modernidade, em que se podia distinguir dois tipos de autoridade promulgadora, que influíam na “força normativa” dos documentos promulgados: um Direito chamado “Constituição”, que é “inteiramente superior ao Direito ordinário”, aprovado e revogado no dia-a-dia[52].
Este Direito Superior dependeria das particularidades de cada sistema, podendo ser oriundo de um órgão especial eleito exclusivamente para este propósito, como uma assembleia nacional constituinte, ou um plebiscito submetido aos cidadãos, ou um mesmo grupo, embora deva haver, neste último caso, um tratamento diferenciado quando se tratar da Constituição. Isso é chamado por Bryce de “detalhe”. O essencial, para Bryce, no entanto, era que nos Estados possuidores deste tipo de Constituição, ela estivesse acima das demais Leis, e não pudesse ser modificada pela legislação com autoridade legislativa ordinária. [53]
Além disso, Bryce menciona que de uma maneira estrita, não existia Constituição em Roma e na Grã-Bretanha, ou seja, de um modo em que houvesse um documento fundamental, definidor e distribuidor dos poderes do governo, criando as autoridades públicas, prevendo os direitos e as imunidades dos cidadãos. Entretanto, o que eles podiam chamar de Constituição em Roma e no Reino Unido era uma composição formada por uma bagunça misturada de precedentes e costumes gravados na memória dos homens ou escritos em repositórios, juntamente com algumas poucas leis, tanto de direito público quanto de direito privado[54].
Bryce atribuiu ainda bastante relevo ao papel da “possibilidade de emenda”, mencionando inclusive a Constituição brasileira de 1891 em sua abordagem sobre os 4 tipos de “modificabilidade” (emenda) dos documentos constitucionais.
Em primeiro plano, mencionou as Constituições que podem ser modificadas por um órgão Legislativo, mas que este funcione diferentemente da maneira de aprovação da legislação ordinária. Em segundo plano, as Constituições que requerem a criação de um órgão especial de reforma (revisão constitucional). Em terceiro plano, as Constituições que requerem que a mudança seja atribuída a aprovação de autoridades locais. Em quarto plano, as Constituições que requerem que a aprovação de sua mudança seja submetida ao voto direto do povo, para ratificação[55].
Nas palavras de Bryce, dois dos mecanismos de emenda são mais usuais, e portanto, mereceram comentários mais enfáticos de sua parte. O modelo que atribui ao corpo legislativo, embora com quórum e procedimento diferenciados, e o modelo que atribui ao voto popular como requisito de ratificação, mas apenas este último abrigaria o reconhecimento da soberania popular, com a vantagem de fazer com que a reforma aparentasse ser o trabalho da nação em funcionamento, “fora da facção que será o legislativo a partir dos votos dos partidos”, além de “possibilitar a base mais firme e ampla em que o governo pode se sustentar”[56].
A Constituição brasileira de 1988, a seu turno, foi elaborada por uma assembleia nacional constituinte que não foi eleita especialmente para este fim, possuindo mecanismos de revisão constitucional (já exauridos em 1994, com seis emendas revisoras) e de reforma, que não possuem as bases que Bryce mencionou como fortalecedoras da soberania popular e nem de sustentáculo do governo, e cuja “elasticidade” parece não encontrar limites.
Mais do que isso, a Constituição brasileira de 1988 tem sido emendada formalmente com bastante frequência (99 emendas Constitucionais, até dezembro de 2017), e por decisões do Supremo Tribunal Federal, de maneira informal (e inconstitucional), sem abrigo no texto Constitucional para este último “tipo de emenda”, fazendo com que a realidade coloque em xeque a classificação de Bryce sobre rigidez constitucional, pois não há estabilidade, e os elementos de um tipo de “Constituição não escrita” soçobram na prática político-jurídica brasileira.
Registre-se que, entretanto, para Jorge Miranda o interesse nesta distinção é “essencialmente histórico”, opondo sérias reservas às deduções que dela podem emanar: “uma interpretação evolutiva pode quebrar a rigidez das normas constitucionais (...) [pois] a melhor Constituição rígida é a que é suficientemente flexível para permitir uma interpretação evolutiva”[57], algo que, de alguma forma, se acomoda ao realismo jurídico de Miguel Reale, para quem o Direito deve ser estável sem ser estático, e dinâmico sem parecer frenético[58], e a quem Inocêncio Mártires Coelho liga a Oliver Wendell Holmes Jr[59], o realista jurídico norte-americano.
Jorge Miranda estava antecipando, em 1967 (antes de Reale, inclusive), algo que em 2013 um grupo de pesquisadores da FGV chamaria de “resiliência constitucional” para dizer que a CF/88 teria configurado um regime democrático bem distinto do chamado modelo ideal apregoado pela teoria constitucional, vale dizer, que uma das caraterísticas mais relevantes da Constituição de 1988 seria a audácia de abrigar inúmeros direitos, interesses e metas ambiciosas para todo um segmento da sociedade (chamado de compromisso maximizador), realizando este compromisso dentro de um contexto em que um sistema político consensual, permeado por regras inovadoras de execução de promessas, seguiu um modelo de “rigidez complacente” que teria permitido a constante atualização de seu projeto sem a ocorrência de erosão estrutural[60].
No entanto, como dissemos em outra oportunidade, “enverga-se” a Constituição, de fato, mas ela não “quebra” porque haveria um “jeitinho” de acomodação complacente, que pode ter sido um dos pilares do sucesso de sua durabilidade (é uma falsa ausência de quebra): emendas constitucionais de duvidosa constitucionalidade ao lado de inúmeras decisões do STF, igualmente, de duvidosa constitucionalidade, sob o pretexto de “atualização do projeto constitucional”[61].
Em termos gerais, para Bryce, variabilidade e incerteza das fontes de Direito são as características principais das Constituições flexíveis, e que as Constituições são rígidas não porque seriam imodificáveis pelo Parlamento, mas que não é muito modificável por ser rígida, fazendo com que Luigi Rossi[62] retrabalhasse o conceito da dualidade “rigidez/flexibilidade” a partir de “elasticidade”, pois há inequívoca relação entre forma e conteúdo, e que o conceito original não parecia ser capaz de abarcar.
O juiz da Corte Constitucional italiana Giuliano Amato, abordando o tema (de Bryce à Rossi), fala em “razão interna da elasticidade” e do “limite externo da elasticidade”. A primeira (razão), atribui ao fato de o Direito Constitucional ser uma “zona cinzenta” que agruparia a conexão entre Direito e Política[63], enquanto ao segundo (limite) se atribui um caminho que conduz a “critérios” de mensuração desta elasticidade, que deve respeitar, a um só tempo, a rigidez constitucional e a “discricionariedade do legislador”[64].
Se o critério busca barrar a “discricionariedade do legislador”, evidentemente não pode ser “Discricionariedade judicial vs. Discricionariedade legislativa”, pois redundará em arbitrariedade, e a observação de Giuliano Amato sobre elasticidade acaba retornando a Marshall, na interpretação de Mortati, que coloca a Constituição acima das demais fontes normativas, mas de uma maneira que nem o poder judiciário substitua o poder legislativo, e nem a Constituição substitua a legislação[65].
Por isso, para o velho Juiz da Corte Constitucional italiana, a expressão “elasticidade da constituição rígida” representa um “oximoro aparente”, mas resta saber se a elasticidade reforça a rigidez ou se a rigidez reforça a elasticidade. Particularmente, a metáfora (elasticidade/não elasticidade) também é ambígua, da mesma forma que as classificações predecessoras (“constituições escritas/não escritas” e “Constituições rígidas/flexíveis”).
Observando a Constituição brasileira de 1988, não é possível chama-la de “rígida”, se estivermos de olho da classificação original de Bryce. É uma Constituição tão predominantemente vista com desapego a sua “letra escrita”, e tão “(con)torcida” que dificilmente o próprio Bryce a elencasse hoje como um documento “rígido”, algo que é essencialmente paradoxal. Chamá-la de “semirígida” ou de “semiflexível” também é algo caricato. Denominá-la de “super-rígida” ou de “superflexível” talvez seja ainda mais caricatural. Muitos são os que buscam “flexibilizá-la”, e o julgamento do STF no HC 126.292 é sinal inequívoco.
Fora a questão da “flexibilização” do texto constitucional, também nos resta distinguir a questão deste o ponto de vista das “escolhas” e das decisões. Não é difícil compreender o argumento, se pensarmos no equívoco do constitucionalista Laurence Tribe[66], em seu livro de 1985 sobre “escolhas constitucionais”, se observarmos – a partir da crítica de Richard Posner[67], que para o primeiro, a constituição seria aquilo que nós gostaríamos que ela fosse (nossas “escolhas”) e, segundo sua percepção, ela (Constituição) deveria ser a “carta” de uma sociedade radicalmente igualitária, e não o produto das preferencias políticas dos Juízes da Suprema Corte da época (fortemente ligada aos republicanos), mas esqueceu que seu argumento faz da Constituição um “espelho” de suas “preferências políticas”, embora rejeite a hipótese quando as preferencias políticas (“escolhas constitucionais”) sejam diferentes das dele, algo que se agrava porquê “criação interpretativa” e poder de emenda à Constituição, para Tribe, são essencialmente a mesma coisa.
Suplantar a Constituição e preservá-la (conservá-la), evidentemente, são coisas distintas. Mas quando o argumento acadêmico, com ares de sofisticação, busca confundir as coisas, sem se atentar para a tese do “espelhamento das escolhas constitucionais por conveniência”, é preciso tomar maiores cuidados, e entre nós isso parece ser feito através da tese de que “o juiz” deve poder fazer “escolhas” porque estaria atado somente à Lei e à sua própria consciência, fazendo com que nossa jurisprudência seja “viscosa” e “líquida”[68], algo contra o qual a CHD – Crítica Hermenêutica do Direito luta há bastante tempo[69], pois a “Constituição como espelho do interprete” representa a suspensão do direito com “disfarces de naturalização”.
VII. GOLPE DE ESTADO JUDICIAL OU BOOTSTRAPING (2): NORMA E INTERPRETAÇÃO.
Além disso, a Constituição também diferencia prisão de pena, sendo absolutamente recomendável que se leia a Constituição de maneira integral e sistemática, sob “pena” de se interpretar “pena” como sendo algo de dar “pena”.
A norma. É evidente, após o giro linguístico, e todas as consequências da invasão do direito pela linguagem, que “esta? a viragem lingu?istico-ontolo?gica, no interior da qual a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, para tornar-se condição de possibilidade”, para deixar claro que não existe norma, a não ser norma interpretada, sendo imperioso diferenciar texto de norma, especialmente porque “são diferentes, e não porque ha? uma separação ou que ambos possam ter “existência” autônoma”[70].
A interpretação e A decisão. A maioria do STF, no caso do HC n. 126.292/SP, interpretou que tal disposição constitucional significa que a culpabilidade a que se refere o inciso acima permite que possa haver o cumprimento da pena (consequência da sentença penal condenatória) antes do final da ação penal (transito em julgado). Também ela, a interpretação na decisão houve por bem privilegiar não o texto da CF/88, mas sim o regime da Constituição anterior, como foi explicitado.
Tais elementos servem para comprovar a inadequação jurídica da decisão do STF sobre a prisão.
VIII. GOLPE DE ESTADO JUDICIAL OU BOOTSTRAPING (3): O “MOTOR DA HISTÓRIA”.
O golpe de estado judicial. Segundo o autor, é preciso distinguir os temas centrais conceituais de sua análise, razão pela qual se reproduz o fragmento a seguir:
“Eu adoto conceito restritivo sobre “transformação fundamental”. Primeiro, devemos inferir, razoavelmente, que o direito constitucional produzido pela transformação teria sido rejeitado pelos constituintes originários (fundadores) se tivesse sido colocado na mesa de negociação. Em segundo lugar, o resultado deve alterar - fundamentalmente - como funciona o sistema jurídico, de novo, de maneiras que, de forma demonstrável, não foram planejadas pelos constituintes originários (fundadores). A transformação tornará impossível para um observador deduzir o novo sistema do design institucional no momento constitucional, ex ante. Isso também implicará, pré-golpe, em uma violação da separação dos poderes, em sua ortodoxia. Em outras palavras, os esquemas tradicionais de separação de poderes não conseguem modelar, pós-golpe, os papéis constitucionais e as limitações conferidas aos órgãos do estado.”[71]
É que o Tribunal passa a ser, naquele momento (do Golpe de Estado Judicial) o “motor da história da Constituição”, residindo o ponto nuclear na separação dicotômica entre: (1) processo de mudança, e (2) evento, no que se refere aos que falam sobre (ou criticam) a tese acerca do “golpe de estado judicial. Os que criticam a tese, insistem em unir estes dois elementos, enquanto os que falam da possibilidade de se vislumbrar um “golpe de estado judicial” insistem em separá-los[72].
Em termos de observação empírica da análise, também é relevante registrar a complementação das premissas centrais:
“A minha noção de golpe de estado judicial levanta uma série de questões importantes. Primeiro, a questão sobre como entender uma mudança endógena na Grundnorm de um sistema jurídico, e também uma mudança realizada através de adjudicação judicial, não é uma questão simples. Na primeira versão de sua Teoria Pura do Direito, o próprio Kelsen equiparou a ideia de “revolução bem-sucedida” com uma mudança na Norma Básica e usou o exemplo de um golpe de estado, no qual o Rei é substituído pelo governo representativo, como uma ilustração. Após o golpe, Kelsen escreve: “Alguém [agora] pressupõe uma nova Norma Básica, não mais a Norma Básica que delega o direito que faz autoridade ao monarca, mas [alguém] delegando autoridade ao governo revolucionário” [73].
O autor propõe que se estipule que um golpe de estado revolucionário prossegue através de atos que não estão autorizados pela Norma Básica, enquanto que um “golpe de Estado judicial” prosseguiria através do exercício de poderes delegados pela Norma Básica à autoridade judicial. Questiona, então, se de fato, a autoridade judicial se comportou “de forma inconstitucional”. Por definição, prossegue Alec, um golpe de Estado jurídico produz efeitos jurídicos e, para Kelsen, uma norma que produz efeitos jurídicos deve ser considerada uma norma válida. No entanto, o conteúdo da decisão judicial pode não ter sido autorizado, ou pode até ter sido proibido, pelo conteúdo da Norma Básica anterior. Neste sentido, uma questão estrutural profunda diria respeito à questão de saber se a delegação constitucional ao juiz incluiu restrições substanciais à tomada de decisão do juiz. Pode ser que a constituição permita legislar judicialmente (de forma processual), mas não forçosamente, tendo em mente também o fato de que “o golpe de Estado judicial” pode ser institucionalizado como uma revisão bem sucedida da Norma Básica, com efeitos transformadores no direito e na política[74].
O denso texto de Alec Stone recebeu três réplicas, igualmente provocantes, por parte dos juristas Neil Walker (“Comment, Juridical Transformation as Process”), Wojciech Sadurski (“Juridical Coups d’e?tat—All Over the Place”) e Gianluigi Palombella (“Constitutional Transformations vs. “Juridical” Coups d’ E?tat”), que receberam a devida tréplica por parte do autor originário (“Response to Gianluigi Palombella, Wojciech Sadurski, and Neil Walker”), e posteriormente complementado por Luigi Corrias (“The Legal Theory of the Juridical Coup: Constituent Power Now”), que acabou estabelecendo a questão de que o problema do “Golpe de Estado Judicial” está estritamente conectado com a relação estabelecida entre poder constituinte e poder constituído, para registrar que o Tribunal aplica um golpe de estado quando há na decisão certo cheiro de “usurpação, falta de legitimidade e falta de fundamento” [75].
Pois bem, considerando os argumentos de Alec Stone, ele insiste em manter separados evento e processo de mudança, com os seguintes fundamentos:
“Analiticamente, no entanto, há boas razões para manter o evento e o processo separados. Estou obrigado a fazê-lo, devido à minha afirmação de que o processo de transformação exibe fortes qualidades dependentes do caminho. Argumentava que o processo de transformação provocado pelo golpe não poderia ser derivado das próprias sentenças seminais, enquanto permanecem dependentes de sua causa.
A formulação de Hart sobre a Regra de Reconhecimento nos dá outro motivo para manter o evento e o processo separados. Hart, ao contrário de Kelsen, não está muito interessado em avaliar a legitimidade das mudanças na regra. Em vez disso, ele vê a própria Regra como uma espécie de norma social que se desenvolve através da evolução dos entendimentos compartilhados entre funcionários e outras elites.
No decorrer da redação do artigo, fiquei surpreso ao descobrir que não existe nenhuma pesquisa empírica séria sobre o processo de desenvolvimento de uma regra de reconhecimento ou mudanças. Em cada um dos golpes que aleguei, observei um conjunto de funcionários (juízes) propondo uma mudança na regra, o que provocou um processo social que envolveu outros funcionários. E, é claro, seria teoricamente possível que a mudança proposta (o evento) seja rejeitada pelos funcionários (o processo).”[76]
Essa, aliás, é uma visão que também se aproxima da noção de “bootstrapping”, abordada por Adrian Vermule (“The Exceptional Role of Courts in the Cnstitutional Order”), na metáfora sobre quando alguém consegue se alçar acima do solo simplesmente soerguendo-se pelos cadarços dos próprios sapatos, ou quando a Corte decide um caso desconectada da “fonte Constitucional”, algo visualizado por Adrian Vermule[77] em situações de estado de exceção, em três grupos de casos identificados:
1) quando uma Corte é chamada a decidir sobre a validade da própria Constituição, quando a validade dela e da ordem jurídica são postos em disputa;
2) nos casos de transição de uma ordem constitucional para outra, geralmente após uma revolução, ou quando há a transição de uma velha ordem para uma renovada ordem constitucional, em situações nas quais a velha ordem pode buscar regular a transição, envolvendo ainda a incapacidade da Constituição cessante de obrigar seus sucessores; e
3) nos casos em que a saúde da ordem constitucional exigiria que o julgador agisse de forma contrária à Constituição para, supostamente, preservar a saúde da ordem jurídica.
Assim, os principais argumentos presentes no Habeas Corpus n. 126.292/SP, para declarar - por vias transversas - uma espécie de “inconstitucionalidade” de norma constitucional originária (art. 5º, inciso LVII, da CF/88) são relacionados à “insatisfação social” com a impunidade, números percentuais de baixo provimento de recursos especiais e extraordinários criminais, uso “protelatório” dos recursos, e sistema que funcionaria diferentemente para “ricos” e para “pobres”.
Assemelham-se, como parece evidente, a um verdadeiro rol argumentativo para “exposição de motivos” de uma espécie de “medida provisória judicial”, cujos fundamentos explícitos e ocultos (relevância e urgência), parecem não esperar pela atuação do poder legislativo, para uma Emenda Constitucional, mas não são capazes de infirmar o texto sem afastar a norma, e vice-versa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitos são os que tem escrito sobre esse tema, favoráveis e contrários à guinada jurisprudencial do Supremo, mas poucos são os que tem se preocupado, de fato, com o significado deste “golpe de estado judicial” que, afinado com as melhores intenções, faz de juristas torcedores, e de torcedores juristas. Como a paixão se manifesta de variadas formas, geralmente mais intensa na horda ou nos agrupamentos da turba, maiorias de ocasião pouco se importam com o “livrinho” das regras do jogo, desde de que vençam, nem que seja com gol de mão ou com o atacante impedido (para homenagear o professor Lenio, quem primeiro usou a metáfora).
Contra o “golpe de estado judicial” e o “Bootstraping”, dentre as honrosas exceções, cito Celso de Mello, Marco Aurélio, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffolli, Lenio Streck, Sepúlveda Pertence, Andre Karam Trindade, Claudio Lamachia, Juliano Breda, Oswaldo Ribeiro Jr, João Francisco Neto, Antônio Carlos de Almeida Castro, Thiago Bottino, Djefferson Amadeus, Ademar Borges, Leonardo Isaac Yarochewsky, Leonardo de Paula, Tiago Felipe, Airto Chaves, Alexandre Bizzotto, Salo de Carvalho, Daniel Allan Burg, Santiago Schunck, dentre outros.
Por isso, é preciso que, de duas uma: ou a Constituição seja emenda para permitir que o STF seja fonte e representante do poder constituinte permanente, na trilha do mencionado “revival” maquiavélico, ou os juízes e juízas da Corte passem a deixar explicito que estão decidindo em “bootstraping”, descolados da Constituição, com as justificações de Vermule, ainda que também não seja autorizado pela Constituição.
Contudo, parece evidente que, não existindo possibilidade de o STF emendar à Constituição, ou declarar inconstitucional uma norma da constituição originária, decidiu no Habeas Corpus n. 126.292/SP, permitindo a execução antecipada da pena de maneira contrária a Constituição, com fundamentos extratextuais e meta-jurídicos, que equivalem a uma espécie de “Golpe de Estado Judicial”, conforme abordado neste artigo, em descolamento da fonte Constitucional, num autêntico “Bootstraping”.
Foi assim que o Supremo Tribunal Federal, de 1988 até 2009 negou vigência ao inciso LVII do art. 5º, da Constituição Federal, por meio da chamada “interpretação retrospectiva” e de 2016 em diante, no âmbito do Habeas Corpus 126.292, decidiu (“escolheu”) com base em autoridade normativa anterior a 1988, aplicando um “golpe de estado judicial”, e acabou “executando” a Constituição com a tese da execução antecipada da pena privativa de liberdade, antes do efetivo transito em julgado da sentença penal condenatória.
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TRINDADE, Andre Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Crítica Hermeneutica do Direito: do quadro referencial teórico à articulação de uma posição filosófica sobre o Direito. RECHTD, v. 9, n. 3, 2017.
VERMULE, Adrian; BARBER, N. W. The Exceptional Role of Courts in the Constitutional Order. Notre Dame Law Review, vol. 92, n. 2, 2016.
WALKER, Neil. Juridical Transformation as Process: A Comment on Stone Sweet. Ger. L. J. V. 8, n. 10, 2007.
[1] Este artigo utiliza as premissas e as reflexões oriundas do debate realizado no “German Law Journal”, sobre o “golpe de Estado Judicial” (Juridical coups d’ E?tat), entre os autores Alec Stone Sweet (Yale Law School), Neil Walker (European University Institute), Wojciech Sadurski (European University Institute/Faculty of Law, University of Sydney), Gianluigi Palombella (University of Parma) e Luigi Corrias (VU University Amsterdam).
[2] MALAPARTE, Curzio. Técnicas de Golpe de Estado. Barcelona: Ariel, 2017; MALAPARTE, Curzio. Tecnica Del Golpe de Estado: Bonaparte, Lenin, Trotsky, Mussolini, Hitler, Kapp, Pilsudski, Primo de Rivera. Buenos Aires: Plaza & Janes Edirores, 1960. MALAPARTE, Curzio. The Technique of Revolution; s/d;
[3] ROTTLEUTHNER, Hubert. Positivismo Jurídico e o Nacional Socialismo: Uma contribuição a teoria do desenvolvimento jurídico. Trad. Thiago Pádua. (No Prelo, a ser publicado no livro sobre os 100 anos da Faculdade de Direito do Maranhão, em 2018).
[4] Parte inicial do Prefácio da obra, mencionada acima;
[5] STRECK, Lenio. De 458 a.C. a 2018 d.C.: da derrota da vingança à vitória da moral! Conjur de 25.01.2018.
[6] Em tradução livre do autor. Cfr. HINSDALE, Burke (Org). The Works of James Abram Garfield, vol. I. Boston: James Osgood and Co, 1882, p. 172.
[7] VERMULE, Adrian; BARBER, N. W. The Exceptional Role of Courts in the Constitutional Order. Notre Dame Law Review, vol. 92, n. 2, 2016.
[8] Os 3 principais mantras do realismo jurídico são: a) a Constituição é aquilo que a Corte Suprema diz que ela é; b) Direito é Política; e c) decide-se primeiro, e somente depois deduzem logicamente a fundamentação. É um “Triumviratum” perfeito para destruir ou atacar qualquer Constituição, jamais para defendê-la.
[9] Como dito em outra oportunidade: “a herança e as influências do Realismo Jurídico norte-americano ensejariam o que se denomina de “teoria da ferradura”, para a qual este movimento teria oxigenado tendências que se identificam tanto com a direita quanto com a esquerda do pensamento jurídico americano. Nesse sentido, mais à direita, evidenciam-se os vínculos do Realismo com o movimento “Direito & Economia” (Law and Economics), na versão inicial enunciada por Richard Posner. Por outro lado, mais à esquerda, são também claras as relações do realismo norte-americano com o movimento “Critical Legal Studies”, na sua percepção originária, a partir de Roberto Mangabeira Unger, Mark Tushnet e Duncan Kennedy. Não por acaso, tornou-se famoso discurso de Elmira (Speech before the Elmira Chamber) proferido por Charles Evans Hughes em 1907, três anos antes de ser nomeado para a Corte Suprema, da qual viria a ser presidente, ao dizer que “Estamos submetidos a uma Constituição, mas a Constituição é o que os Juízes dizem que ela é.” Cfr. PÁDUA, Thiago Aguiar; BRAGANÇA FERREIRA, Fabio; OLIVEIRA, Ana Carolina Borges de. A Outra Realidade: o panconstitucionalismo nos Istaites. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5, n. Esp., 2015. Ver, ainda, Arnaldo Godoy e Louis Menand. Cfr. MENAND, Louis. The metaphysical club. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2001; GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Introdução ao realismo jurídico norte-americano. Brasília: Do Autor, 2013.
[10] Confira-se o “Fator torcedor”. STRECK, Lenio. O paradoxo de Münchhausen do caso Lula: se o MPF ganhar, Moro perde, Cunjur de 22 de janeiro de 2018; e Palestra “Como ser um Jurista em um País de torcedores”, na Ulbra Canoas, em 14.08.2017.
[11] BORGES, Rodolfo. Gilmar Mendes, o Neymar do Supremo. El País, Tribuna. 12 de março de 2018.
[12] STRECK, Lenio. Entrevista. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 81, n. 4, ano XXIX, out.-dez. 2011, p. 16.
[13] STRECK, Lenio. O Direito como um conceito interpretativo. Revista Pensar, v. 15, n. 2, p. 500-513, jul./dez, 2010.
[14] STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016; STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 9ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[15] TRINDADE, Andre Karam; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Crítica Hermeneutica do Direito: do quadro referencial teórico à articulação de uma posição filosófica sobre o Direito. RECHTD, v. 9, n. 3, 2017.
[16] É aqui que a applicatio parece evitar a arbitrariedade na atribuição de sentido, pois é decorrente de uma antecipação de sentido que é inerente à hermenêutica fisolósica, ou, em outras palavras “aquilo que é condição de possibilidade não pode vir a transformar-se em simples resultado manipulável pelo intérprete”. Cfr. STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 414-415.
[17] Da maneira como ressaltado por Lenio Streck, “a guinada hermenêutica sofrida pelo direito em tempos de efetivo crescimento do papel da jurisdição – mormente a jurisdição constitucional - acentuou a preocupação em torno da necessidade de discutir as condições de possibilidade que o intérprete tem para a atribuição dos sentidos aos textos jurídicos, uma vez fracassadas as experiências exegético-subsuntivas-positivistas e as tentativas de controlar os sentidos através de operações lógico-analíticas. As diversas concepções sobre como interpretar e como aplicar têm como objetivo discutir as condições para a construção de respostas com um adequado grau de racionalidade, evitando arbitrariedades. A construção de racionalidades discursivas implicou a substituição da razão prática, questão bem presente nas diversas teorias da argumentação (a teoria do discurso habermasiana, nesse sentido, é também uma teoria da argumentação). Isso fez com que a questão da interpretação fosse alçada ao patamar da argumentação, a partir da construção de racionalidades comunicativas, estabelecendo previamente modos de operar diante da indeterminabilidade do direito. Em outras palavras, ao deslocarem o problema do direito para o discurso e a argumentação, determinadas teorias do direito deixaram de lado o mundo prático, é dizer, o modo-de-ser-no-mundo. Ocorre que, desse modo, se deixou de lado a dupla estrutura da linguagem, confundindo-a com a cisão entre easy e hard cases (casos fáceis e casos difíceis), em que os primeiros seriam produtos de meras deduções/subsunções, enquanto os segundos exigiriam a construção de uma racionalidade discursiva que assegurasse condições para uma universalização do processo de atribuição de sentido”. Cfr. STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 145-150.
[18] Como fenômenos extralinguísticos associados ao labor carroliano, e as consequências da operação, veja-se a reflexão de Maria José Palo: “Ambas as narrativas carrolianas se defrontam sob essa versão discursiva entre a língua e a linguagem de estratificação social, em função da assimetria e das regras do espelhamento do jogo. São estruturas discursivas em evolução estilística compostas de figuras de pensamento ou fenômenos extralinguísticos em associação com os linguísticos. Essa abordagem resulta no desviar do destino da comunicação verbal em direção à linguagem subjetivo-estética, com contrastes lógicos bem marcados entre si, uma vez caracterizados por diálogos orientados pela estrutura da enunciação, e propiciados pela figura de pensamento do nonsense e sua anti-lógica”. PALO, Maria José. A Palavra e o Imaginário em Alice Através do Espelho, de Lewis Carrol. Literartes, n. 3, 2014, p. 124.
[19] TRIBE, Laurence. The Invisible Constitution. Oxford: OUP, 2008.
[20] ROOSEVELT III, Kermit. The Indivisible Constitution. Constitutional Commentary, vol. 25, 2008.
[21] Um intérprete “intratextualista” lê uma frase ou palavra (da Constituição ) comparando e contrastando conscientemente com palavras ou frases idênticas (ou muito similares) em ‘qualquer outro lugar da Constituição”, numa perspectiva mais “holística”, pois para o professor Akil Amar, “bons intérpretes precisam saber (quando e como) ler entre as linhas, mas isso soa bastante próximo a uma “conexão de pontos”, sem um adequado desenvolvimento hermenêutico crítico. Cfr. AMAR, Akhil Reed. Intratextualism, 112, Harvard Law Review, 1999.
[22] Conforme observado por Lenio Streck a “hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do direito deita raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao processo interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto é, primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar)”. STRECK, Lenio. Hermenêutica e Possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista. Rev. Faculdade de Direito da UFMG, n. 52, 2008.
[23] STRECK, Lenio. A Crítica Hermenêutica do Direito e a Questão da Discricionariedade Judicial. Revista Direito e Liberdade, v. 18, n. 1, 2016.
[24] TASSINARI, Clarissa; PEREIRA LIMA, Danilo Pereira. A Construção da Democracia no Brasil: a difícil relação entre Direito e Política. Rev. Paradigma, a. XXI, v. 25, n. 2, p. 154-172, jul./dez. 2016.
[25] MAQUIAVEL, Nicolau. Tutte le opere. Ed. de Martelli. Florenc?a: Sansoni, 1971, p. 283-284.
[26] POCOCK, J. G. A. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republic Tradition. New Jersey: Princenton University Press, 1975.
[27] De fato, é preciso registrar que o “ridurri ai principii” não coloca um fim ao ciclo de degenerescência, eis que um Estado corrupto não se torna virtuoso pelo regresso aos princípios originais. POCOCK, J. G. A. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republic Tradition. New Jersey: Princenton University Press, 1975, p. 204-205.
[28] Confira-se a leitura que Ricardo Leite Pinto faz sobre Gordon Wood e Maquiavel, especialmente no item: “5. Republicanismo, Constituição e Poder Constituinte: “A Healing Principle” ou “Ridurre ai Principii”. Cfr. LEITE PINTO, Ricardo. O “Momento Maquiavélico”na Teoria Constitucional Norte-Americana: Republicanismo, História, Teoria Política e Constituição, 2ª Ed. Lisboa: Lusiada, 2010, p. 124-125.
[29] Confira-se a leitura que Ricardo Leite Pinto faz sobre Gordon Wood e Maquiavel, especialmente no item: “5. Republicanismo, Constituição e Poder Constituinte: “A Healing Principle” ou “Ridurre ai Principii”. Cfr. LEITE PINTO, Ricardo. O “Momento Maquiavélico”na Teoria Constitucional Norte-Americana: Republicanismo, História, Teoria Política e Constituição, 2ª Ed. Lisboa: Lusiada, 2010, p. 124-125.
[30] BAYLIN, Bernard. The Ideological Origins of the American Revolution. Cambridge: Belknap Press, 1992, p. 68-69; LEITE PINTO, Ricardo. O “Momento Maquiavélico”na Teoria Constitucional Norte-Americana: Republicanismo, História, Teoria Política e Constituição, 2ª Ed. Lisboa: Lusiada, 2010, p. 124-125.
[31] CAVALCANTI, Themistocles. O Supremo Tribunal Federal e a Constituição. In: ROSAS, Roberto; MARINHO, Josaphat (Coord.). Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal. Coleção Temas Brasileiros, vol. 25. Conferências e Estudos realizados na Universidade de Brasília de 11 a 14 de setembro de 1978. Brasília: Editora UnB, 1982, p. 105.
[32] De fato, é preciso registrar que o “ridurri ai principii” não coloca um fim ao ciclo de degenerescência, eis que um Estado corrupto não se torna virtuoso pelo regresso aos princípios originais. POCOCK, J. G. A. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republic Tradition. New Jersey: Princenton University Press, 1975, p. 204-205.
[33] PINO, Giorgio. Diritti e Interpretazione: Il ragionamento giuridico nello Stato costituzionale. Bolonha: Mulino, 2010, p. 118-119.
[34] Nota inicial, supra.
[35] A expressão editada possui a única finalidade de mencionar que neste artigo será arguida a reflexão de que a decisão judicial, ora mencionada, mais se assemelha a uma espécie de “Medida Provisória” Judicial, com fundamentos ocultos e fundamentos explícitos.
[36] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Rio de Janeiro: Saraiva, 4ª ed., 2001, p. 71.
[37] STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, 3ª Ed. São Paulo: RT, 2013, p. 275.
[38] STJ, EREsp 547.653/RJ, relator ministro Teori Zavascki, Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, j. 15/12/2010, DJe 29/3/2011, RSTJ vol. 222 p. 36.
[39] HESSE, Konrad. Limites da Mutação Constitucional. Em: Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Trad. Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo, SP: Saraiva, 2013.
[40] MORAES, Marcos; FURTADO, Renata Lira; TOMAÉL, Maria Inês. Redes de Citação: estudo de rede de pesquisadores a partir da competência em informação. Em Questão, v. 21, n. 2, 2015, p. 186..
[41] BRYCE, James. The American Commonwealth. Abridged and Revisied From First Edition With a Historical Appendix. Filadelfia: John D. Morris and Co., 1906, p. 26; BRYCE, James. Constitutivos. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 26.
[42] Equívoco de considerar as decisões da Suprema Corte sobre a constituição como o espelho das opção pelas escolhas políticas, como mencionado.
[43] Inadequada a concepção de Brutau por ser apegada a um realismo jurídico amplificado. Cfr. BRUTAU, José Puig. A Jurisprudência Como Fonte do Direito. Porto Alegre: Ajuris, 1977.
[44] REGLA, Josep Agiló. Teoria Geral das Fontes do Direito. Lisboa: Escolar Editora, 2014.
[45] BRYCE, James. The American Commonwealth. Abridged and Revisied From First Edition With a Historical Appendix. Filadelfia: John D. Morris and Co., 1906, p. 26.
[46] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 26.
[47] James Bryce disse, em livro cuja 1ª edição data de 1884, ao falar sobre os poderes do Presidente da República, que: “Aqui, também, pode-se ver como uma Constituição rígida, ou suprema, serve para manter as coisas como elas eram". Cfr. BRYCE, James. The American Commonwealth. Abridged and Revisied From First Edition With a Historical Appendix. Filadelfia: John D. Morris and Co., 1906, p 26.
[48] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 6-7.
[49] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 7.
[50] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 8-9.
[51] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 9.
[52] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 10.
[53] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 10.
[54] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 12-13.
[55] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 58-59.
[56] BRYCE, James. Constitutions. Nova Iorque: Oxford University Press, 1901, p. 60.
[57] Nota de rodapé n. 47. Cfr. MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da Inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra editora, 1967, p. 39.
[58] REALE, Miguel. A dinâmica do direito numa sociedade em mudança. Em: Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 52-57.
[59] COELHO, Inocêncio Mártires. Notas Básicas de Técnica Jurídica. Revista de Direito Administrativo, 239, 2005; COELHO, Inocêncio Mártires. O Poder normativo das Cortes Constitucionais. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5, n. 3, 2015, p. 24.
[60] DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya; OLIVEIRA RAMOS, Luciana; NASSAR, Paulo André; GLEZER, Eduardo. Introdução, em: Resiliência Constitucional: Compromisso Maximizador, Consensualismo Político e Desenvolvimento Gradual. São Paulo: Direito GV, 2013.
[61] PADUA, Thiago Aguiar. Democracia resiliente ou incerta. Jota, de 20.05.2017.
[62] ROSSI, Luigi. La “elasticità” dello Statuto italiano, in: Studi in onore di Santi Romano, Padova: Cedam, 1940, p. 70.
[63] Segundo Giuliano Amato, “a elasticidade” de que ele fala se relaciona “as paredes que protegem a autonomia interna do poderes político”. Cfr. AMATO, Giuliano. L'elasticità delle Constituzione Rigide. Nomos n. 1, 2016, p. 4.
[64] Para o mesmo Giuliano Amato, a tarefa do Juiz constitucional é observar se o legislador errou, quando exista uma – e apenas uma – maneira de resolver uma determinada questão, desde o ponto de vista Constitucional. Cfr. AMATO, Giuliano. L'elasticità delle Constituzione Rigide. Nomos n. 1, 2016, p. 5.
[65] Em tradução livre: “A jurisdição não subtrai a sua própria competência, nem substitui o legislador se aplica a lei existente a casos concretos de acordo com a ordem hierárquica de fontes, dando preferência à Constituição em relação à lei, sempre que a primeira, interpretada em harmonia com todo o sistema regulatório, parece adequado orientar a decisão.”.Cfr. AMATO, Giuliano. L'elasticità delle Constituzione Rigide. Nomos n. 1, 2016, p. 5.
[66] TRIBE, Laurence. Constitutional Choices. Cambridge: HUP, 1985.
[67] POSNER, Richard. The Constitution as a Mirror: Tribe’s Constitutional Choices. Michigan Law Review, vol. 84, 1986.
[68] PADUA, Thiago Aguiar. Jurisprudência Líquida: reflexões críticas sobre a fragilidade jurisprudencial brasileira. Revista Thesis Juris, v. 5, n. 2, 2016.
[69] Em especial, cfr. STRECK, Lenio. O que e? isto – decido conforme minha conscie?ncia? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
[70] STRECK, Lenio. Diferença (ontológica) entre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo. Em: TORRES, Heleno (coord). Direito e Poder. São Paulo. São Paulo: Manole, 2005; STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica E(m) Crise. 5.a ed., Porto Alegre: do Advogado, 2004.
[71] SWEET, Alec Stone. The Juridical Coup d’E?tat and the Problem of Authority. Ger. L. J. V. 8, n. 10, 2007.
[72] SWEET, Alec Stone. Response to Gianluigi Palombella, Wojciech Sadurski, and Neil Walker. Ger. L. J. V. 8, n. 10, 2007.
[73] SWEET, Alec Stone. The Juridical Coup d’E?tat and the Problem of Authority. Ger. L. J. V. 8, n. 10, 2007.
[74] SWEET, Alec Stone. The Juridical Coup d’E?tat and the Problem of Authority. Ger. L. J. V. 8, n. 10, 2007.
[75] CORRIAS, Luigi. The Legal Theory of the Juridical Coup: Constituent Power Now. V. 12, n. 8, 2011. de Adrian Vermule. Cfr. VERMULE, Adrian; BARBER, N. W. The Exceptional Role of Courts in the Constitutional Order. Notre Dame Law Review, vol. 92, n. 2, 2016.
[76] SWEET, Alec Stone. Response to Gianluigi Palombella, Wojciech Sadurski, and Neil Walker. Ger. L. J. V. 8, n. 10, 2007.
[77] VERMULE, Adrian; BARBER, N. W. The Exceptional Role of Courts in the Constitutional Order. Notre Dame Law Review, vol. 92, n. 2, 2016.
Advogado Constitucionalista; ex-assessor de Ministro do STF. Doutorando e Mestre em Direito. Membro Pesquisador do CBEC - Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais. Professor de Direito Constitucional, Civil e Processo Civil. Parecerista de Renomadas Revistas Acadêmicas (Revista da AGU, Revista de Direito Civil Contemporâneo, dentre outras). Tradutor de inúmeros autores internacionais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: THIAGO PáDUA, . "Golpe de Estado Judicial": a execução antecipada da pena privativa de liberdade que "executou" a Constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2018, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51467/quot-golpe-de-estado-judicial-quot-a-execucao-antecipada-da-pena-privativa-de-liberdade-que-quot-executou-quot-a-constituicao. Acesso em: 06 nov 2024.
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