ÊNIO WALCÁCER DE OLIVEIRA FILHO
(Orientador)[1]
RESUMO: Este artigo faz um breve relato sobre os "Vícios no Inquérito Policial" e as implicações processuais na sua condução e elaboração no Brasil. Aborda-se o contexto histórico do Inquérito Policial, mostrando todo o processo de evolução e mudanças históricas que esse procedimento administrativo enfrentou desde o Egito até o Brasil, na atualidade. O estudo demonstra ainda que o Inquérito Policial é uma espécie de Investigação Preliminar, feita pela Polícia Judiciária e destinada à apuração das infrações penais e sua autoria, tendo natureza jurídica de procedimento administrativo pré-processual. O trabalho também mostra que os vícios no Inquérito Policial são classificados em irregularidades, invalidações ou inexistências, que surgem no decorrer dessa espécie de Investigação Preliminar, podendo ensejar trancamento ou nulidade do próprio Inquérito Policial, bem como gerar eventuais nulidades no processo penal subsequente.
PALAVRAS-CHAVE: investigação preliminar; inquérito policial; vícios.
ABSTRACT: This article makes a brief report about the "Vices in the Police Inquiry" and the procedural implications in its conduction and elaboration in Brazil. The historical context of the Police Inquiry is discussed, showing the whole process of evolution and historical changes that this administrative procedure faced from Egypt to Brazil, at the present time. The study also shows that the Police Inquiry is a kind of Preliminary Investigation, made by the Judiciary Police and intended for the determination of criminal offenses and its authorship, having the legal nature of a pre-procedural administrative procedure. The work also shows that the vices in the Police Inquiry are classified in irregularities, invalidations or non-existences, which arise during this type of Preliminary Investigation, which may lead to a foreclosure or nullity of the Police Inquiry itself, as well as to generate eventual nullities in subsequent criminal proceedings.
KEYWORLDS: preliminary investigation; police investigation; addictions.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Do contexto histórico do Inquérito Policial. 3 Do Inquérito Policial como espécie de Investigação Preliminar. 4 Dos vícios no Inquérito Policial e suas consequências. 5 Considerações Finais. 6 Referências.
1. INTRODUÇÃO
No Brasil, o Inquérito Policial é um procedimento investigatório, presidido pela autoridade policial, que para efeitos processuais, consoante à Lei 12.830/2013 em seu art. 2, §2º, trata-se de delegado de polícia de carreira, cuja finalidade é a apuração da autoria e da materialidade das infrações penais, conforme o Artigo 4º do Código de Processo Penal. Entretanto, eventuais irregularidades ou ilegalidades na condução do inquérito podem vir a contaminar o consequente processo criminal, gerando eventuais nulidades. Algumas ilegalidades poderão, ao seu turno, ensejar o próprio trancamento do Inquérito Policial ou a nulidade do próprio inquérito.
Este trabalho tem por objetivo principal levar o leitor a compreender como os vícios no Inquérito Policial podem influenciar na sentença proferida pela Autoridade Judicial no âmbito do Processo Penal, sendo contextualizada sua fundamentação legal e caracterizada sua natureza, bem como demonstrados os vícios porventura existentes e suas consequências.
O Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal - CPP), em seu Livro I, Título II, artigos 4º a 23, trata o Inquérito Policial como um procedimento preparatório, a ser proposto pelo Ministério Público. Os dispositivos legais mencionados, por si só, já são suficientes para mostrar a importância desse procedimento investigatório na apuração das infrações penais e sua autoria. Além disso, vale a pena ressaltar que esse instrumento investigatório é inquisitivo, indisponível, oficial, escrito, dispensável, discricionário, sigiloso, administrativo e informativo, sendo estas suas principais características.
Ademais, o Inquérito Policial é uma das tantas modalidades do gênero Investigação Preliminar (que pode ser: CPI, PIC, Investigação defensiva, etc.), bem como um pressuposto da Ação Penal, sendo dispensável pelo Ministério Público, caso já existam informações suficientes para embasá-la, conforme preceitua o Art. 46, §1º, do Código de Processo Penal, podendo também requisitar novas diligências, que devem ser especificadas, com fulcro no Art. 47 dessa mesma lei. Além disso, o juiz não fundamentará sua decisão com base unicamente nos elementos colhidos na investigação, com exceção das provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, tomando por base o Art. 155 do dispositivo legal supracitado.
Por isso, estando uma denúncia fundada em Inquérito Policial que contenha em seu bojo provas ilegais, ilícitas e aptas a ensejar o seu desentranhamento, torna-se possível a rejeição da inicial acusatória sob fundamento de ausência de lastro probatório mínimo, ensejando a rejeição prevista no art. 395 CPP. Aliás, já existem muitas decisões judiciais, conforme será visto adiante, versando no sentido de que os vícios no Inquérito Policial contaminam o processo penal subsequente, quando o lastro probatório que iniciou a ação penal baseia-se em prova ilícita produzida no âmbito do processo, sem a qual não se receberia a inicial acusatória.
2. DO CONTEXTO HISTÓRICO DO INQUÉRITO POLICIAL
O Inquérito Policial enfrentou e acompanhou todo um processo de evolução histórica à medida que o mundo passava por profundas mudanças. Oliveira Filho (2016, p.23-24) aduz que:
Durante os diversos períodos históricos, as sociedades se organizaram buscando maneiras de coibir as condutas consideradas antissociais, em um processo que oscilou entre períodos de punitivismo e instrumentalismo extremados e de democracia e diálogo no âmbito dos procedimentos penais. Para entender o momento atual do processo penal brasileiro é importante perscrutar o passado, dialogar com os vários períodos históricos pretéritos para saber como se construiu, historicamente falando, o sistema que utilizamos em nossa atualidade para entender se efetivamente evoluímos com os erros e acertos do passado a um sistema aperfeiçoado de justiça penal.
Iniciaremos nosso estudo sobre o processo de evolução histórica do Inquérito Policial pelo Egito, uma das civilizações mais antigas do mundo. Oliveira Filho (2016, p.27) expressa que “No sistema egípcio de justiça penal já era possível delinear a atuação de um órgão que podemos dizer correlato ao que temos hoje nas polícias do Brasil". Na visão desse autor, somando as funções repressivas e preventivas, a polícia egípcia tinha o poder de atuação do Delegado, em regra, por um juiz, que era o regente do poder administrativo e judicial de cada província egípcia, mas o poder jurisdicional destes regentes era limitado apenas aos crimes leves, permitindo-se a aplicação imediata de penas sem o devido processo legal, em um procedimento em que havia, segundo Almeida Júnior apud Oliveira Filho (2016, p.27), "delegados incumbidos, como funcionários policiais, de reprimir a chicotadas e bastonadas as infrações de menores consequências".
Nesse sentido, Oliveira Filho (2016, p.29) segue discorrendo que "No Egito sequer pode se considerar que existia um sistema, na verdade existia uma utilização totalmente discricionária de força para a grande maioria da população". Para ele, existia alguns aspectos de legalidade para crimes cometidos por pessoas de posição social elevada, pois o poder jurídico naquele tempo estava concentrado na classe dos sacerdotes como um tribunal supremo que julgava os crimes mais graves. Segundo Almeida Júnior apud Oliveira Filho (2016, p.29-30), o rito que esses crimes seguiam "não era inferior, pelo mérito ou pelas luzes, ao Areópago de Athenas", havendo apenas um processo em que existia acusação e defesa, o qual era julgado pelos reis e pelas pessoas mais importantes do Estado, todos abaixo do intocável Faraó, tendo como características a notícia do crime como obrigação das testemunhas do fato, a polícia repressiva auxiliar da justiça, a instrução pública, mas escrita, o julgamento secreto e a decisão simbólica não motivada.
Dando continuidade ao processo evolutivo do Inquérito Policial, merece destacar aqui a região da Palestina, palco de intensos conflitos e diversas civilizações. Almeida Júnior apud Oliveira Filho (2016, p.31), expõe que:
No sistema palestino existia uma confusão entre um órgão julgador e a atribuição preliminar de coleta de provas, hoje atribuição da polícia judiciária, confusão esta que permaneceu ao longo da história em diversos pontos da civilização como mácula à imparcialidade do órgão julgador. A ausência de separação entre acusador, julgador, investigador causava uma concentração de poder que levava não raras vezes à arbitrariedades devido à ausência de partes e a existência de um sistema que visava tão somente como valor axiológico a punição de um infrator, não diferente do que ainda hoje acontece em grande medida no Brasil, inclusive por determinação legal na sistemática processual vigente em nosso Código de Processo Penal.
Roma também merece lugar de destaque dentro do contexto histórico do Inquérito Policial, visto que seu legado civilizatório perdurou desde a antiguidade até os dias atuais, principalmente no âmbito jurídico. Oliveira Filho (2016, p.34) coloca que na tripartição da organização política romana (Monarquia, República e Império), existiram três sistemas penais principais, que eram reflexo da maior democracia ou ditadura existente no campo político romano, sendo que os sistemas, consoante Khaled Jr. apud Oliveira Filho (2016, p.34), partiu da "cognitio, praticada durante a Monarquia, chegou-se ao sistema acusatório - accusatio - da época republicana, que decaiu posteriormente no Império, impondo-se as características do sistema inquisitório". Logo após, Oliveira Filho (2016, p.41-42) discorre com propriedade que, como em grande parte de nosso direito, Roma trouxe o berço do procedimento inquisitorial que atualmente é utilizado no Brasil para a preparação do procedimento penal, que da mesma forma hoje consubstancia a opinio delicti do acusador como uma peça escrita, secreta e unilateral, que "coisificava" o investigado antes que o processo chegasse ao diálogo do jogo processual público.
Na idade média, houve um predomínio total do sistema inquisitório, herdado do Império Romano, em virtude da centralização tanto do poder Estatal quanto do Eclesiástico. Oliveira Filho (2016, p.43) lembra que:
Após a dissolução de Roma, o sistema inquisitório tornou-se preferência em toda a Europa Medieval por ser a forma mais fácil de legitimação do poder por meio da instrumentalização dos "inimigos", tanto dos Estados quanto das Igrejas, transformando o sistema penal em uma máquina burocratizada de imposição de pena a quem quer que pensasse diferente ou postasse-se contra o poder instituído. Era um sistema behaviorista que buscava a manutenção do poder por meio da força em um sistema que resistiu por longo tempo e que ainda mantém-se vivo até hoje em alguns lugares e fragmentos de sistemas vigentes em pleno século XXI, tal qual é a solução desta ferramenta por parte de quem está no poder.
Nas Ordenações Portuguesas, Oliveira Filho (2016, p.68) aponta que houve "uma mescla das legislações romanas do principado, somada com as codificações de Justiniano e cunhadas com a marca da arbitrariedade da Inquisição, por influência direta do "sucesso" empreendido pela Santa Sé na "caça" dos inimigos da Igreja". Quanto ao Inquérito Policial nesse período, Pirangelli apud Oliveira Filho (2016, p.69) pontua que:
Quanto ao inquérito ou a investigação criminal, permaneceram como prática remanescente da inquisição os procedimentos chamados inquirições devassas. Em tais procedimentos, feitos pelo magistrado na concentração de poderes característicos de um sistema inquisitório, era aceita amplamente a delação decreta (inclusive sendo fomentada), consequentemente o processamento de acusados era feito ex ofício. Todo o necessário para a devassa de alguém era a suspeita, independentemente se a fonte era qualificada ou inqualificada, o que se queria era a descoberta de um inimigo para se iniciar a caçada. Como herança do sistema inquisitório, persistia a confusão entre o magistrado e o investigador e acusador, já que este determinava o procedimento de investigação preliminar da devassa, suas inquirições, torturas e todas as formas de flagelos para a obtenção da rainha das provas e objeto de obsessão, sempre a confissão do acusado.
Com o surgimento dos Sistemas Mistos na França Napoleônica, ocorreu o fim do Sistema Inquisitivo, que vigorou desde a Idade Média, passando pelas Ordenações Portuguesas e entrando em declínio após a Revolução Francesa. Para Oliveira Filho (2016, p.72):
Do ocaso do período inquisitivo surgiram os sistemas mistos, eminentemente na França, que tinham como característica a manutenção de um sistema inquisitivo inicial, na etapa investigatória, com um procedimento posterior acusatório, tendo como sistema modelo o Código Processual Penal de Napoleão, de 1808. Este novo conjunto legislativo marcou o fim do sistema inquisitivo puro, inaugurando-se, em muitas legislações, como as que viriam a ser adotadas no Brasil, esta mistura de características de sistemas totalmente antagônicos.
Prado apud Oliveira Filho (2016, p.72), de forma magistral, explica como funcionava esse Sistema Francês:
O novo sistema, que principiou sua atuação na França, em seguida à Revolução, para com as guerras Napoleônicas chegar a outros países, disciplinava o processo em duas fases. Na primeira delas, denominada de instrução, procedia-se secretamente, sob o comando de um juiz, designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a perpetração das infrações penais, com todas as circunstâncias que influem na sua qualificação jurídica, além dos aspectos atinentes à culpabilidade dos autores, de maneira a preparar o caminho para o exercício da ação penal; na segunda fase, chamada de juízo, todas as atuações realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado ou o júri, com a controvérsia e o debate entre as partes, no maior nível possível de igualdade. Salientou Pietro Fredas que esta estrutura foi consagrada no Código de Instrução Criminal de 1808, difundindo-se rapidamente pelos códigos modernos, com a proclamação da necessidade de uma investigação secreta e dirigida pelo Juiz, e com tímida atuação da defesa nesta etapa, razão por que se consagra como sistema de tipo misto.
O Brasil, após sua descoberta pelos portugueses, inicialmente, adotou como Sistema de Investigação criminal o Inquisitivo. Oliveira Filho (2016, p.84), com maestria, discorre como esse Sistema se formou no Brasil:
Assim se formou a estrutura do que viria a consolidar-se no Brasil, perdurando um sistema arbitrário, seletivo, burocrático, punitivista controlado pelo poderio financeiro na instrumentalização do sistema penal, um reflexo perfeito do que se buscava na colônia, algo para além da ordem social: a exploração dos recursos desta terra.
No entanto, o processo de criação da legislação penal no Brasil teve início somente em 1808, com a chegada da família real portuguesa no País. Na visão de Pirangelli apud Oliveira Filho (2016, p.84), a partir desse momento:
Vários alvarás inicialmente regulamentavam algumas questões criminais à época, como a regulação das casas de suplicação, perdões a criminosos, proibições de sociedades secretas, prerrogativas de foro, outros tantos decretos regulamentaram a pena de morte.
A primeira Constituição Brasileira, outorgada em 1824, após a Proclamação da Independência, trouxe as bases do que viria a ser o primeiro Código de Processo Penal do País. Nesse período, conhecido por Primeiro Reinado, começou a formação de um conjunto formal inspirado nas legislações francesas, buscando a exclusão do arbítrio e o abandono de práticas inquisitivas, como as devassas e as tormentas. Assim, mesmo com a persistência de um poder paralelo e discricionário, de uma seletividade que viria a ser plasmada na justiça penal brasileira, a construção deste conjunto fortaleceu as garantias do acusado, e o refreamento de sua instrumentalização na consolidação do que após quase dez anos de Constituição viria a ser o primeiro diploma processual penal brasileiro. Nessa esteira, Oliveira Filho (2016, p.88) relata que:
A influência do sistema gestacionado nos primeiros anos do Império Brasileiro em decorrência clara da codificação de 1808 de Napoleão, em procedimento mascarado de acusatório, mas com sua essência inquisitória, como na manutenção de uma tradição que remontava do século XIII de perpetuação do poder e da arbitrariedade sob a justificativa de se estar efetivando a justiça.
No Segundo Reinado, para Oliveira Filho (2016, p.93) "o que se busca é uma apuração do sistema criado, denunciando-se a parca representação popular feita pelos votos que além de censitários eram marcados pelo cabresto". Segundo ele, somando-se este sistema de votos com a escolha dos atores processuais do primeiro momento da persecução, percebe-se claramente a influência decisiva do poder naqueles que seriam os atores processuais e principalmente a quem estes defenderiam em seus protagonismos. Uma relação um tanto quanto perniciosa e íntima entre o sistema de poder e a escolha, que tinha como pano de fundo um arremedo de democracia, uma aparência dada pelo sistema de escolha. Boschi apud Oliveira Filho (2016, p. 95) acrescenta que:
A atenção mais acurada do legislador quanto ao Inquérito Policial só viria a aparecer no ordenamento jurídico com a lei 261 de 1841 e o regulamento 122 de 2 de fevereiro de 1842. A lei 261 que reformou o Código de Processo Criminal criou a figura dos Chefes de Polícia, que deveriam ser nomeados entre Desembargadores e Juízes de Direito, persistindo a confusão entre a figura que realizaria a instrução pré--processual e processual. Os delegados eram nomeados entre juízes e cidadãos.
Inclusive, a palavra "Inquérito Policial" foi utilizada pela primeira vez no Decreto nº 4.824/1871, onde foi dedicada uma seção exclusiva para tratar as atribuições de Chefe de Polícia, Delegados e subdelegados, conforme Brasil apud Oliveira Filho (2016, p.101), senão vejamos:
Art. 11 - Compete-lhes porém: (...)
2º - Proceder ao inquerito policial e a todas as diligencias para o decobrimento dos factos criminosos e suas circumstancias, inclusive o corpo de deicto.
Ao final, cabe ressaltar que o Sistema Investigatório Brasileiro, adotado no Primeiro Reinado do Império do Brasil, perpetuou-se no tempo até a atualidade, sem se adequar às mudanças pelas quais o País enfrentou durante esse longo período. Oliveira Filho (2016, p.109-110) conclui que:
Neste sistema formulado ainda no Império brasileiro, que se quer dizer misto, criou-se um sistema que perdura até hoje no Brasil, sem nenhuma evolução em sua etapa inquisitória. Afora os requintes de crueldade próprios da tortura física, que pelo menos oficialmente foram extirpados deste procedimento, manteve-se a herança da inquisição viva, permitindo que cada dia mais no Brasil se amplie uma política de segurança pública guiada pela instrumentalidade do acusado, pela seletividade de atuação, pela opressão com vestes de legalidade. É como se as fogueiras da inquisição nunca tivessem sido apagadas de todo, mas mantidas de maneiras diferentes em cada tempo, direcionadas para pessoas e fatias sociais diferentes, sempre sob a perspectiva da manutenção deste poder opressor. Modificar a roupagem, mas manter a essência não fez com que, efetivamente, tivéssemos até os dias atuais uma evolução de todo o procedimento (...).
3. DO INQUÉRITO POLICIAL COMO ESPÉCIE DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR
No Brasil, o Inquérito Policial é uma espécie de Investigação Preliminar feita pela Polícia Judiciária e destina-se à apuração das infrações penais e da sua autoria, possuindo natureza jurídica de procedimento administrativo pré-processual. Pereira apud Hoffmann (2017, p.62) define investigação preliminar como:
Pesquisa, ou conjunto de pesquisas, administrada estrategicamente, no curso da qual incidem certos conhecimentos operativos oriundos da teoria dos tipos e da teoria das provas, apresentando uma teorização sob várias perspectivas que concorrem para a compreensão de uma investigação criminal científica e juridicamente ponderada pelo respeito aos direitos fundamentais, segundo a doutrina do garantismo penal.
Ao justificar o principal motivo de se estudar a Investigação Preliminar, Lopes Jr. apud Hoffmann (2017, p.264), aponta que:
O processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível segundo a razão e os postulados da instrumentalidade garantista. Ela é uma peça fundamental para o processo penal e, no Brasil, provavelmente por culpa das deficiências do sistema adotado (inquérito policial), tem sido relegada a um segundo plano. Não se deve julgar de imediato, principalmente em um modelo como o nosso, que não contempla uma fase 'intermediária' contraditória.
Comungando dessa opinião, Cavalcanti apud Hoffmann (2017, p. 265) dá seguimento ao raciocínio acerca da Investigação Preliminar, salientando que:
A investigação preliminar é assunto crucial ao estudo do processo penal, na medida em que permite a reunião de elementos que justifiquem a instauração ou não da persecução judicial, além de impedir a formulação de acusações açodadas, exercendo assim relevantes funções preventiva e preparatória do processo.
Por sua vez, o Inquérito Policial é o instrumento, no direito processual penal, que legalmente materializa a investigação preliminar, presidida pela autoridade policial, nos termos do Art. 4º, do Código de Processo Penal Brasileiro - CPPB, que assim prenuncia "A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria". Acerca o Inquérito Policial, Pitombo apud Hoffmann (2017, p.62-63) destaca que:
Não guarda cabimento asserir-se que surge como simples peça informativa; para, em seguida, afirmar que os meios de prova constantes no inquérito, servem para receber, ou rejeitar a acusação; prestam para decretar a prisão preventiva; ou para conceder a liberdade provisória; bastam, ainda, para determinar o arresto e o seqüestro de bens, por exemplo.
Além do mais, quase todos os elementos probatórios carreados às ações penais são identificados ou produzidos no curso da investigação preliminar, na fase pré-processual, ou seja, no curso do Inquérito Policial. As Operações Policiais representam uma fase do Inquérito Policial, destinada à arrecadação de provas e indícios de autoria e materialidade de infrações penais. Nessa esteira, Lopes Jr. (2015, p.181) assevera que:
O inquérito policial é um típico modelo de investigação preliminar policial, de modo que a polícia judiciária realiza a investigação com autonomia e controle, dependendo de intervenção judicial apenas para adoção de medidas restritivas de direitos fundamentais (v.g interceptações telefônicas, busca e apreensão, prisão cautelar, etc.). O Ministério Público pode requerer a abertura do inquérito, acompanhar sua realização e fazer, ainda, o controle externo da atividade policial. É bastante discutida a chamada "investigação direta pelo Ministério Público", ou seja, se o modelo brasileiro admite a figura do "promotor-investigador". Existem algumas manifestações favoráveis por parte do STF, mas a questão não é pacífica ainda. Quanto à posição do juiz no inquérito, é a de garantidor e não de instrutor (inquisidor). O juiz, no modelo brasileiro, não é encarregado da investigação e somente atua quando invocado, para autorizar ou não as medidas restritivas de direitos fundamentais. É uma intervenção excepcional, contingencial. Sublinhe-se, contudo, que a redação do art. 156, I, do CPP permite que o juiz, de ofício, determine a realização de provas urgentes e relevantes ainda na fase pré-processual. Tal dispositivo é objeto de severas críticas, pois viola a garantia do sistema acusatório e quebra a imparcialidade do julgador.
Frise-se ainda, que o Inquérito Policial visa a investigação do fato supostamente criminoso constante na notícia-crime ou desvendado de ofício pela autoridade policial, nascendo na possibilidade da existência de um fato punível e objetivando atingir o grau de probabilidade para o exercício da acusação. Configura-se como um modelo normativo sumário, que às vezes retrocede para um modelo plenário e se estende demasiadamente, tratando-se de prazo sem sanção, mesmo que exista limitação temporal. Lopes Jr. (2015, p. 181-182) leciona que:
O início do inquérito se dará nos termos do art. 5º do CPP, podendo ser: de ofício; mediante requisição do MP; a requerimento do ofendido; por comunicação oral ou por escrito (notícia-crime); por representação (nos crimes de ação penal pública condicionada); ou a requerimento da vítima (nos crimes de ação penal de iniciativa privada). Quanto ao desenvolvimento, no curso do inquérito são praticados diversos atos, previstos nos arts. 6º e 7º do CPP, inclusive a problemática coleta de DNA (Lei nº 12.654) A conclusão do inquérito será por meio de relatório da autoridade policial, não podendo esta arquivar os autos do inquérito policial (art. 17 do CPP). Concluído, será enviado para o Ministério Público, que poderá: oferecer denúncia; requisitar diligências complementares (art. 16 do CPP); ou requerer ao juiz o arquivamento. Se o juiz concordar, o inquérito será arquivado, não podendo ser reaberto sem novas provas (Súmula n. 524 do STF). Discordando do pedido de arquivamento, o juiz remeterá os autos para o órgão superior do Ministério Público, nos termos do art. 28 do CPP. A figura do arquivamento tácito ou implícito não é pacífica, ocorrendo quando o Ministério Público deixa de oferecer denúncia, mas também não pede expressamente o arquivamento, em relação a algum dos imputados do inquérito.
Quanto à forma dos atos, o Inquérito Policial é caracterizado como um procedimento inquisitivo, indisponível, oficial, escrito, dispensável, discricionário, sigiloso, administrativo e informativo, sendo que seus atos possuem valor probatório limitado, não servindo, por si só, para justificar uma condenação. Deve-se compreender a diferença entre Atos de Investigação, que são feitos no Inquérito, e Atos de Prova, que são realizados no processo.
Os Atos de Investigação não se referem a uma afirmação, mas a uma hipótese; estão a serviço da investigação preliminar, isto é, da fase pré-processual e para o cumprimento de seus objetivos; servem para formar um juízo de probabilidade, e não de certeza; não exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação, pois podem ser restringidos; servem para a formação da opinio delicti do acusador; não estão destinados à sentença, mas a demonstrar a probabilidade do fumus comissi delicti para justificar o processo (recebimento da ação penal) ou o não processo (arquivamento); têm função endoprocedimental, isto é, interna ao procedimento, para legitimar os atos da própria investigação (indiciamento e/ou adoção de medidas cautelares pessoais, reais ou outras restrições de caráter provisional); podem ser praticados pelo Ministério Público ou pela Polícia Judiciária.
Já os Atos de Prova estão dirigidos a convencer o juiz da verdade de uma afirmação; estão a serviço do processo e integram o processo penal; dirigem-se a formar um juízo de certeza - tutela de segurança; exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação; servem à sentença, logo, são destinados ao julgador; destinados a formar o convencimento do juiz, para condenar ou absolver o réu; a produção da prova é essencial para o processo, destinando-se a (re)cognição do juiz acerca do crime (fato passado) para formar sua convicção (função persuasiva); são praticados pelas partes, em contraditório, perante o juiz que julgará o processo.
Ainda em relação ao valor probatório dos atos no Inquérito Policial, Lopes Jr. (2015, p. 183) assim discorre:
É fundamental compreender que a garantia da jurisdicionalidade assegura o direito de ser julgado com base na prova produzida no processo, à luz do contraditório e perante o juiz competente. Excepcionalmente as provas técnicas, irrepetíveis, produzidas no inquérito (exame de corpo de delito, necropsia, etc.) serão submetidas a contraditório posterior, não sendo repetidas por absoluta impossibilidade. Todas as demais provas repetíveis (testemunhal, acareações, etc.) devem ser jurisdicionalizadas. Havendo risco de perecimento de uma prova testemunhal, poderá ser feito o incidente de produção antecipada de provas (Art. 225 do CPP c/c os arts. 846 a 851 do CPC).
No tocante à contaminação do julgador e exclusão física dos autos da investigação, deve-se observar o Princípio da Livre Apreciação das Provas pelo Juiz, merecendo destaque a visão de Lopes Jr. (2015, p.183):
Considerando que o inquérito policial ingressa inteiramente no processo, é inegável a contaminação consciente ou inconsciente do julgador. O art. 155 do CPP estabelece que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório, não podendo fundamentar sua decisão, exclusivamente, com base no inquérito. O ideal seria a exclusão física dos autos do inquérito - mas isso não está previsto no sistema brasileiro - para assegurar a máxima originalidade do julgamento (isto é, convicção formada a partir da prova produzida originariamente no processo), mantendo-se apenas as provas técnicas irrepetíveis e as produzidas no incidente de produção antecipada. O problema está na falta de previsão da exclusão física e na possibilidade de o juiz condenar utilizando (também) os elementos do inquérito, sem contraditório efetivo.
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Pereira apud Hoffmann (2017, p.65-66) comenta que embora não existam partes e contraditório, no inquérito policial considerado como procedimento penal de investigação no Brasil, há um sujeito de direito com interesses legítimos à defesa, talvez não ampla, mas em alguma medida proporcional aos atos de restrição ao âmbito de proteção de direitos fundamentais do investigado.
A respeito do Indiciamento no Inquérito Policial, cabe salientar a figura do indiciado como indivíduo que é apontado como possível autor de um suposto fato criminoso. Lopes Jr. (2015, p. 183) conceitua que:
O indiciamento é um ato formal e fundamentado, através do qual a autoridade policial afirma a existência de um 'feixe de indícios convergentes' que apontam para certa pessoa como autora de um fato aparentemente criminoso. Erroneamente, não há previsão no CPP do momento no qual deve ocorrer o indiciamento, se no final do inquérito (no relatório) ou no curso da investigação (tão logo surjam elementos que apontem concretamente para alguém). O indiciamento é situacional, provisório, pois o indiciado de hoje pode não ser acusado depois no processo, e tampouco vincula o Ministério Público.
Por último, vale ressaltar que o direito ao contraditório e à ampla defesa no Inquérito Policial foi assegurado ao indiciado, mas não de forma plena. Lopes Jr. (2015, p.183-184) entende que:
É um reducionismo afirmar que no inquérito não existem defesa e contraditório. Não há plenitude, mas é possível o direito de defesa pessoal positiva ou negativa, bem como a presença de advogado. Quanto ao contraditório, é restrito ao primeiro momento, qual seja, o da informação (art. 5º, LV, da CB; 8.2 da CADH e Súmula Vinculante n. 14 do STF). Denegado o pedido de vista do inquérito, poderá a defesa utilizar a reclamação (art. 102, I, e "I", da CB) ou, ainda, Mandado de Segurança a ser interposto em primeiro grau (quando a recusa for da autoridade policial).
4. DOS VÍCIOS NO INQUÉRITO POLICIAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS
A Investigação Preliminar, devido a sua importância, costuma ser propícia para reducionismos e generalizações, principalmente quanto a vícios que ocorrem no Inquérito Policial e suas consequências. É comum afirmarem que as irregularidades, máculas e vícios ocorridos no Inquérito Policial não contaminem a ação penal, nem se transmitem automaticamente para o processo. Isso se baseia no fato do Inquérito Policial consistir em procedimento apenas informativo e inquisitório.
Atualmente, ainda se entende que os defeitos no Inquérito Policial consistem em meras irregularidades que não afetam a substância do ato, nem atingem o processo penal subsequente. Nesse caso, as imperfeições nos atos investigatórios não provocam nulidades, que é uma sanção aplicável ao ato defeituoso, para que não produza seus regulares efeitos.
Contudo, deve-se investigar mais profundamente o regime aplicável aos vícios do Inquérito Policial e suas consequências na ação e no processo penal. Primeiramente, vale lembrar que o Inquérito Policial não produz somente elementos de informação, mas também provas. Hoffmann (2017, p.21-22) ensina que:
A inquisitoriedade (...) não impede que o contraditório e ampla defesa quanto a um elemento produzido pela Polícia Judiciária incidam de modo obrigatório, postergado para o processo penal. É o que ocorre com as provas cautelares e não repetíveis, elementos de convicção presentes na esmagadora maioria dos inquéritos policiais. Nesses casos, a atuação da defesa ocorrerá necessariamente, conquanto de maneira diferida (na fase processual), conferindo valor probatório a essas informações. (...) Logo, é totalmente equivocada a afirmação de que o "inquérito policial produz apenas elementos informativos" ou que o "inquérito policial é mera peça informativa”.
Seguindo esse raciocínio, merece salientar que a primeira etapa da persecução criminal deve ir de encontro às garantias constitucionais e à legalidade, pois estas não são se restringem apenas à fase processual da persecução penal. Nesse ponto, Lopes Jr. apud Hoffmann (2017, p.22) preleciona que:
A natureza administrativa do inquérito policial não o blinda contra as garantias processuais próprias do sistema processual penal constitucional brasileiro. (...) A não transmissibilidade de um vício do plano administrativo ao judicial (...) significaria que haveria um nível de proteção de direitos fundamentais diferente conforme se trate de um e outro plano jurídicos (...). A alusão de que o inquérito policial não se subsume ao controle de legalidade equivale a uma declaração de presunção absoluta de sua regularidade. (...) Imunizar esse ato contra qualquer declaração de invalidade é blindá-lo contra o exame de legalidade. Assim, o magistrado utilizaria os autos da investigação em sua sentença como elemento de motivação, mas paralelamente o acusado não poderia alegar sua invalidade.
Assim, admite-se a probabilidade de vícios no Inquérito Policial, em virtude da existência da formalidade dos atos, além da forma como garantia do cidadão perante atos do Estado, na esfera criminal. De igual forma, existe uma extensão processual dos atos policiais, ou seja, os elementos informativos e probatórios são incorporados na sentença como motivação, convertendo-se os atos do Inquérito Policial em atos processuais decisórios. Por isso, os atos investigatórios, quando ingressam na esfera processual, submetem-se aos mesmos critérios de legalidade e constitucionalidade da própria sentença, transmitindo-se a esta suas virtudes e defeitos.
Nessa seara, tomando-se por base que na tipicidade processual a atividade estatal no processo penal é regulada por meio de formas a serem seguidas, existe uma tipicidade a ser respeitada no Inquérito Policial, tanto em relação aos atos administrativos ordenados pela autoridade própria do Delegado, quanto às medidas cautelares determinadas pela autoridade policial após homologação judicial. Isto significa que a teoria da ilicitude de provas é perfeitamente aplicável à fase policial da persecução penal. Levando-se em conta a doutrina processual penal e também a administrativa, Hoffmann (2017, p.23) classifica os vícios em:
a) irregularidades (ato irregular): imperfeições sem consequência - ex: não entrega da nota de culpa ao preso em flagrante que em seu interrogatório foi cientificado de suas garantias constitucionais, do motivo da prisão e dos nomes do condutor e testemunhas;
b) invalidações (ato anulável ou ato nulo): defeitos que acarretam a invalidação do ato, seja por nulidade relativa (prejuízo precisa ser comprovado - ex: decisão de indiciamento não fundamentada) ou absoluta (presume-se a perda - ex: interceptação telefônica sem autorização judicial);
c) inexistências: deficiências que acarretam a não existência do ato, pois a imperfeição antecede a própria consideração sobre a validade do ato - ex: relatório de inquérito policial assinado não pelo Delegado, mas pelo Escrivão.
É importante destacar que o reconhecimento da nulidade do elemento informativo ou probatório produzido no Inquérito Policial pode ser feito, de ofício ou a requerimento, tanto judicialmente pelo Juiz, em razão da inafastabilidade da jurisdição, quanto administrativamente pelo Delegado, em virtude do Princípio da Autotutela. Porém, o reconhecimento da nulidade não significa necessariamente o insucesso do processo penal, porque a imperfeição pode ser convalidada pela repetição, tanto no Inquérito Policial, quanto no processo penal, sendo que o elemento viciado pode estar acompanhado de outras provas válidas.
Com isso, a análise das nulidades do Inquérito Policial e o grau de contaminação do respectivo processo penal levam em consideração a individualidade ou pluralidade do elemento informativo ou probatório viciado, o efetivo saneamento do vício e a derivação das demais provas. Sobre isso, Hoffmann (2017, p.24) explica que:
De um lado, o processo penal restará prejudicado se o elemento de convicção nulo for o único a amparar a denúncia e não puder ser produzido novamente, ou se apesar de existirem outras provas elas decorrerem exclusivamente do vestígio viciado (teoria dos frutos da árvore envenenada). De outra banda, a persecução poderá seguir seu curso normalmente se for possível convalidar o elemento informativo ou probatório, ou se apesar de não saneada a nulidade do vestígio ele estiver acompanhado de outros elementos que dele não derivarem.
Destaca-se ainda que o recebimento da denúncia não convalida todas as nulidades da fase pré-processual, pois os vícios em elementos investigatórios não podem ser superados simplesmente pelo início do processo. Por isso, o recebimento da denúncia não supera as irregularidades que surgiram no Inquérito Policial, bem como não exaure sua suposta função meramente informativa. Nesse sentido, Hoffmann (2017, p.24), comentando alguns julgados das cortes superiores sobre esse tema, cita o seguinte:
Não obstante as cortes superiores não admitirem com todas as letras o regime de nulidades do inquérito policial, em inúmeros julgados acabam por invalidar os atos investigativos praticados sem a observância das formalidades e garantias devidas. São exemplos: a) busca e apreensão domiciliar cumprida em endereço não especificado no mandado judicial; b) quebra de sigilo de dados amparada exclusivamente em denúncia anônima; c) interceptação telefônica executada por agentes não policiais civis ou federais; d) interceptação telefônica iniciada por denúncia anônima desacompanhada de diligências preliminares.
Percebe-se que as próprias cortes superiores reconhecem que a investigação policial possui força probante e reconhecem nulidades, afastando a imunidade dos atos policiais contra qualquer declaração de invalidade. Agindo dessa forma, entram em contradição com seus próprios julgados, os quais difundem que não existe nulidade no Inquérito Policial.
Acrescenta-se ainda, mesmo a legislação não explicitando de forma clara essa sistemática, que uma evolução pode ser evidenciada no Art. 7º, Inciso XXI, do Estatuto do OAB (Lei nº 8.906/94), consoante o qual:
Art. 7º - São direitos do advogado:
XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) apresentar razões e quesitos.
Por fim, o direito à prova, como os demais direitos fundamentais, não é absoluto, inadmitindo-se provas ilícitas, conforme o Art. 5º, Inciso LVI, da Constituição Federal de 1988, o qual assim discrimina: "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". Logo, a busca da verdade probatória não pode conter imperfeições, devendo-se sempre estar respaldada no respeito às garantias constitucionais e legais. Sobre esse assunto, Lopes Jr. apud Hoffmann (2017, p.25), de forma célebre, argumenta que:
É preciso que se compreenda, definitivamente, que em um processo penal democrático e constitucional, forma é garantia e limite de poder. À luz da legalidade processual, todo poder é condicionado e precisa ter seu espaço de exercício claramente demarcado. É uma decorrência lógica e inafastável da "tipicidade processual". (...) Também não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medidas assecuratórias), ou seja, com base nessa peça "meramente informativa" (como reducionistamente foi rotulado ao longo de décadas), podemos retirar o "eu" e "minhas circunstâncias".
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De tudo que foi explanado neste trabalho, pode-se perceber a importância do Inquérito Policial no Brasil, como um Procedimento Investigatório, presidido pela autoridade policial, cuja finalidade é a apuração da autoria e da materialidade das infrações penais. Porém, esse instrumento investigativo não está imune à contaminação por vícios em seus atos procedimentais, os quais poderão gerar irregularidades, invalidações ou inexistências, conforme o caso. Tais vícios não tornarão nulo o processo penal subsequente, se descobertos a tempo e sanados pela convalidação. Caso não sejam convalidados tempestivamente, nem puder ser reproduzido o ato nulo que fundamentou unicamente a denúncia, o processo penal ficará prejudicado, pois não fornecerá elementos suficientes à formação do livre convencimento Juiz para a prolação de sua decisão.
Foi feita uma breve contextualização acerca de toda a trajetória histórica que o Inquérito Policial percorreu, desde o Egito, passando pela Palestina, Roma, Idade Média, Ordenações Portuguesas, Sistemas Mistos na França Napoleônica, e, por último, chegando ao Brasil, que começou adotando o Sistema de Investigação criminal Inquisitivo, avançando depois para um Sistema Misto aos moldes do Código Processual Penal de Napoleão de 1808, que mesclou um sistema inquisitivo inicial, na fase investigatória, com um Sistema Acusatório posterior. Este Sistema Misto perpetuou-se no Brasil até os tempos atuais, permanecendo imutável diante das transformações que o País enfrentou nesse extenso período.
Em seguida, foi abordada de forma bastante ampla a questão do Inquérito Policial como espécie de Investigação Preliminar no Brasil. Mostrou-se que esta é feita pela Polícia Judiciária, através do Inquérito, presidido pela autoridade policial e instrumento do direito processual penal cuja finalidade é apurar as infrações penais e sua autoria. Frisou-se que a maioria dos elementos probatórios juntados às ações penais são frutos do Inquérito Policial, que investiga suposto fato criminoso, podendo transformá-lo em fato punível, propício ao exercício da acusação. Delineou-se que a forma dos atos no Inquérito Policial possui como características a inquisitoriedade, indisponibilidade, oficialidade, dispensabilidade, discricionariedade, sigilosidade, sendo ainda um procedimento escrito, administrativo e informativo, no qual se diferenciam os Atos de Investigação dos Atos de Prova. Exaltou-se a observância ao Princípio da Livre Apreciação das Provas pelo Juiz quanto à contaminação do julgador e exclusão física dos autos da investigação. Finalizou-se tratando do Indiciamento, especialmente do indiciado como possível autor do delito, e seu relativo direito ao contraditório e à ampla defesa.
Foram salientados também os vícios que afetam o Inquérito Policial e suas consequências na ação e no processo criminal. Restou provado que o Inquérito Policial produz tanto elementos de informação quanto de provas, estando sujeito às garantias constitucionais e legais, dentre elas o direito do advogado de assistir seu cliente investigado durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente. Deste modo, a probabilidade de vícios no Inquérito Policial é admissível, sendo aplicável a ilicitude de provas nessa Investigação Preliminar, podendo tais vícios estenderem-se ao processo penal quando a este for incorporado. Analisou-se que as nulidades no Inquérito Policial, reconhecidas tanto pelo Juiz como pelo Delegado, e sua contaminação ao processo criminal, leva em conta a individualidade ou pluralidade do elemento informativo ou probatório viciado, o efetivo saneamento do vício e a derivação das demais provas, não convalidando as nulidades com o recebimento da denúncia.
Portanto, observa-se que a Polícia Judiciária desempenha papel fundamental na condução do Inquérito Policial, cuja atuação é imperativa para a fase de persecução penal consubstanciada na ação penal. Some-se ainda o fato de que os elementos angariados pelo Delegado no curso do Inquérito Policial são a base para a decretação das medidas cautelares que afetam diretamente direitos fundamentais do investigado, tais como a quebra de sigilo das comunicações telefônicas e os sigilos bancário e fiscal.
Contudo, o reconhecimento de nulidades no Inquérito Policial deve ser feito com cautela, para impedir o formalismo estéril e o desvirtuamento da finalidade da Investigação Preliminar, que é servir como ferramenta para a aplicação do direito penal. No entanto, não se pode admitir uma informalidade que se desvie da formalidade garantida pela persecução penal, bem como se deve evitar que o Inquérito Policial seja ambiente propício para chacinas jurídicas.
Finalmente, reitera-se que o Inquérito Policial, instrumento de Investigação Preliminar legalmente previsto no Código de Processo penal, precisa ser objeto de constantes aperfeiçoamentos e estudos acadêmicos, porém desprovidos dos preconceitos e rancores institucionais, os quais têm permeado esse debate nos últimos tempos, visando, assim, a obtenção de vantagens para o sistema de justiça criminal, para o investigado e para a sociedade em geral.
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[1]É mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins - UFT, tendo se especializado em Ciências Criminais e também em Direito e Processo Administrativo na mesma universidade. Graduado em Direito e Comunicação Social, é professor de Processo Penal e Direito Penal atualmente na Faculdade Serra do Carmo, tendo atuado como professor convidado na Universidade Federal do Tocantins em Direito Penal I e II. É membro do conselho editorial da revista Vertentes do Direito (UFT), sendo servidor da Polícia Civil de Tocantins deste 2014. É professor de Pós-Graduação em Ciências Criminais da UFT. E-mail: [email protected].
Bacharelanda do Curso de Direito, na Faculdade Serra do Carmo-FASEC, em Palmas -TO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Selma Azevedo de. Vícios no Inquérito Policial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51773/vicios-no-inquerito-policial. Acesso em: 04 nov 2024.
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