RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de estudar a possibilidade de ingresso do Poder Judiciário no campo de políticas públicas para a proteção dos assim denominados direitos sociais, por ocasião de uma omissão do Poder Público em tutelar o chamado Mínimo Existencial de tais direitos, sobretudo através do mecanismo da tutela coletiva de direitos, de maneira a constatar a legitimidade de tal postura pelo órgão judicante, levando-se em consideração a magnitude do conflito, o Princípio da Separação de Poderes e a famigerada Reserva do Possível, tanto no plano de elaboração quanto de execução do orçamento público. Há argumentos apresentados no texto tanto para a hipótese de aceitação da interferência judiciária e para aqueles que a negam, entendendo tratar-se de violação à separação de poderes. Para alcançar tal objetivo, seguiu-se o método técnico-científico, com um estudo doutrinário e jurisprudencial a respeito do tema, passando pela construção de conceitos básicos necessários à formação de um pensamento crítico sobre a matéria, além de apanhados históricos sobre institutos a serem abordados, sem olvidar-se de trazer e opinião de grandes autores sobre o tema, para acrescer embasamento teórico ao trabalho.
Palavras-Chave: Reserva do Possível, Mínimo Existencial, Tutela Coletiva, Ativismo Judicial, Legitimidade.
ABSTRACT: The present work has the objective of studying the possibility of joining the Judiciary in the field of public politics for the protection of so-called social rights, on the occasion of an omission by the State to protect the Minimum Existential of such rights, especially through the Mechanism of class actions, in order to verify the legitimacy of such a position by the Judiciary, taking into account the magnitude of the conflict, the Separation of Powers and the known Possible Reserve, both in the elaboration plan and in Implementation of the public budget. Were considered arguments both of the hipotesis of acceptance of the judiciary interference and for its denial. To achieve this objective, it was used the scientific method, with a doctrinal and jurisprudential study on the subject, including the construction of basic concepts, necessary for the formation of a critical opinion on the subject, as well as historical recordings about institutes to be addressed, without forgetting to bring the opinion of great authors on the subject, to add theoretical background to the work.
Keywords: Possible Reserve, Minimum Existential, Class Actions, Judicial Activism, Legitimacy.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. LINHAS GERAIS DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DA TUTELA COLETIVA DE DIREITOS. 2.1 Breve Escorço Histórico. 2.2 A Coisa Julgada nas Ações Coletivas. 3. O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL. 3.1. Os Direitos Sociais na Constituição Federal. 3.2. O Mínimo Existencial e sua relação com os Direitos Fundamentais a uma Prestação. 3.3. A Reserva do Possível como Condição à Efetivação de Direitos a Uma Prestação. 4. POSSIBILIDADE DO ATIVISMO JUDICIAL EM CONFLITOS MULTITUDINÁRIOS DIANTE DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS. 4.1. Ativismo Judicial e Separação de Poderes. 4.2. A Dialeticidade entre Reserva do Possível e Mínimo Existencial. 4.3. A Tutela de direitos sociais por intermédio da Ações Coletivas. 5. CONCLUSÃO. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
O direito brasileiro, atendendo à demanda social existente, evoluiu da tutela eminentemente individual para a criação de um mecanismo de tutela coletiva de direitos. Tal mutação revela, verdadeiramente, uma tendência mundial de coletivização dos conflitos, e a adequação dos ordenamentos para satisfazer a necessidade de uma pacificação social adequada.
Nesse sentir, importante mencionar que a ação civil pública é, antes de mais nada, ação de cunho constitucional, garantidora de direitos previstos na carta magna. Faz parte das denominadas garantias instrumentais, que visa operacionalizar e dar consistência aos direitos fundamentais em seu âmbito material. E tais ações caracterizam-se por, além de terem procedimentos céleres, visarem alcançar o máximo de efetividade na tutela dos direitos garantidos.
Constata-se, através de tais considerações, que a tutela coletiva de direitos no ordenamento jurídico brasileiro é bastante ampla, contando com um grande arcabouço de normas jurídicas interconectadas, sensíveis à necessidade supracitada por uma tutela efetiva no que tange à macroconflituosidade que se afigura numa sociedade plural, complexa e cada vez mais populosa e interligada através dos meios de comunicação e da tecnologia.
Com o crescente problema da necessidade de garantir o mínimo existencial presente nos direitos fundamentais constantes no texto constitucional, que contrastam com a famigerada reserva do possível, é cada vez maior a demanda da população pugnando pela intervenção judicial, que muitas vezes precisa adotar uma postura vista por alguns como essencialmente ativista.
É cediço que o Poder Judiciário tem a missão constitucional de tutelar lesão ou ameaça de lesão aos direitos da população. Ainda que se reconheça que a macroconflituosidade dos direitos em aparente contradição possa resultar em restrições mais severas à atividade administrativa, não se deve descartar de plano a legitimidade da Ação Civil Pública, como meio de tutela coletiva que é, para remediar uma omissão inconstitucional. Busca-se por meio do presente estudo aprofundar-se no tema e expor argumentos em favor dos tutelados e do Estado, de maneira a encontrar uma solução viável.
O tema trazido é deveras espinhoso, na medida em que comporta diversas análises e pontos de vista a respeito de matrizes constitucionais de elevada hierarquia. A proposta de estudo transita nos limites entre a Separação de Poderes e a Inafastabilidade da Jurisdição como garantia de sua força normativa.
Revela-se Legítimo questionar: Até que ponto é legítimo um membro não eleito pela coletividade pode intervir na disposição de recursos públicos de maneira a garantir o acesso a direitos básicos, em possível detrimento de terceiros que seriam beneficiados por tais recursos? Tal problema se magnifica quando se pensa em uma tutela coletiva de direitos, em que a conflituosidade não se restringe aos poucos que ingressam efetivamente no judiciário, mas ocorre em larga escala.
O presente trabalho, inspirado em trabalho de conclusão de curso utilizado na pós graduação, utiliza como método de pesquisa exclusivamente a abordagem indireta, através de pesquisa bibliográfica e documental, com a captação de opiniões de trabalhos constantes no referencial, mas de forma a construir um pensamento crítico acerca da matéria.
Através da construção de conceitos, e da análise da abrangência de institutos dentro do ordenamento jurídico, com o estudo do sistema deste, visa-se formar uma conclusão satisfatória e fundamentada acerca da problemática apresentada.
Há quem aponte a origem histórica das ações de natureza coletiva ao Direito Romano, no qual o cidadão era legitimado para promover a defesa da coisa pública em razão do vínculo que possuía com ela. Nesse sentido, Freddie Didier traz interessante apanhado histórico:
Primeiro, e mais conhecido, o antecedente romano da ação popular em defesa das rei sacrae, rei publicae. Ao cidadão era atribuído o poder de agir em defesa da coisa pública em razão do sentimento, do forte vínculo natural que o ligava aos bens públicos lato sensu, não só em razão da relação cidadão/bem público, mas também pela profunda noção de que a República pertencia ao cidadão romano, era seu dever defende-la. Daí o brocardo Reipublicae interest quam plurimus ad defendam suam causa (interessa à República que sejam muitos os defensores de sua causa) (DIDIER, ZANETI, 2013, p.25)
Deveras, parece impróprio negar o caráter coletivo da tutela de direitos em tal ordenamento.
Todavia, apesar de advir de sistema distinto do nosso, o de common law, a principal inspiração do microssistema brasileiro de processos coletivos (que será abordado mais a frente).
Tal antecedente não é esquecido pelo jurista baiano:
Já as ações coletivas das “classes”, antecedente mais próximo das atuais class actions norte-americanas e da evolução brasileira das ações coletivas disciplinadas no CDC, são existentes na prática judiciária anglo-saxã nos últimos oitocentos anos. (DIDIER, ZANETI, 2013, p.25)
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, endossa a tese, explicitando a origem da legitimação coletiva no direito inglês:
Aponta-se a experiência inglesa, no sistema da common law, como origem dos instrumentos do processo coletivo, e, mais especificamente, da tutela coletiva de direitos. Desde o século XVII, os tribunais de equidade (Courts of Chancery) admitiam, no direito inglês, o bill of Peace, um modelo de demanda que rompia com o princípio segundo o qual todos os sujeitos devem, necessariamente, participar do processo (...). Assim nasceu, segundo a maioria dos doutrinadores, a ação de classe (class action). (ZAVASCKI, 2006, p.29-30)
E continua o citado mestre, trazendo como consequência da experiência inglesa, a consagrada experiência norte-americana:
“O certo é que da antiga experiência das cortes inglesas originou-se a moderna ação de classe (class action), aperfeiçoada e difundida no sistema norte-americano, especialmente a partir de 1938, com a Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure (...).” (ZAVASCKI, 2006, p.30)
A evolução processual em direção à formação de um microssistema de tutela coletiva no Brasil passou por duas fases, segundo Teori Zavascki. A primeira delas teve início a partir de 1985, e se dá com a introdução no ordenamento jurídico de diplomas normativos, até então inexistentes, para a tutela de interesses transindividuais:
São marcos importantes da primeira etapa as diversas leis regulamentadoras das chamadas ‘ações civis públicas’, a começar pela Lei 7.347, de 24.07.1985 (que disciplinou a ‘ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”, e aos direitos e interesses difusos de um modo geral). Seguiram-na outras, provendo sobre a tutela de interesses transindividuais de pessoas portadoras de deficiências (Lei 7.853, de 24.10.89), de crianças e adolescentes (Lei 8.069, de 13.07.90), de consumidores (Lei 8.069, de 11.09.90), da probidade na administração pública (Lei 8.429, de 02.06.92), da ordem econômica (Lei 8.884, de 11.06.94) e dos interesses das pessoas idosas (Lei 10.741, de 01.10.03). (ZAVASCKI, 2006, p.19)
Já a segunda onda de reformas se deu através de modificações realizadas no próprio CPC/73, instituindo definitivamente o sincretismo processual, conforme se viu no capítulo primeiro deste trabalho, bem como a universalização possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela, no bojo dos autos:
É inegável, ainda hoje, a importância da classificação tradicional da tutela dos direitos, em tutela de conhecimento, de execução e cautelar. Mas certamente ele já não pode ser tida como única e mais importante, como a considerava Liebman. Pela nova configuração que o sistema processual assumiu com a segunda onda de reformas, especialmente em decorrência da universalização do instituto da tutela antecipada, muito mais importante e apropriado será considerá-la nas duas dimensões que agora evidentemente ocupa (...), a saber: a) a tutela definitiva (...); e b) a tutela provisória (...). (ZAVASCKI, 2006, p.26-27)
A consagração do sincretismo processual foi definitivamente mantida no Código de Processo Civil de 2015, conforme se infere do Título II, Art. 513 e seguintes do referido diploma.
Veja-se que com o advento da Constituição Cidadã, em 1988, ficou expressamente consagrados diversos direitos de natureza metaindividual, bem como a legitimidade da substituição processual, conceitos vistos adiante:
Com o advento da Constituição de1988, ficou expressamente consagrada, com a marca da sua estatura superior, a tutela material de diversos direitos com natureza transindividual, como o direito ao meio ambiente sadio (art. 225),à manutenção do patrimônio cultural (art. 216), à preservação da probidade administrativa (...).
No sistema consagrado do Código de Processo Civil, era admitida a defesa conjunta de direitos individuais afins ou comuns de vários titulares, mas desde que ocorresse por regime de litisconsórcio ativo facultativo (CPC, Art.46), ou seja, com a presença dos próprios litisconsortes no pólo ativo da relação processual. A Constituição de 1988 expandiu notavelmente uma forma alternativa de tutela coletiva de direitos, e o fez adotando técnica de substituição processual. Com esse desiderato, outorgou legitimação a certas instituições e entidades para, em nome próprio, defender em Juízo direitos subjetivos de outrem. Foi o que ocorreu com as entidades associativas (art. 5o, XXI) e sindicais (art.8o, III), a quem foi conferida legitimação para defender em Juízo os direitos de seus associados e filiados. (ZAVASCKI, 2006, p.38)
Diante de todo o exposto, pode-se dizer que houve verdadeira revolução, desde o advento do CPC/73, passando pelo Novo CPC, no que tange à tutela de direitos coletivos lato sensu, de forma que, nas palavras do mestre José Carlos Barbosa Moreira, “o brasil pode orgulhar-se de ter uma das mais completas e avançadas legislações em matéria de proteção de interesses supraindividuais.” (BARBOSA MOREIRA, 2004.)
No que tange ao atual estágio de evolução do direito brasileiro, é pacífico atualmente a existência de um microssistema de tutela coletiva, nas palavras dos professores Hermes Zaneti Jr. e Leonardo de Medeiros Garcia:
“Os sistemas processuais do CDC e da LACP foram interligados, estabelecendo-se, assim, um microssistema processual coletivo, sendo aplicáveis, reciprocamente, a um e a outro, conforme arts. 90 do CDC e 21 da LACP (…). Mas não somente, também todas as demais leis que tratam dos direitos coletivos materiais e estabelecem regras processuais passam a integrar esse microssistema, porque estas normas, unidas pelos princípio da lógica jurídica comum, não individualista, se interpenetram e subsidiam.” (ZANETI JR.; GARCIA, 2017, p. 19).
Entendimento que também ganhou a adesão do Superior Tribunal de Justiça:
“A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei de ação civil pública, de ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se.”(STJ, REsp 510.150/MA, Rel. Min. Luis Fux, DJ 29.03.2004)
Dessa maneira, atualmente encontra-se em um terceiro estágio da tutela de direitos coletivos, a fase da “tutela ampla e irrestrita de direitos” (ZANETI JR.; GARCIA, 2017), com subsídio na Constituição Federal, que garante um direito fundamental à tutela coletiva.
Passa-se no presente ato, à análise desta nos processos de natureza coletiva.
O Código de Defesa do Consumidor, em seu Art. 103, traz o regime da coisa julgada nas Ações de Natureza Coletiva:
“Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
§ 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.
§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória. (BRASIL, 2013, Lei 8.078/90)
Nesse sentido, na coisa julgada erga omnes, a qualidade de imutabilidade da decisão meritória abrange toda a coletividade. Já a coisa julgada ultra partes vincula apenas o grupo ou categoria.
Prosseguindo, impende ressaltar que a coisa julgada, em qualquer caso, manifesta-se como exemplo de coisa julgada secundum eventum probationis, à exceção do caso da improcedência na tutela de direitos individuais homogêneos, ainda que por falta de provas, consoante interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça ao Art. 103, III, § 2° (STJ, REsp 1.302.596-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 9/12/2015).
À exceção do caso dos direitos individuais homogêneos, percebe-se uma relativização da autoridade da res iudicata, que não alcançará o seu núcleo material quando o julgamento pela improcedência decorrer da insuficiência de provas.
Pode-se entrever, também, a existência do efeito in utilibus, podendo os integrantes da coletividade beneficiar-se de tal sentença em um litígio individual: “a coisa julgada nas demandas essencialmente coletivas (difusas e coletivas) pode ser aproveitada para as lides individuais derivadas da mesma causa de pedir (art. 103, § 3o do CDC)” (RODRIGUES, in DIDIER, 2013.)
Por todas estas considerações, diante das especificidades da tutela coletiva de direitos, é possível concluir a existência de larga vantagem para a tutela em massa de direitos violados, passando pela amplificação da eficácia da sentença, pelo regime especial da coisa julgada voltado a beneficiar os substituídos, pela legitimação necessariamente adequada dos substitutos, com maior disposição recursos para produção probatória a ser dispendida no andamento do feito, além da óbvia vantagem ao judiciário e ao demandado, ante a redução do número de processos a serem julgados.
Primeiramente, importante fazer um apanhado histórico acerca dos direitos sociais e sua evolução no meio jurídico internacional.
Segundo Marcelo Novelino, “a declaração de direitos sociais nas diversas Constituições teve como marco inicial a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, tendo se fortalecido ao longo do século XX" . (NOVELINO, 2013.)
Nesse mesmo sentido, José Afonso da Silva aponta a Constituição Mexicana como o marco inicial para a positivação dos direitos sociais, fazendo um panorama com a Constituição Brasileira:
“A ordem social, como a ordem econômica, adquiriu dimensão juridica a partir do momento em que as constituições passaram a discipliná-la sistematicamente, o que teve início com a Constituição Mexicana de 1917. No Brasil, a primeira constituição a inscrever um título sobre a ordem econômica e social foi a de 1934, sob a influência da Constituição alemã de Weimar, o que continuou nas constituições posteriores.
Os direitos sociais, nessas constituições, saíram do capítulo da ordem social, que sempre esteve misturada com a ordem econômica. A Constituição traz um capítulo próprio dos direitos sociais (capítulo II do título III) e, bem distante deste, um título especial sobre a ordem social (título VIII)." (DA SILVA, 2009, p. 285)
Assim, percebe-se que os direitos sociais ganharam relevo especial na nova constituição, que optou por alocá-los em capítulo específico, separados do título da ordem social, dando destaque a estes frente à ordem econômica.
Todavia, DA SILVA (2009) adverte que não houve uma separação total, como se direitos sociais fossem algo completamente em separado da ordem social. Na verdade, o Art. 6º da Lei Maior demonstra que aqueles, os direitos sociais, são algo ínsito na ordem social, verdadeiro conteúdo desta, quando dispõe: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, Constituição Federal).
Feito o apanhado histórico, passa-se ao conceito dos direitos sociais dentro do contexto trazido pela Constituição Federal de 1988.
Segundo Gilmar MENDES e Paulo Gonet BRANCO(2015, p. 631), há várias formas de classificar os direitos fundamentais. Os direitos à organização (que são "aqueles que dependem, na sua realização, de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos e procedimentos indispensáveis à sua efetivação”) e ao procedimento normalmente são classificados como espécies de um direito à prestação em sentido amplo. Já os direitos sociais seriam chamados de direitos de prestação em sentido estrito, uma outra espécie de direitos de prestação em sentido amplo.
Continuam MENDES e BRANCO (2015) arrematando que em ambos os casos, os pressupostos fático-materiais são particularmente relevantes, sendo esta a razão pela qual os direitos de prestação em sentido amplo, categoria que engloba os direitos à prestação em sentido estrito e os direitos à organização e ao procedimento, podem consistir na edição de atos normativos pelo Estado, na criação de procedimentos e garantias judiciais e ainda com instituição de auxílios pecuniários e realização de políticas públicas.
Para melhor entender a inserção dos direitos sociais no âmbito dos direitos fundamentais, é necessário ter em mente que estes, os direitos fundamentais em sentido amplo, possuem diferentes funções no ordenamento.
Primeiramente, podem ser direitos de defesa no âmbito que se destinam a proteger posições subjetivas em face do Poder Público. Nesse sentido, Gilmar Mendes, em lição memorável, traz as diferentes posições oriundas dessa face dos direitos fundamentais:
“Na condição de direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário. Se o Estado viola esse princípio, dispõe o indivíduo da correspondente pretensão, que pode consistir, fundamentalmente, em uma:
1) pretensão de abstenção (Unterlassungsanspruch);
2) pretensão de revogação (Aufhebungsanspruch), ou, ainda, em uma
3) pretensão de anulação (Beseitigungsanspruch). (…)
4) pretensão de consideração (Berücksitigungsanspruch), que impõe ao Estado o dever de levar em conta a situação do eventual afetado, fazendo as devidas ponderações; e
5) pretensão de defesa ou de proteção (Schutzanspruch), que impõe ao Estado, nos casos extremos, o dever de agir contra terceiros.
A clássica concepção de matriz liberal-burguesa dos direitos fundamentais informa que tais direitos constituem, em primeiro plano, direitos de defesa do indivíduo contra ingerências do Estado em sua liberdade pessoal e propriedade. Essa definição de direitos fundamentais — apesar de ser pacífico na doutrina o reconhecimento de diversas outras — ainda continua ocupando lugar de destaque na aplicação dos direitos fundamentais. Essa ideia, sobretudo, objetiva a limitação do poder estatal a fim de assegurar ao indivíduo uma esfera de liberdade. Para tanto, outorga ao indivíduo um direito subjetivo que lhe permite evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental ou mesmo a eliminação de agressões que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal” (MENDES; BRANCO, 2015, p.636)
Por outro lado, os direitos fundamentais podem servir, outrossim, de proteção a institutos jurídicos de elevada hierarquia, ante a necessidade de se abalizar os instrumentos de garantia de efetivação de direitos fundamentais:
“Muitas vezes, a Constituição pode conferir garantia a determinados institutos, ou seja, a um complexo coordenado de normas, como a propriedade, a herança, o casamento.
Assim, a liberdade de associação (CF, art. 5º, XVII) depende, pelo menos parcialmente, da existência de normas disciplinadoras do direito de sociedade (constituição e organização de pessoa jurídica etc.). Também a liberdade de exercício profissional exige a possibilidade de estabelecimento de vínculo contratual e pressupõe, pois, uma disciplina da matéria no ordenamento jurídico. O direito de propriedade, como observado, não é nem sequer imaginável sem disciplina normativa
Da mesma forma, o direito de proteção judiciária, previsto no art. 5º, XXXV, o direito de defesa (art. 5º, LV) e o direito ao juiz natural (art. 5º, XXXVII), as garantias constitucionais do habeas corpus, do mandado de segurança, do mandado de injunção e do habeas data são típicas garantias de caráter institucional, dotadas de âmbito de proteção marcadamente normativo.
Também fora do rol dos direitos e garantias fundamentais (Título II) podem ser localizadas garantias institucionais, tais como a garantia de um sistema de seguridade social (art. 194), da família (art. 226), bem como da autonomia das universidades (art. 207), apenas para mencionar os exemplos mais típicos.
Ressalte-se que alguns desses institutos podem até mesmo ser considerados garantias institucionais fundamentais, em face da abertura material propiciada pelo art. 5º, § 2º, da Constituição.
Nesses casos, a atuação do legislador revela-se indispensável para a própria concretização do direito. Pode-se ter aqui um autêntico dever constitucional de legislar (Verfassungsauftrag), que obriga o legislador a expedir atos normativos “conformadores” e concretizadores de alguns direitos” (MENDES; BRANCO, 2015, p. 636-637)
Por fim, os direitos fundamentais são elementos que traduzem garantias positivas do exercício da liberdade.
Nesse sentir, revela-se o dever estatal de agir como garantidor de direitos previstos na Constituição, que por sua natureza demandam uma atuação positiva Estatal para sua consecução. Novamente, Gilmar Mendes sintetiza com perfeição:
“Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado) mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos. Assim, enquanto direitos de defesa (status libertatis e status negativus) dirigem-se, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, ressalvados os avanços registrados ao longo do tempo, podem ser reconduzidos ao status positivus de Jellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material.
A concretização dos direitos de garantias às liberdades exige, não raras vezes, a edição de atos legislativos, de modo que eventual inércia. (…)
A moderna dogmática dos direitos fundamentais discute a possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e sobre a possibilidade de eventual titular do direito dispor de pretensão a prestações por parte do Estado.
Se alguns sistemas constitucionais, como aquele fundado pela Lei Fundamental de Bonn, admitem discussão sobre a existência de direitos fundamentais de caráter social (soziale Grundrechte), é certo que tal controvérsia não assume maior relevo entre nós, uma vez que o constituinte, embora em capítulos destacados, houve por bem consagrar os direitos sociais, que também vinculam o Poder Público, por força inclusive da eficácia vinculante que se extrai da garantia processual-constitucional do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão” (MENDES; BRANCO, 2015, p. 637-638)
Conforme se infere das considerações expostas pelo prestigiado autor, os direitos sociais, que configuram direitos de prestação em sentido estrito, são apenas mais uma forma de manifestação dos denominados direitos fundamentais, assim classificados e qualificados por estarem em um capítulo apartado e exigirem, por natureza, uma ação positiva do Estado.
Não obstante os ensinamentos trazidos, ressalta-se haver certa controvérsia acerca da classificação dos direitos sociais como fundamentais.
Exemplo de tal posição que nega o status de direitos fundamentais aos direitos sociais é a de Ricardo Lobo Torres:
“(…) os direitos econômicos (arts. 174 a 179 da CF de 1988) e sociais (arts. 6º e 7º), que se distinguem dos fundamentais porque dependem da concessão do legislador, estão despojados do status negativos, não geram por si sós a pretensão às prestações positivas do Estado, carecem de eficácia erga omnes e se subordinam à idéia de justiça social. Esses direitos às vezes aparecem, principalmente na doutrina alemã, sob a denominação de direitos fundamentais sociais, em virtude de sua constitucionalização; mas, segundo a maior parte dos autores germânicos que a adotam, subordinam-se à justiça social, pelo que não se confundem com os direitos da liberdade nem com o mínimo existencial. A Constituição de 1988 abre, no Título 11, dedicado aos Direitos e garantias fundamentais, o Capítulo 11, que disciplina os Direitos Sociais (arts. 6º a l1), separando-os, entretanto, dos Direitos individuais e coletivos, de que trata o Capítulo I (art. 5º). A Suprema Corte dos Estados Unidos tem recusado natureza constitucional aos direitos econômicos e sociais que transcendem o mínimo tocado pelos interesses fundamentais, como sejam os direitos à educação ou à moradia, fazendo-se forte no argumento de que "pobreza e imoralidade não são sinônimos". Vê-se, pois, que, se a emergência dos direitos sociais modificou a equação liberdade/igualdade e deu novo colorido à temática da justiça social, nem por isso transferiu a lógica e as garantias dos direitos da liberdade para os sociais, nem metamorfoseou os direitos sociais em autênticos direitos funda- mentais.” (TORRES, 1989, p. 34)
Ingo Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2010) reconhecem a controvérsia, na medida em que alguns afirmariam que não se trataria de direitos fundamentais autênticos, mas submetidos a regime similar. Nesse sentido, os direitos sociais abrangem direitos a prestações positivas e direitos de defesa, partindo-se do critério da natureza da posição jurídico subjetiva reconhecida ao titular do direito, fundamentando então posições subjetivas negativas, notadamente contra ingerências indevidas por parte de órgãos estatais, de entidades sociais e também particulares. Se os direitos sociais na sua dimensão de prestações também implicam em direitos subjetivos negativos, impedindo violações de seu núcleo essencial, deve-se concluir que a Constituição Federal de 1988 incluiu em seu rol de direitos sociais elementos típicos de caráter negativa, a exemplo do direito de greve, liberdade de associação sindical e proibição de discriminação entre trabalhadores.
Por conseguinte, arrematam SARLET e FIGUEIREDO (2010), as referidas considerações revelam o aspecto de complexidade dos direitos sociais e impõem a conclusão de que referidos direitos obedecem ao critério da dupla fundamentalidade formal e material, designando-se a situação de que se cuida de bens jurídicos dotados de suficiente relevância e essencialidade (fundamentalidade material), a ponto de merecerem e necessitarem de uma proteção jurídica e normatividade reforçada em relação às demais normas constitucionais, razão pela qual todos os direitos sociais são fundamentais, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados.
Essa é a posição a ser prestigiada, por não ignorar o caráter negativo dos denominados direitos prestacionais, o que se revela mais condizente com o próprio espírito da Constituição Federal de 1988.
A noção do denominado mínimo existencial tem embrionária relação com os direitos fundamentais prestacionais, ou direitos sociais.
SARLET e FIGUEIREDO (2010) traçam a possível origem dessa noção de um direito fundamental, e assim de uma garantia fundamental, às condições materiais que asseguram uma vida com dignidade à Alemanha, onde obteve um relativamente precoce reconhecimento jurisprudencial.
Nessa ordem de idéias, a despeito de não existirem, de modo geral, direitos sociais típicos expressamente positivados na Lei Fundamental da Alemanha, com exceção da previsão de proteção à maternidade e dos filhos e de uma determinação de atuação positiva do Estado para compensação de desigualdades fáticas, a discussão em torno da garantia do mínimo indispensável ocupou posição de destaque após a entrada em vigor da Lei Fundamental de 1949, onde foi desenvolvida pela doutrina, bem como no âmbito legislativo, administrativo e pelos tribunais na formação jurisprudencial.
Na Doutrina do Pós-Guerra, continuam SARLET e FIGUEIREDO (2010), o pioneiro a sustentar a possibilidade de se reconhecer um direito à garantia positiva de recursos mínimos para uma existência digna foi Otto Bachof. O referido jurista propôs o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana não exigiria apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Um ano depois da formulação da teoria, o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha reconheceu o direito subjetivo do indivíduo carente de auxílio material por parte do Estado, por força do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que o indivíduo, na qualidade de titular de direitos e obrigações. deve ter garantido a manutenção das condições de uma existência digna.
Após duas décadas da referida decisão, continuam os autores supracitados, também o Tribunal Constitucional Federal consagrou o que já havia sido objeto de decisão no Tribunal Administrativo: o reconhecimento da existência de condições mínimas para uma vida digna, plena. Reconheceu-se que a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um Estado Social, sobretudo em relação a cidadãos com precárias condições físicas e mentais, o que ocasionaria a limitação de suas atividades sociais, retirando-lhe as condições mínimas de assegurar sua própria subsistência.
É fato que não há um consenso sobre o que abrange o conteúdo do denominado mínimo existencial.
Nesse sentido, TORRES (1989) sustenta que o mínimo existencial não é dotado de um só definível previamente conteúdo específico. Abrange qualquer direito, mesmo que não seja considerado um direito fundamental original, como é o caso dos direitos à saúde, à alimentação etc., considerados em sua dimensão essencial e inalienável.
Ainda, tais direitos, segundo o referido autor, não são mensuráveis, por envolver mais os aspectos de qualidade que de quantidade, o que torna difícil separá-los, em sua região periférica, do denominado máximo de utilidade (maximum welfare, Nutzenmaximierung), que é princípio ligado à idéia de justiça e de redistribuição da riqueza social.
Conforme explicitado anteriormente, para TORRES (1989), os direitos sociais não possuem a mesma qualificação jurídica que os direitos fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988, por serem despidos de feição negativa, portanto sendo eminentemente prestacionais.
Não obstante, continua o referido doutrinador, o mínimo existencial pode surgir também da inserção de interesses fundamentais nos direitos políticos, econômicos e sociais. Os direitos à alimentação, saúde e educação, embora não sejam originalmente fundamentais, adquirem o status daqueles no que conceme à parcela mínima sem a qual o homem não sobrevive.
Isso porque TORRES (1989), classifica o próprio mínimo existencial como um direito protegido negativamente contra a ação interventiva do Estado e, simultaneamente, garantido positivamente por um facere estatal. Assim, o mínimo existencial seria dotado de dupla proteção constitucional, uma positiva e uma negativa, que mutuamente se influenciam e geralmente se convertem uma na outra (fungibilidade de proteção).
Nessa ordem de idéias, os direitos prestacionais, a despeito de não serem originariamente fundamentais, adquiririam configuração semelhante, de forma a serem dotados da mesma proteção jurídica, quando se está diante da uma noção do mínimo existencial, que diz respeito às condições mínimas a serem observadas para que o indivíduo goze de uma vida digna e plena.
Por outro lado, o próprio jurista reconhece a fluidez de tal posição:
“De notar que é extremamente difícil definir o exato contorno desses direitos sociais tocados pelos interesses fundamentais, o que os faz dependentes da construção pretoriana. Nos Estados Unidos a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de diversas leis prejudiciais aos pobres, especial- mente pelas descabidas imposições fiscais, que, por ferirem direitos fundamentais, foram consideradas classificações suspeitas (suspect classifications), deflagrando o controle judicial rígido (strict scrutiny); assim ocorreu, por exemplo, com a cobrança de taxas limitadoras do direito de voto ou denegatórias do acesso gratuito a benefícios previdenciários e a serviços médicos por parte de não residentes, bem assim, como veremos adiante, com a exigência de taxa judiciária excessiva; mas a doutrina americana vem salientando que a jurisprudência é contraditória, nebulosa e cambiante, tendo havido sensível endurecimento nos últimos anos, principalmente a partir dos julgados da Corte de Burger, muito mais conservadora que a Corte de Warren, que dilargara a compreensão da cláusula da equal protection. (TORRES, 1989, p. 33)
Diante da incerteza que abrange o conceito do mínimo existencial, há que se buscar auxílio em fontes de direito internacional, sobretudo do direito alemão, berço de diversos conceitos e institutos utilizados na experiência jurídica brasileira, em especial o objeto em estudo.
Nessa seara, cumpre ressaltar, como o fazem SARLET e FIGUEIREDO (2010), que no contexto do debate jurídico-constitucional alemão, a doutrina evoluiu para realizar uma diferenciação no que concerne ao alcance do conceito de mínimo existencial. Houve uma distinção entre o que se chamou de mínimo fisiológico, que constitui o sentido de proteção contra as necessidades de caráter existencial básico, compreendendo as condições mínimas de uma vida digna, bem como um designado mínimo existencial sociocultural, que busca assegurar ao indivíduo um mínimo de inserção, em termos de igualdade material, na vida e no contexto social.
Enquanto a primeira categoria, o mínimo existencial fisiológico, se funda nos direitos à vida e na dignidade da pessoa humana, abrangendo prestações básicas relativas aos direitos à alimentação, saúde e os instrumentos próprios para sua satisfação; o sustentáculo da segunda categoria, o designado mínimo existencial sociocultural, seria a cláusula de um Estado Social e na própria isonomia em acepção material.
Da experiência constitucional alemã e da diferenciação que se efetiva em relação ao alcance dos referidos direitos, pode-se efetuar algumas conclusões a respeito do alcance do direito a um mínimo existencial.
Conforme salientam SARLET e FIGUEIREDO (2010), no que diz respeito ao próprio conteúdo do mínimo existencial, este não pode ser confundido com o que tem-se chamado de mínimo vital ou mínimo de sobrevivência. A garantia a uma vida digna exige que, além de se garantir as condições de uma sobrevivência física, que seria uma espécie de primeiro passo em relação ao dever geral de garantir uma vida plena. Por conseguinte, o conteúdo do mínimo existencial no que tange ao direito à vida, compreendido como um direito e uma garantia fundamental, deve ser visto como mais que a simples concepção fisiológica traçada no direito alemão, em que apenas as condições materiais mínimas que protegem a própria sobrevivência estariam abarcadas pelo seu conceito. A dignidade também implica numa dimensão sociocultural, que também constitui elemento nuclear que deverá ser promovida, razão pela qual determinados direitos denominados culturais, notadamente o direito à educação, em especial o ensino fundamental, haverá sempre de estar incluída no conceito do mínimo existencial.
No mesmo sentido Ana Paula Barcelos (2002, apud NOVELINO, 2013) sustenta que o mínimo existencial consiste em um grupo menor e mais preciso de direitos sociais, formados pelos bens e utilidades básicas e imprescindíveis para a vida humana. Nesse sentir, poder-se-ia afirmar que o mínimo existencial abrangeria o conteúdo dos direitos à saúde, educação, assistência aos desamparados e acesso à justiça, além de balizar a formulação de políticas públicas e elaboração do orçamento público.
Não obstante, não parece se limitar o mínimo existencial aos referidos direitos listados pela autora, por mais respeitável que seja sua posição.
Outro exemplo de garantia prevista na Constituição é trazida por TORRES (1989), que ao abordar os status positivo e negativo do conteúdo do mínimo existencial, conforme referenciado acima, dispõe que a idéia de Imunidade Fiscal, ou seja, a retirada constitucional de competência tributária de um ente federativo, é uma reflexão do caráter negativo do mínimo existencial: o Estado não pode invadir a esfera mínima de liberdade do cidadão em virtude do direito à subsistência.
Por outro lado, arremata o supracitado jurista, o mínimo existencial, exibe, além do status negativo, o status positivo, pois dependem das prestações positivas e igualitárias do Estado. Enquanto condição de liberdade, o mínimo existencial postula prestações positivas de natureza assistencial, ou seja, pretensões à assistência social.
Em suma, a proteção do mínimo existencial se efetiva de mais de uma forma.
Nessa dimensão positiva, a princípio pode-se falar na realização do mínimo existencial pela prestação de serviço público específico e divisível, que serão gratuitas em virtude da imunidade das taxas e demais tributos contraprestacionais, conforme se infere na educação primária, saúde pública etc. Nesse sentir, o Art. 206, IV da CF dispõe que um dos princípios que balizam a educação é a "gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”, bem assim como o Art. 196 dispõe que a saúde é "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
De outro lado, conforme se viu, pode ser realizada através de subvenções a auxílios financeiros a entidades filantrópicas e educacionais, públicas e privadas, que muitas vezes se compensam com as imunidades. Nesse sentido, pode-se extrair a imunidade tributária assistencial evidenciada no Art. 150 da Constituição:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
VI - instituir impostos sobre:
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;” (BRASIL. Constituição Federal, 1988)
Diante de tais considerações, pode-se afirmar, ainda, que o mínimo existencial se efetiva tanto no âmbito legislativo (como é o caso das imunidades previstas na própria constituição), quanto no âmbito administrativo (concessão de benefícios assistenciais aos necessitados, por exemplo), e, evidentemente, no âmbito jurisprudencial, em casos de omissões inconstitucionais.
De tal conclusão não se dispersa Lenza:
“Assim, ao administrador, dentro da idéia de reserva do possível, deve implementar as políticas públicas. O legislador, ao regulamentar os direitos, deve respeitar seu núcleo essencial, dando as condições para implementação dos direitos constitucionalmente assegurados. E o Judiciário deve corrigir eventual distorção para se assegurar a preservação do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial.”
Propõe-se, então, como conceituação da idéia de um mínimo existencial, diante de todas as considerações tecidas e teses esposadas, o conjunto de prestações materiais a serem envidadas, seja no âmbito legislativo, administrativo ou jurisprudencial, para a garantia de uma vida digna e saudável, constituindo núcleo essencial dos direitos fundamentais a uma prestação.
Em prosseguimento, há de se fazer uma distinção, com relação à competência legislativa, quanto à efetivação dos direitos sociais e a efetivação do denominado mínimo existencial, que ao fim e ao cabo constitui o núcleo essencial de tais direitos.
Enquanto os direitos sociais dependem para a efetivação de previsão legislativa, direta ou autorizativa, que permita a alocação de recursos e a execução de mandamentos legislativos, a consecução do mínimo existencial, porquanto garantia de direitos eminentemente previstos na carta de 1988, prescinde de previsões legislativas de quaisquer espécies.
Para a consecução do mínimo existencial a uma vida digna oriunda dos direitos a uma prestação positiva do Estado é bastante a previsão geral na carta magna, porquanto tais direitos são eminentemente fundamentais, dotados de eficácia direta e imediata, vinculando o próprio Estado (eficácia vertical) e eventuais particulares (eficácia horizontal).
Vale transcrever a monumental lição de Ricardo Lobo Torres:
“Muito para notar que os direitos fundamentais prescindem de lei ordinária que os garanta. O status negativo decorre das próprias normas constitucionais. O status positivo, no que concerne às prestações jurisdicionais e de segurança do mínimo existencial, bem como às prestações positivas de bens e serviços não fica à mercê de regulamentação do sistema legislativo infraconstitucional, pois se vincula à própria organização estatal, sendo as despesas respectivas cobertas com a arrecadação dos impostos, tributos de natureza não-contraprestacional. A lei ordinária pode explicitar ou aprofundar o discurso sobre os direitos fundamentais, pela proximidade entre liberdade e normatividade, mas não os cria.
Aqui encontramos uma das diferenças mais importantes entre o mínimo existencial e os direitos econômicos e sociais. Enquanto aquele pode prescindir da lei ordinária, os direitos econômicos e sociais dependem integralmente da concessão do legislador.. As normas constitucionais sobre os direitos econômicos e sociais são meramente programáticas, restringem-se a fornecer as diretivas ou a orientação para o legislador e não têm eficácia vinculante. As prestações positivas para a proteção desses direitos implicam sempre despesa para o ente público, insuscetível de ser imputada à arrecadação dos impostos ou, sem lei específica, aos ingressos não-contraprestacionais. Por isso mesmo carecem de status constitucional, eis que a Constituição não se envolve com autorizações de gastos públicos, não se imiscui com problemas econômicos conjunturais nem procede à discriminação dàs despesas e dos serviços entre a União, os estados e os municípios, assuntos reservados com exclusividade à lei ordinária de cada qual das três esferas de governo. Os direitos econômicos e sociais existem, como já vimos, sob a 'reserva do possível' ou da 'soberania orçamentária do legislador (…) (TORRES, 1989, p. 44)
Na seara administrativa, TORRES (1989) salienta que o mínimo existencial, como liberdade normativa pode ter suas garantias aperfeiçoadas pelo poder regulamentar do Executivo. O status positivo da noção do mínimo existencial carece de inúmeras normas regulamentares. Tais normas prescindem de lei formal anterior, de maneira que pode o administrador, sem prejuízo da unidade normativa, baixar regulamentos para a garantia de direitos fundamentais previamente declarados na Constituição Federal.
Ademais, a garantia de um mínimo vital pleno se efetiva por intermédio do processo administrativo e da eficiência dos órgãos da administração. A ampliação dos direitos que decorrem do mínimo existencial configura influência decisiva para assegurar-lhes seu status positivo. Nessa ordem de idéias, processo administrativo rápido e justo, boas escolas, bons hospitais, eficiente administração financeira, estatísticas adequadas sobre os mais diversos campos, políticas públicas destinadas à erradicação da miséria, tudo contribui para assegurar o mínimo existencial.
Lado outro, a dimensão de proteção do mínimo existencial que certamente causa maiores atritos no âmbito dos direitos fundamentais a uma prestação é a sua proteção por intermédio do direito de ação, na via jurisdicional.
As controvérsias surgem em virtude de postulados de elevada estima no ordenamento constitucional normalmente entrarem em aparente antinomia com a necessidade de garantia de um mínimo de proteção aos referidos direitos fundamentais.
Com efeito, a doutrina se debruça sobre o tema incessantemente desde que a noção do mínimo existencial foi elaborada.
Nesse sentido SARLET e FIGUEIREDO (2010), salientam que não se pode olvidar que uma das principais objeções lançadas em matéria de concretização dos direito sociais diz respeito à sua dimensão economicamente relevante. Destarte, acaba-se por argumentar que as prestações necessárias à efetivação dos direitos fundamentais depende sempre da disponibilidade financeira e da capacidade jurídica de quem tem o dever de assegurá-las. Diante dessa objeção, sustenta-se que os direitos prestacionais e o mínimo existencial encontram-se condicionados pela designada reserva do possível, além da separação de poderes.
Na mesma linha, TORRES (1989), salienta que o mínimo existencial, tanto pelo aspecto negativo, quanto pelo positivo, carece para a sua concretização, do processo democrático, o devido processo legal (due process of law), da separação e interdependência entre os poderes e do federalismo.
A questão da judicialização do mínimo existencial será mais explorada adiante, após o estudo da reserva do possível. Esse é justamente o ponto que se passa a abordar.
Tal qual a concepção do mínimo existencial, a construção doutrinária inicial do tema da assim denominada “Reserva do Possível” tem origem na Alemanha.
De Acordo com NOVELINO (2013), a expressão difundiu-se a partir de uma decisão proferida pelo Tribunal Constitucional Alemão em 1972, em um caso no qual se discutia o direito de acesso ao ensino superior, no qual o número de vagas era significativamente menor que o número de candidatos.
Apesar do direito fundamental à educação não estar consagrado de maneira expressa na Constituição Alemã, entendeu-se que a liberdade de escolha profissional, este sim um direito consagrado, exigia o direito a um ensino universitário. No entanto, na decisão ficou estabelecido que a prestação reclamada não poderia ultrapassar o conceito daquilo que razoavelmente o indivíduo pode exigir da sociedade. A densificação desse conceito caberia ao legislador, que avaliaria, a priori, quais os interesses juridicamente relevantes deveriam ser prioritariamente atendidos pelo orçamento.
Dessa forma, não se poderia obrigar o Estado a prestar aquilo que se encontra fora dos limites do razoável, cujo conteúdo seria objeto de discriminação pelo legislador, representante eleito do corpo social.
De acordo com SARLET e FIGUEIREDO (2003), o conceito da famigerada “reserva do possível” abrange, ao menos, uma tríplice dimensão conceitual, que pode ser dividida em: a) efetiva disponibilidade de fato dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, o que guarda intrínsica conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, o que reclama um real equacionamento na divisão de responsabilidades, haja vista que no caso do Brasil foi adotado o modelo federativo de forma expressa na Constituição de 1988; c) na perspectiva do também eventual titular de um direito a uma prestação positiva de cunho social, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, tanto no que tange à sua exigibilidade quanto no que toca também a razoabilidade.
Adotando também a noção de uma tríplice intelecção da reserva do possível, NOVELINO (2013), expõe que o certamente a disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais é certamente a mais delicada e controvertida. Isso porque é inexorável que a escassez de recursos materiais disponíveis para as infindáveis demandas sociais condicionam, até certo ponto, a realização das prestações impostas pelos direitos sociais ao volume de recursos disponíveis pelo Estado.
Nesse sentir, aponta ainda que a onerosidade da implementação de tais direitos acaba por condicionar seu processo de realização à disponibilidade financeira e orçamentária do Estado, já que alguns consistem em prestações pecuniárias diretas (é o caso dos benefícios assistenciais), enquanto outros, a despeito de representarem uma obrigação de fazer que não seja a entrega de pecúnia de forma direta, acarretam despesas de diversas ordens, como é o caso do direito à educação e do direito à saúde.
Já no que tange à disponibilidade jurídica, prossegue NOVELINO (2013), que está relacionada, como se viu, à autorização orçamentária para cobrir as despesas exigidas judicialmente pelo Estado, de acordo com o Princípio da Legalidade da Despesa Pública, a formulação e implementação de políticas públicas são sempre, em primeiro lugar, atribuição do Legislativo e Executivo, porquanto membros eleitos de forma democrática pela coletividade para tal fim. Diante de demanda igualmente legítimas, cabe ao administrador optar pela que considera mais importante no momento. São as chamadas “escolhas trágicas”, incumbidas aos administradores públicos em virtude da outorga de poderes a eles concedidas.
Porém, apesar de dependerem da opção política daqueles investidos nos mandatos eletivos, através do voto popular, a liberdade de escolha que cabem ao legislativo e ao executivo na previsão, promoção e execução de políticas públicas não é absoluta. Se esses poderes forem exercidos fora de uma lógica de propósito, de maneira irrazoável ou de modo fraudulento, com a manifesta intenção de neutralizar a eficácia, horizontal ou vertical, dos direitos fundamentais a uma prestação estatal, torna-se necessária a intervenção judicial para viabilizar a todos o acesso a bens cuja fruição fora indevidamente negada pelo Estado.
Nessa seara, já com relação ao Princípio da Proporcionalidade e ao Princípio da Razoabilidade, o Ministro Celso de Mello (STF - ADPF 45/DF), citado por NOVELINO (2013), salienta que a razoabilidade da pretensão a um direito social/individual deduzida em face do Poder Público depende da disponibilidade financeira do Estado, mas estas, ao dificultar ou impedir a implementação de tais direitos, somente poderão ser invocadas com a finalidade de exonerar o ente público de suas obrigações constitucionais no caso de “ocorrência de justo motivo objetivamente aferível”.
Diante de tal conclusão, arremata o eminente ministro, não será lícito ao Estado, através de manipulação indevida da atividade financeira ou de sua política administrativa, criar obstáculos artificiais que revelem um arbitrário e censurável propósito de fraudar e frustrar o estabelecimento e a criação de condições mínimas hábeis a garantir o mínimo razoável para a consecução da dignidade da pessoa humana.
Quanto à natureza da reserva do possível, há autores que definem a reserva do possível, tal qual o fazem com relação ao mínimo existencial, como núcleo essencial (ou núcleo duro) dos direitos a uma prestação.
SARLET e FIGUEIREDO (2003) refutam essa idéia, por entenderem que a reserva do possível constitui, em verdade, considerada toda a complexidade da tríplice dimensão supracitada, uma espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas poderia, em algumas outras hipóteses, atuar como efetiva garantia dos direitos fundamentais, como é o caso de quando há conflitos entre eles, quando se invocar, observados os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, da indisponibilidade de recursos com o intuito de resguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental.
Com relação à reserva do possível, costuma-se apontá-la quase como exclusivamente voltada à efetivação dos direitos a uma prestação, normalmente os direitos sociais. Nesse raciocínio, os direitos individuais denominados “de defesa”, enquanto direitos subjetivos que não possuiriam dimensão econômica, por exigirem tão somente um não fazer, uma abstenção estatal, estariam livres das amarras da reserva do possível.
Essa visão necessita de esclarecimentos e não se vê livre de críticas.
SARLET e FIGUEIREDO (2003) esclarecem que os denominados direitos de defesa não possuem exatamente o que denominam de “irrelevância econômica”.
Todos os direitos exigíveis em face do poder público, dentre eles os direitos individuais de defesa são, em certa medida, sempre positivos, pois exigem, para que sejam efetivados, um conjunto de medidas positivas por parte do Poder Público, porquanto sempre abrangem alocação significativa de recursos. Há um custo para a implementação de direitos de toda sorte, que não se restrigem aos direitos sociais de cunho prestacional.
Ademais, acrescentam os referidos autores, deve ser rebatida a visão segundo a qual todos os direitos dessa natureza apresentam dimensão econômica específica. Alguns direitos tidos como sociais apresentam prerrogativas de exigência de prestações estatais economicamente neutras, não dependendo de que não necessitariam de alocação de recursos estatais para sua implementação, ao menos de forma direta. É o caso das prestações materiais condicionadas ao pagamento de tarifas ou taxas, além de outras que restringem o acesso a recurso. Nesses casos, ressalte-se, há uma repercussão indireta, vez que o que já se encontra disponível resultou da alocação e aplicação de recursos materiais, humanos ou financeiros oriundos, geralmente, da receita tributária e demais formas de arrecadação estatal.
Outro problema que se infere da consecução de direitos sociais que exigem uma prestação positiva do Estado é, conforme apontam SARLET e FIGUEIREDO (2003), a questão da disponibilidade do objeto. Versa a problemática em saber se o destinatário da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada, de prestar o que a norma lhe impõe, de se encontrar na dependência real de meios para cumprir sua obrigação. Como o Estado dispõe de recursos escassos, para muitos esta se impõe como uma barreira à fomentação de direitos pelo ente público.
Diante de tais considerações, revela-se elementar que a reserva do possível é um elemento a ser necessariamente considerado no plano da jurisdição ponderativa entre os princípios constitucionalmente assegurados. A forma com que se relacionam estes dois fatores no âmbito judicial serão mais profundamente explorados no capítulo seguinte, após noções introdutórias sobre ativismo judicial e separação de poderes.
A separação dos Poderes nasce como consequência do primado da lei. Segundo as modernas teorias, todo o poder emana do povo, que através do poder constituinte, cria o direito, que reparte o poder em competências, para que seja exercido por diferentes agentes.
Consoante lição de José Afonso DA SILVA (2009), o Poder é um fenômeno sócio cultural, um fato da vida social. Pertencer a um grupo social quer faz reconhecer que ele pode exigir cetos atos, pode impor certas condutas, pode fixar limites aos desejos e prescrever formas a determinadas atividades. Tal poder é inerente ao grupo, que pode definir como “uma energia capaz de coordenar ee impor decisões visando à realização de determinados fins”. O Estado é o grupo social máximo e total, que tem também seu poder, denominado de poder político ou poder estatal. Enquanto a sociedade é composta por grupos civis diferenciados, cabe ao poder político impor-lhes limites e regras em função dos fins da própria existência do Estado. Por conseguinte, se conclui que o poder político é superior a todos os outros poderes sociais, os quais são regidos e cdominados por aquele. Essa superioridade do poder político caracteriza a soberania do Estado, que implica em independência em confronto com outros atores externos, e supremacia em relação aos grupos internos. É portanto um poder único indivisível e indelegável.
Por tal razão, o nome “Separação de Poderes” é, a rigor, impróprio, mas se difundiu e consagrou de tal maneira que se opta por utilizá-lo, com a ressalva de que é meramente uma repartição de funções.
Nesse sentido, concorda-se com Elival da Silva Ramos (2015), segundo o qual o Estado Democrático nasce sob o signo da juridicização do Poder. A Teoria do Poder Constituinte importa no reconhecimento de que a origem do ordenamento se dá a partir de um ato de soberania que não pode ser condicionado, ao mesmo tempo em que consubstancia uma proposta de institucionalização do poder, que passa a ser exercido pelos órgãos constitucionalmente elencados e na forma descrita em seu texto. Esse estado democrático, em virtude do sucesso do movimento constitucionalista, se tornou sinônimo de Estado Constitucional que possui, como inquestionável peça-chave, a separação de poderes.
O Foco desse arranjo em que se propõe a separação de poderes entre órgãos independentes entre si é o foco de limitação de poder no Estado. Por essa razão, é contribuição definitiva e inovadora a proposta veiculada no Espírito das Leis, de autoria de Charles-Louis de Secondat, o Barão de La Brède e de Montesquieu.
Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes leciona:
“A separação de poderes foi concebida pelo constitucionalismo liberal para assegurar a moderação no exercício do poder, evitando o arbítrio dos governantes e protegendo a liberdade dos governados. A ideia essencial é a de que, ao se conferir funções estatais diferentes a órgãos e pessoas diversas, evita-se uma concentração excessiva de poderes nas mãos de qualquer autoridade, afastando-se o risco do despotismo. Embora tenha raízes ainda mais antigas, a versão mais conhecida deste princípio foi divulgada por Montesquieu, no século XVIII, na sua famosa obra O Espírito das Leis.” (MENDES, 2015, p. 127)
Em breve resumo da história do Princípio, o referido autor informa que na Obra o Espírito da Leis, Charles de Secondat, fazia defesa enfática da monarquia limitada, com o intuito de defender a Constituição Inglesa, preconizando a existência das três funções estatais (legislativa, executiva e judiciária), atribuindo-a a órgãos distintos, daí advindo um sistema de freios e contrapesos capaz de inibir abusos.
No entanto, RAMOS (2015) adverte que a separação de Poderes não pode ser considerada completa em torno do próprio conceito, porquanto tal conceito não pode ser compreendido sem a indispensável imbricação com um determinado sistema constitucional, de modo a torná-lo único em sua concreta encarnação daquele arquétipo. Por tal sentido, diz, Konrad Hesse insistia que a separação de Poderes deve ser considerada um princípio da Constituição, da qual obtém sua forma histórica e conceitual claros. Não apenas as funções estatais se alteram em razão da concepção de Estado que se busque, mas também o número de órgãos constitucionalmente previstos varia bastante em virtude da amplitude de catálogos a serem por ele desempenhadas.
Nesse sentido, um Estado que busque apenas a garantia dos chamados direitos de primeira geração, os Estados Liberais Clássicos, naturalmente possuem um número menor de órgãos e funções a serem desempenhadas do que os denominados Estados Sociais, que por se prestarem a tentar cumprir um programa de governo que requer mais recursos, possuem uma estrutura maior e, por via de consequência, um maior número de atribuições decorrentes do texto constitucional.
RAMOS (2015) ressalta que nesse segundo caso, o de Estados que promovam, juntamente com a necessária liberdade, a igualdade material através de políticas públicas, o rateio funcional de competências há que assumir contornos profundamente diversos, compatíveis com a necessidade de eficiência na atuação estatal, admitindo-se, sem pudores, o compartilhamento de atividades e o seu múltiplo exercício por mais de um órgão.
Nesse sentido, continua o referido autor, há uma dupla característica do referido princípio: organicamente referenciado e funcionalmente orientado. Organicamente referenciado porque estrutura o Estado de maneira orgânica, no topo do qual estão os órgãos de soberania. Funcionalmente orientado porque os atos por meio do qual se manifesta a vontade do Estado podem ser vistos sob o prisma formal ou material: enquanto na forma os atos estatais são ordenados considerando-se o órgão do qual emana ou a forma tal qual revestidos, no conteúdo o Princípio se referencia pela contenção do poder estatal.
Assim, na maioria dos Estados Modernos dotados de uma Constituição capaz de organizar o Estado e repartir competências constitucionais, o poder é repartido em três funções básicas.
Os órgãos em que se divide o Estado são denominados, segundo José Afonso da Silva (2009), de Supremos ou Dependentes. Supremos são órgãos de estatura constitucional, ao quais incumbe o exercício do Poder Político, a cujo conjunto se denomina Governo, objetos de estudo do Direito Constitucional, enquanto administrativos são os órgãos de estatura inferior, cujo conjunto se denomina Administração Pública e são estudados no âmbito do Direito Administrativo. O Governo é composto do conjunto de órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada ou cujo conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício de poder político, que é dividido nas funções estatais: executiva, legislativa e judiciária.
A função executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis, subdividindo-se em função de governo, com atribuições políticas, co-legislativas e de decisão; e função administrativa, que tem como tríplice missão a intervenção, o fomento e o serviço público. A função legislativa tem como missão a edição de normas gerais, impessoais e abstratas, com o intuito de inovar na ordem jurídica, denominadas de leis. A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos para resolver conflitos de interesses e garantir a pacificação social (DA SILVA, 2009).
No entanto, muito se tem acrescentado recentemente a esta concepção tradicional da função jurisdicional.
É que gradativamente se tem afastado da visão de que ao Poder Judiciário caberia apenas a interpretação da lei e aplicação ao caso concreto. Na atividade jurisdicional há, simultaneamente, a criação e a aplicação do direito, na medida em que ao interpretar a regra jurídica posta, criam uma norma aplicada ao caso concreto, e a partir daí aplicam-na, a qual serve também para casos semelhantes.
De tal conclusão não difere de DIDIER (2012), que elenca razões para tal pensamento: os textos normativos não determinam completamente a decisão judicial, cabendo ao juiz interpretar, testar e confirmar ou não sua consistência. Os problemas jurídicos não se resolvem com uma operação dedutiva (geral-particular). Há uma tarefa na produção jurídica, que é a de interpretar, construir e, ainda, distinguir os casos, para que possam formular as suas decisões, confrontando-as com o Direito vigente.
Continua DIDIER (2012) sustentando que a decisão judicial é um ato jurídico que contém uma norma individualizada, definida pelo Poder Judiciário, que se diferencia das demais normas jurídicas em razão da possibilidade de tornar-se indiscutível. Para a formulação dessa norma não é suficiente simplesmente o raciocínio dedutivo da norma geral ao caso concreto. Em virtude do pós-positivismo, que caracteriza o Estado Constitucional, exige-se do aplicador do direito uma postura mais ativa, encontrando a particularidade do caso e selecionando, através da norma abstrata, uma solução compatível com o conteúdo da Constituição Federal. Essa norma individual forma um precedente que pode se tornar generalizado, a ser aplicado aos casos concretos futuros.
Nesse espaço entre a norma abstrata e o caso concreto é que se encontra o que se denominou por alguns de discricionariedade judicial.
RAMOS (2015) salienta que o juiz, ao compor os litígios, está sujeito a condicionamentos jurídicos muito mais intensos que o legislador, amarrado este apenas pela Constituição (consubstanciando a chamada discricionariedade legislativa), de maneira que se estabelece uma gradação no grau de discricionariedade judicial: haverá mínima liberdade nos casos em que o texto normativo for vazado de modo preciso e objetivo, e máxima liberdade no caso de lacuna legislativa, ocasião em que deverá promover a integração do sistema normativo, através dos métodos nele previstos.
A independência entre os poderes, conforme DA SILVA (2009), implica: que a investidura e a permanência de pessoas num órgão de governo não depende da confiança e nem da vontade dos outros; que possua atribuições próprias e possa exercê-las independentemente da vontade dos outros poderes, aos quais não precisa consultar ou pedir qualquer tipo de autorização, via de regra; que sejam livres na organização de seus serviços, observados apenas os mandamentos legais e constitucionais.
A independência entre os poderes, não vem prevista isoladamente na Constituição, que em seu Art. 2º dispõe: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” . Por conseguinte, juntamente com a independência entre os poderes constituídos, deve-se observar que necessariamente há de haver o que se denomina de harmonia entre os mesmos. Consoante DA SILVA, a harmonia entre os poderes verifica-se pelas normas de cortesia no trato recíproco e pelo respeito às prerrogativas de cada um.
Não obstante, é cediço que a separação de poderes não é dotada de caráter absoluto.
De maneira a evitar que um poder exorbite de seus limites constitucionais, devem os poderes exercerem uns em relação aos outros uma espécie de limite, de barreira a frear o abuso e a ingerência indevida. A essa teoria se denomina Teoria dos Freios e Contrapesos (Checks and Balances). O nome em inglês se deve ao fato da teoria ser oriunda do direito norte-americano, conforme relata Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco:
“Outra contribuição fundamental ao desenvolvimento do princípio em questão se deu por influência do constitucionalismo norte-americano, que concebeu a necessidade de instituição de mecanismos de “freios e contrapesos” (checks and balances), que permitissem “controles recíprocos entre os poderes, de forma a evitar que qualquer um deles pudesse atuar abusivamente no campo das respectivas atribuições.” (MENDES; BRANCO. 2015, P. 128)
Nesse contexto, surge a idéia do ativismo judicial, que tem sido usado, normalmente como uma última ratio do Poder Judiciário para compelir o executivo à cumprir sua missão de resguardar os direitos fundamentais (normalmente a uma prestação positiva).
Ainda, há quem veja com maus olhos e atribua ao termo a conotação negativa de interferir nos âmbitos legislativo e executivo, violando a separação dos poderes. Nesse sentido, RAMOS (2015, p 131-33) sustenta que há uma sinalização claramente negativa por parte da doutrina, no tocante às práticas ativistas, por importarem em "desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes”. É que no entender do referido autor, a a Constituição traz uma separação de poderes através da atribuição de funções a órgãos específicos, sendo possível um compartilhamento interorgânico, mas sempre deve ser respeitado um núcleo essencial, que não é passível de exercício senão pelo poder constitucionalmente competente.”
RAMOS (2015), ainda classifica a possibilidade de controle judicial de atos do legislativo e executivo em graus: Inexistência de Controle, Controle mínimo, Controle Médio Fraco, Controle Médio Forte e Controle Máximo.
A inexistência de controle referir-se-ia às Políticas Governamentais monopolizadas pelo Poder Executivo, o direcionamento político do Estado. O Controle Mínimo seria relativo ao exercício de jurisdição pelo Poder Legislativo, em que o Judiciário Interfere apenas para garantir a observância do direito à defesa e do devido processo legal. O Controle Médio Fraco seria o relativo aos atos interna corporis, atos de chefia e Controle de Constitucionalidade fundado em princípios. O Controle. O Médio forte seria relativo aos atos administrativos em que houvesse discricionariedade. Já os atos cujo controle é máximo seriam os atos da administração plenamente vinculados.
Com base em tais conceitos, avança-se no tema proposto.
Diante do já dissertado sobre o tema, constata-se que a judicialização dos direitos sociais seriam um sintoma do ativismo judicial em grau elevado, porquanto veiculado a substituir e interferir em políticas estatais.
É evidente que o Poder Judiciário deve, diante das escolhas de alocações orçamentárias e realização de políticas públicas, por tratar-se de matéria afeita ao âmbito discricionário do poder executivo, manter uma postura de deferência em relação às escolhas traçadas pelo administrador.
Não obstante, conforme se viu, os direitos sociais possuem uma dimensão negativa que impede que os núcleo essencial (mínimo existencial) seja violado.
Nessa seara, entra a idéia de vedação ao retrocesso social. O conceito tem duas dimensões distintas, sintetizadas por Christiano de Oliveira Taveira e Thaís Boia Marçal:
"É certo que o legislador ordinário possui autonomia para editar atos que considere como convenientes para a sociedade, mas essa liberdade de con- formação tem como limite o núcleo essencial do direito já realizado.
A partir desse princípio, entende-se que uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, concretizando determinado direito, este irá se incorporar ao patrimônio jurídico da cidadania, não podendo ser absoluta- mente suprimido.
Com isso, percebe-se que o princípio da proibição do retrocesso social pode ser traduzido como descumprimento, por ato comissivo, de imposição legiferante, que viola o dever jurídico concreto de editar leis que regulamentem (de modo gradativamente crescente) as normas constitucionais definidoras de direitos sociais.
Acrescente-se, ainda, que o princípio da proibição do retrocesso social apresenta intensa relação com a proibição de proteção deficiente e da proibição.
Diante das conceituações propostas, resta evidente a precípua eficácia negativa do princípio em estudo, qual seja, a vedação da edição de normas contrárias ao regramento constitucional estatuído, bem como a revogação de norma cuja edição se encontra indicada pelo próprio poder constituinte originário, sem sua substituição por alternativa legítima.15
Entanto, não se deve ter como de menor importância a sua eficácia positiva, que pode ser traduzida no dever de o legislador manter-se no propósito de ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas (incluindo-se as orçamentárias, conforme será visto em item oportuno), o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais, através da garantia de proteção dessa concretização à medida que nela se evolui. Frise-se que a proibição de retrocesso social não pode ser traduzida como mera manutenção do status quo, pois apresenta como igual finalidade a obrigação de avanço social (TAVEIRA, MARÇAl; 2013, p. 162-164)
A justificativa da vedação ao legislador de retroceder na marcha do avanço social é primeiramente o Princípio da Máxima Efetividade das normas constitucionais, pautando-se o hermeneuta pela solução jurídica mais próxima ao dever-ser que é o direcionamento do direito, a conformar a realidade, além da veiculação de um conteúdo mínimo relativo ao núcleo duro dos direitos a uma prestação:
“O fundamento da vedação do retrocesso pode ser considerado consequên- cia lógica do princípio da efetividade das normas constitucionais, segundo o qual o intérprete jurídico deve optar pela solução hermenêutica mais próxima do “dever-ser” normativo ao “ser” da realidade social.
Além disso, observa-se que o referido princípio emergiu da preocupação com o resgate das promessas da modernidade tardia, sustentada na tese do constitucionalismo compromissório-programático.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, se pudesse ser admitida uma ausência de vinculação mínima do legislador (bem como dos órgãos estatais em geral) ao núcleo essencial concretizado, estar-se-ia chancelando uma fraude à Consti- tuição, haja vista que o agente eleito está apenas dando cumprimento aos mandamentos constitucionais no momento em que implementa um direito fundamental.
Assim, a supressão do próprio núcleo essencial legislativamente concreti- zado de determinado direito fundamental estará afetando a própria dignidade da pessoa, fato que se revela inadmissível. (…)
A noção de proibição de retrocesso tem sido por muito relacionada à noção que José Afonso da Silva apresenta como de um direito subjetivo negativo, ou seja, seria passível de impugnação judicial toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o teor da Constituição, bem como rechaçar medidas legislativas que venham a subtrair o grau de concretização anterior que lhe foi outorgado pelo legislador. (TAVEIRA, MARÇAL; 2013, p. 175)
O mesmo raciocínio se transpõe para o caso de leis orçamentárias que possibilitam a ação do administrador para tutelar as necessidades garantidas por direitos a uma prestação estatal:
"A partir do momento em que se aceita a premissa de que Constituição Federal necessita ser progressivamente realizada, não sendo admissível que seja “desrealizada”, tampouco “aleatoriamente realizada”, apresenta-se como igualmente verdadeiro o fato de que os órgãos estatais, especialmente como corolário da segurança jurídica e da proteção da confiança, se encontram vinculados não apenas às imposições constitucionais no âmbito da sua concretização no plano infraconstitucional, mas estão sujeitos a certa autovinculação em relação aos atos anteriores. Esta, por sua vez, alcança tanto o legislador quanto os atos da administração e, em certa medida, dos órgãos jurisdicionais.
Com isso, as normas legais que realizam um direito em termos diferentes dos constitucionalmente previstos ou que contrariem a realização legal anteriormente atingida devem ser consideradas inconstitucionais.
O mesmo raciocínio deve ser transposto quando se discutem as normas orçamentárias. Não se pode aceitar com naturalidade que determinada lei orçamentária não preveja dotação adequada ao implemento de direitos fundamentais, ao passo que prevê dotação orçamentária para concretização de direitos não essenciais, sob pena de tornar as normas que garantem primazia à implementação dos direitos fundamentais mera retórica constitucional. “ (TAVEIRA, MARÇAL; 2013, p. 176)
Dessa forma, o Princípio da Proibição ao Retrocesso atua como fator de molde à reserva do possível, impondo que seja observado um patamar civilizatório mínimo já na atuação dos poderes executivo, legislativo e judiciário no que concerne à elaboração e no processo de aprovação do orçamento.
Já no plano da execução orçamentária, momento em que se entra no campo das políticas públicas, entra em cena o contraste entre a reserva do possível e o mínimo existencial. Como cediço, a reserva do possível é um fator de restrição da promoção do mínimo existencial, mas alguns contrapontos têm que ser feitos.
Primeiramente, a reserva do possível, assim como o próprio Princípio da Eficiência, impõem que a utilização do orçamento seja utilizado tal qual aprovado, vedados contingenciamentos descabidos pelo Poder Executivo:
“Nesta esteira, Christian Courtis defende que, apesar de ser conferida ao administrador alguma liberdade de escolha, esta diz respeito apenas e tão somente aos meios para alcançar a finalidade buscada, qual seja, a garantia dos direitos fundamentais, mas isso não pode ser traduzido em uma discricionariedade absoluta e, muito menos, indiferença em relação aos resultados. O teste da eficiência na avaliação das ações governamentais busca considerar os resultados obtidos em face dos recursos disponíveis. Busca-se representar as realizações em índices e indicadores, para possibilitar comparação com parâmetros técnicos de desempenho e com padrões já alcançados anteriormente. Com a avaliação da eficiência do ato ou política pública implementada procura-se analisar o grau em que os objetivos e as finalidades do governo foram alcançados. Trata-se, então, de medir o progresso alcançado dentro da programação de realizações governamentais.
Dessa forma, se o administrador consegue atingir, com a mesma eficiência, a concretização de um direito fundamental ainda que se valendo de dotação orçamentária menor, não há qualquer violação ao princípio da proibição do retrocesso. Observa-se, portanto, nesse caso, que está conseguindo atingir um grau de eficiência maior na sua atuação, prática esta que é a esperada dos agentes públicos.
Do mesmo modo, não é possível defender que, apesar de haver dotação orçamentária para gradativa implementação de um direito fundamental, este seja suprimido em razão do contingenciamento ilegal do Executivo.
Ainda, a Reserva do Possível impõe ao executivo que exponha as razões da falta de recurso e comprove a situação alegada de forma cabal, porquanto constitui restrição ao exercício de direitos fundamentais. Nesse sentido, SARLET e FIGUEIREDO (2010), que o conteúdo do mínimo existencial não é o mesmo para cada caso concreto e para todos os diferentes direitos sociais delineados na Constituição Federal, de maneira que deve ser feita, pelo administrador, a necessária a necessária comprovação (o ônus da prova é da Administração Pública) da falta de recursos e da devida aplicação dos mesmos.
Na fricção comum entre a reserva do possível e o mínimo existencial, deve ser utilizada a técnica da ponderação observados alguns critérios de solução e, como trata-se de dois elementos cujo conteúdo são naturalmente fluidos, deve o judiciário adotar, via de regra, uma postura de autocontenção, de maneira a prestigiar as decisões que se encontram no mérito da discricionariedade do administrador.
Alguns parâmetros para uma atuação ativa do poder judiciário, quando necessária sua atuação no caso de uma omissão inconstitucional em prestar, podem ser traçados. Primeiro deve-se observar se o direito a vindicar vem expresso no enunciado normativo consubstanciado em uma regra constitucional ou em um princípio. Inexoravelmente, as regras possuirão um poder vinculativo maior por sua própria natureza (SARMENTO, 2013). É que as regras, por constituírem-se comandos diretos, de definição, possuem uma força coativa mais direta sobre o administrador que os Princípios, que nem sempre trazem conteúdo delineado perfeitamente. No caso destes, é inarredável o exercício de uma ponderação dos interesses em disputa.
Ademais, há que se observar, conforme salientado anteriormente, a razoabilidade do pedido e a proporcionalidade da prestação (SARMENTO, 2013).
Nesse tópico, há que se chamar atenção ao seguinte: dentro da razoabilidade da exigência, há de se aferir o grau de violação à eficácia negativa do direito constitucionalmente garantido. Quanto maior o grau de violação, mais razoável é o pedido e maior a possibilidade de uma postura ativista do judiciário.
Por outro lado, dentro da proporcionalidade da prestação, deve observar-se o seguinte: a disponibilidade orçamentária e a coerente execução orçamentária e a questão da macroconflituosidade. Quanto maior a tendência da querela judicial a multiplicar-se e, com isso, causar um incalculável prejuízo aos cofres públicos, maior deve ser a postura de autocontenção judicial, por ser maior a possibilidade de influenciar diretamente na forma de condução política do Estado, o mais alto grau de insindicabilidade judicial.
Diante de tais parâmetros objetivos para controle, não se pode falar em uma invasão indevida da esfera legislativa, ou violação da separação de poderes, mas tão somente de uma atuação judicial no âmbito de omissões inconstitucionais do Poder Público, o que mais se afigura como uma postura inerente à ideia de freios e contrapesos decorrente da Harmonia entre os Poderes Constituídos.
Traçados os parâmetros dogmáticos acerca da tutela coletiva de direitos, de suas características próprias, processamento e efetividade de suas decisões, cabe agora perquerir se é constitucional a tutela de direitos sociais através de tal instrumento processual.
Diversos são os meios constitucionalmente assegurados para a tutela do mínimo existencial.
A mãe de todas as garantias é a própria inafastabilidade da jurisdição, que impede a retirada do judiciário da apreciação de lesão ou ameaça a direito. Fixada anteriormente a premissa de que a violação ao mínimo existencial é uma violação à dimensão negativa do próprio direito constitucionalmente assegurado, deve o Poder Judiciário intervir.
Nessa forma, se afigura possível o uso de instrumentos individuais de tutela. Ricardo Lobo Torres (1989), tais como o Mandado de Segurança e o Mandado de Injunção. Vale transcrever a lição do insuperável mestre:
"O mandado de segurança tem grande importância para a proteção do status ne- gativus do mínimo existencial. A imunidade das instituições filantrópicas, as deduções do imposto de renda, as isenções dos impostos indiretos, a limitação da taxa judiciária sempre foram asseguradas entre nós na via mandamental ou ordinária.
Também o status positivus libertatis é garantido pelo mandado de segurança. Qualquer ação ou omissão dos órgãos públicos que implique violação do direito fundamental às condições mínimas de existência humana digna justifica o controle jurisdicional.
O ensino primário gratuito deve ser assegurado pelo Judiciário, embora o secundário e o superior não gozem de igual prerrogativa, em face do disposto no art. 208, 11, da CF.121 A assistência médica de urgência nos hospitais públicos é igualmente objeto de controle do juiz.
O mandado de injunção, de que cuida o art. 52, inciso LXXI, da CF de 1988, é outro importantíssimo instrumento para a garantia do mínimo existencial. Conceder-se-á "sempre que a falta de norma regulamentadora tome inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais". Veio dotar o Judiciário de meios para o controle da omissão dos outros poderes e representa moderníssima conquista no campo dos direitos humanos, eis que se entendia que o juiz, na ausência de lei prévia, não poderia conceder prestações necessárias à garantia do mínimo existencial, por implicar gasto público. Mas o mandado de injunção há que ser aplicado com moderação e servirá, principalmente, para, dialeticamente, antecipar e motivar a atividade do legislador, tendo em vista que não competirá ao juiz elaborar a norma abstrata, mas, apenas, conceder ou garantir casuisticamente a prestação estatal positiva,III construindo a regra aplicável à hipótese emergente (…).
Tiveram a vantagem de antecipar e inspirar as medidas do Legislativo para o preenchimento das omissões normativas e as redefinições orçamentárias, embora não se lhes poupem críticas pelo aspecto da discricionariedade judicial e da desestruturação dos programas governamentais (…). (TORRES. 1989, p. 18-20)
Sem dúvida o professor Ricardo Torres acerta quando enfatiza que tais instrumentos são meios idôneos para garantir o respeito ao mínimo existencial. Inclusive, a omissão estatal na proteção de direitos fundamentais pode se dar, conforme visto, tanto no plano legislativo quando no plano administrativo. Por tal razão, o Mandado de Injunção consta como instrumento de possível garantia do mínimo existencial, combatendo a omissão inconstitucional no plano legislativo.
Não obstante, não se pode evitar a constatação que a falta de ação estatal no âmbito administrativo leva ao ajuizamento de demandas denominadas de mandamentais, porquanto tem por objetivo compelir o Estado a prestar o necessário para que se garanta o mínimo inerente aos direitos constitucionalmente previstos.
Conforme se viu, há sempre o risco de multiplicação de tais conflitos em face do Estado, ao que o magistrado deverá sempre estar atento, sendo tal fato proposto nesse trabalho como um fator de incremento de uma postura contida.
É que, diante de uma lide em que se busca solução a um caso específico, dificilmente o magistrado terá um panorama amplo da situação em termos macroeconômicos, de forma a avaliar efetivamente o limite de uma possível exceção da reserva do possível.
Por outro lado, esse problema é minimizado sensivelmente nas denominadas ações coletivas, ante as especificidades desse tipo de demanda. Nos conflitos multitudinários levados a conhecimento do judiciário por um substituto processual adequado, com mais recursos e aparatos para a devida instrução processual, com prerrogativas próprias e um regime próprio relativo à produção de provas e à coisa julgada, é factível que o magistrado terá um panorama muito mais amplo da situação que se discute em termos de macrojustiça, o que contribuirá para que a solução se aproxime do resultado justo decorrente de uma ponderação efetiva entre o mínimo existencial e a reserva do possível, levando em consideração todos os elementos apontados no tópico anterior, ao qual se remete.
A própria previsão da Ação Civil Pública, o principal meio de tutela de direitos coletivos hoje existente no ordenamento, surge em decorrência da mudança de paradigma: de um Estado Liberal, em que predominavam os direitos denominados de primeira geração, para um Estado Social, que possui como um dos objetivos basilares implementar a igualdade material prevista no texto da Constituição.
Nesse sentido Marcelo Abelha Rodrigues (in. DIDIER [org.]; 2013) narra que na época em que elaborado o CPC de 1973, era confessa a adoção pelo modelo liberalista extraído de diplomas processuais europeus, notadamente o austríaco e o alemão. Isso fez com que o CPC tivesse assumido um caráter eminentemente liberal. O temor de um retorno ao absolutismo, do esbulho público (confisco) da propriedade e do cerceamento da liberdade obrigaram a implementação de uma política não intervencionista. Isso se revela em alguns pontos do CPC de 1973, tais quais: a) a postura neutra e distante do juiz que só atuava se fosse provocado nos moldes legais; b) a supremacia das técnicas de segurança em detrimento das de efetividade; c) o apego exagerado à forma dos atos processuais; d) a execução vinculada a provimentos exaurientes e transitados em julgado; e) o dogma quase intangível da coisa julgada material; f) a supervalorização do direito de agir, vista como uma proteção do direito material violado; g) o afastamento do processo em relação ao direito material, visando consolidá-lo como ciência; h) o isolamento das tutelas processuais através de funções específicas (cognitiva, executiva e cautelar); i) a prova vista sob uma ótica privada; (…). Assim, cabia ao Estado um dever eminentemente negativo, de não intervir na liberdade individual dos particulares. Nessa seara, era clara a distinção entre o público e o privado e, diante desse quadro, nem se poderia cogitar falar em direitos coletivos situados dentro desse hiato, porquanto seria uma violação à liberdade individual.
RODRIGUES (2013) alerta ainda que a transformação do Estado Liberal para um Estado Social foi consequência natural do sistema capitalista e da exploração do trabalho, de maneira que começou-se a perceber a necessidade de um Estado mais intervencionista, que passasse a proporcionar uma isonomia real aos seus integrantes. Também na seara dos direitos trabalhistas e previdenciários tem-se a fonte dos direitos tutelados de forma organizada pelos corpos representativos de grupos e categorias. Já se fala em direitos que ultrapassam a barreira individual e recaem sobre o grupo, categoria ou classe, vistos como uma unidade. Com todos esses novos aspectos reclamaram uma mudança em relação ao modelo processual adotado, que tinha como mola individualidade. Nesse sentido, esses novos direitos repercutiram na fortificação, sobretudo de um direito coletivo. Assim, pode-se elencar algumas vantagens do direito coletivo que trouxe transformações no modelo processual então vigente: o juiz possui uma postura mais ativa, com a franca valorização do Princípio Inquisitivo; o reconhecimento de que é necessário intervir o Estado-Juiz para garantir a isonomia material; valorização da efetividade; desapego à forma dos atos e apego à instrumentalidade do processo; a prova vista sob uma ótica pública.
Em suma, com relação à prova, inclusive, esta deve ser pautada pelo Princípio da Verdade Real, adotando-se o princípio inquisitório. No que tange ao pedido, há uma mitigação do princípio da congruência, podendo o juiz valer-se da maleabilidade necessária para fornecer a tutela adequada para o conflito que tem em mãos, considerando-se a extensão de seus efeitos. Ainda, a coisa julgada se efetiva de forma diferenciada, abrangendo o grupo substituído, sem prejudicar eventuais demandas individuais futuras.
É, por conseguinte, inarredável a conclusão de que os direitos sociais, por todas essas peculiaridades da tutela coletiva de direitos, não somente pode, como também devem ser preferencialmente tutelados mediante ações de natureza coletiva, em especial a ação civil pública, porquanto oferecem no plano processual uma maior igualdade entre os litigantes e oferecem ao magistrado instrumentos mais efetivos para que chegue ao resultado justo diante da ponderação de princípios constitucionais.
Nem se há que aduzir que, em razão de se tratar de ações que veiculam direitos de uma categoria, haveria uma indevida invasão na seara do executivo e consequentemente uma violação do Princípio da Separação de Poderes. Isso porque, a bem da verdade, a tutela de direitos sociais pela via coletiva favorece tanto os substituídos, quanto o Poder Público, na medida em que fornece ao magistrado uma visão mais ampla do problema. Permite ao órgão que efetuará o julgamento de maneira imparcial que obtenha acesso, de maneira mais profunda, à dimensão do conflito que tem em mãos, para que decida, utilizando da boa técnica, qual caminho seguir, seja uma postura proativa, seja uma postura de autocontenção.
Pode ser que numa determinada ação coletiva, o juiz obtenha a plena noção de que a exigência dos substituídos é mais fraca que outros princípios constitucionais, ou ainda que o Estado comprove, de forma cabal, que a situação não surgiu de uma ingerência ou negligência administrativa e que o orçamento público não comportaria a providência solicitada na escala em que proposta, o que pode levar ao afastamento do pedido.
Além disso, previne o ajuizamento de infindáveis futuras ações individuais e firma um poderoso precedente, na medida em que fundado em ampla e vasta cognição. É a justiça sendo aplicada em larga escala, passando da idéia de microjustiça (casos concretos individuais), para uma idéia de macrojustiça (conflitos multitudinários), mais hábil a interferir na seara administrativa do Poder Executivo, que por definição lida, como mister e cotidianamente na seara de políticas públicas, com problemas de macrojustiça.
Assim, há de se concluir que a tutela coletiva dos direitos a uma prestação estatal é medida legítima, não se podendo inferir qualquer inconstitucionalidade em seu exercício, e apesar de traduzir uma postura proativa do Poder Judiciário, não implica em violação do Princípio da Separação dos Poderes, mas como um legítimo instrumento de contrapeso por parte do Poder Judiciário a uma omissão inconstitucional do Poder Executivo, nos moldes da Teoria dos Freios e Contrapesos, decorrência direta da harmonia entre os poderes, previsto no Art. 2º da Constituição Federal.
Viu-se que o direito brasileiro, atendendo à demanda social existente, evoluiu da tutela eminentemente individual para a criação de um mecanismo de tutela coletiva de direitos. Tal mutação revela, verdadeiramente, uma tendência mundial de coletivização dos conflitos, e a adequação dos ordenamentos para satisfazer a necessidade de uma pacificação social adequada. Nesse sentir a ação civil pública é, antes de mais nada, ação de cunho constitucional, garantidora de direitos previstos na carta magna. Faz parte das denominadas garantias instrumentais, que visa operacionalizar e dar consistência aos direitos fundamentais em seu âmbito material. E tais ações caracterizam-se por, além de terem procedimentos céleres, visarem alcançar o máximo de efetividade na tutela dos direitos garantidos.
Salientou-se que há, hoje, um subsistema (ou microssistema) de tutela coletiva, composto pela Lei de Ação Civil Pública, pelo Código de Defesa do Consumidor e por mais todos os diplomas relativos à tutela coletiva de direitos existentes no ordenamento, microssistema esse inaugurado pela referida Lei de Ação Civil Pública, de maneira a permitir uma vasta gama de procedimentos e a perfectibilização de uma adequada tutela aos conflitos de massa.
Além disso, há um regime diferenciado nessas ações coletivas, que ocorre segundo o evento da prova e segundo o evento da lide em relação aos substituídos, para beneficiá-los, sem que o resultado negativo os prejudique.
Em prosseguimento, estudou-se a natureza dos direitos sociais, de maneira a concluir-se que se configuram direitos de prestação em sentido estrito, apenas mais uma forma de manifestação dos denominados direitos fundamentais, assim classificados por estarem em um capítulo apartado e exigirem, por natureza, uma ação positiva do Estado.
Outrossim, concluiu-se que, no que diz respeito ao próprio conteúdo do mínimo existencial, este não pode ser confundido com o que tem-se chamado de mínimo vital ou mínimo de sobrevivência. A garantia a uma vida digna exige que, além de se garantir as condições de uma sobrevivência física, que seria uma espécie de primeiro passo em relação ao dever geral de garantir uma vida plena. Por conseguinte, o conteúdo do mínimo existencial no que tange ao direito à vida, compreendido como um direito e uma garantia fundamental, deve ser visto como mais que a simples concepção fisiológica traçada no direito alemão, em que apenas as condições materiais mínimas que protegem a própria sobrevivência estariam abarcadas pelo seu conceito.
A proteção desse mínimo existencial se efetiva de mais de uma forma. Numa dimensão positiva, a princípio pode-se falar na realização do mínimo existencial pela prestação de serviço público específico e divisível, que serão gratuitas em virtude da imunidade das taxas e demais tributos contraprestacionais, conforme se infere na educação primária, saúde pública etc. Nesse sentir, o Art. 206, IV da CF dispõe que um dos princípios que balizam a educação é a "gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”, bem assim como o Art. 196 dispõe que a saúde é "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. De outro lado, conforme se viu, pode ser realizada através de subvenções a auxílios financeiros a entidades filantrópicas e educacionais, públicas e privadas, que muitas vezes se compensam com as imunidades.
Por outro lado, não se pode, a princípio, obrigar o Estado a prestar aquilo que se encontra fora dos limites do razoável, cujo conteúdo seria objeto de discriminação pelo legislador, representante eleito do corpo social. O conceito da famigerada “reserva do possível” abrange, ao menos, uma tríplice dimensão conceitual, que pode ser dividida em: a) efetiva disponibilidade de fato dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, o que guarda intrínsica conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, o que reclama um real equacionamento na divisão de responsabilidades, haja vista que no caso do Brasil foi adotado o modelo federativo de forma expressa na Constituição de 1988; c) na perspectiva do também eventual titular de um direito a uma prestação positiva de cunho social, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, tanto no que tange à sua exigibilidade quanto no que toca também a razoabilidade.
Nessa ordem de idéias, é evidente que o Poder Judiciário deve, diante das escolhas de alocações orçamentárias e realização de políticas públicas, por tratar-se de matéria afeita ao âmbito discricionário do poder executivo, manter uma postura de deferência em relação às escolhas traçadas pelo administrador.
Todavia, ao executivo cabe já na elaboração do orçamento observar o Princípio da Proibição ao Retrocesso, o qual atua como fator de molde à reserva do possível, impondo que seja observado um patamar civilizatório mínimo já na atuação dos poderes executivo, legislativo e judiciário no que concerne à elaboração e no processo de aprovação do orçamento.
No plano da execução orçamentária, momento em que se entra no campo das políticas públicas, entra em cena o contraste entre a reserva do possível e o mínimo existencial. A reserva do possível, assim como o próprio Princípio da Eficiência, impõem que a utilização do orçamento seja utilizado tal qual aprovado, vedados contingenciamentos descabidos pelo Poder Executivo, além de impor ao executivo que exponha as razões da falta de recurso e comprove a situação alegada de forma cabal, porquanto constitui restrição ao exercício de direitos fundamentais.
Na fricção comum entre a reserva do possível e o mínimo existencial, deve ser utilizada a técnica da ponderação observados alguns critérios de solução. Foram propostos como critérios objetivos para definição justa da solução. Primeiramente deve-se observar se o direito a vindicar vem expresso no enunciado normativo consubstanciado em uma regra constitucional ou em um princípio. Inexoravelmente, as regras possuirão um poder vinculativo maior por sua própria natureza. Em segundo lugar, há que se observar, conforme salientado anteriormente, a razoabilidade do pedido e a proporcionalidade da prestação. Que dentro da proporcionalidade da prestação, deve observar-se o seguinte: a disponibilidade orçamentária e a coerente execução orçamentária e a questão da macroconflituosidade. Quanto maior a tendência da querela judicial a multiplicar-se e, com isso, causar um incalculável prejuízo aos cofres públicos, maior deve ser a postura de autocontenção judicial, por ser maior a possibilidade de influenciar diretamente na forma de condução política do Estado, o mais alto grau de insindicabilidade judicial.
Respeitados tais critérios objetivos, há que se concluir pela legitimidade da postura judicial de controle.
É inexorável a conclusão de que coletiva de direitos, não somente pode, como também devem ser preferencialmente tutelados mediante ações de natureza coletiva, em especial a ação civil pública, porquanto oferecem no plano processual uma maior igualdade entre os litigantes e oferecem ao magistrado instrumentos mais efetivos para que chegue ao resultado justo diante da ponderação de princípios constitucionais, seja porque a tutela coletiva de direitos possui mecanismos que permitem uma tutela efetiva em relação ao titular do direito violado, em virtude de peculiaridades na produção probatória, alcance e regime da coisa julgada, seja porque permite ao órgão que efetuará o julgamento de maneira imparcial que obtenha acesso, de maneira mais profunda, à dimensão do conflito que tem em mãos, para que decida, utilizando da boa técnica, qual caminho seguir, seja uma postura proativa, seja uma postura de autocontenção.
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Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; servidor do Tribunal de Justiça do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Clarindo José Lúcio Gomes. A ação Civil Pública como meio de tutelar omissões inconstitucionais do Poder Público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 ago 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52141/a-acao-civil-publica-como-meio-de-tutelar-omissoes-inconstitucionais-do-poder-publico. Acesso em: 01 nov 2024.
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