Resumo: O presente artigo busca abordar a técnica decisória do Estado de Coisas Inconstitucional, pioneiramente desenvolvida e aplicada pela Corte Constitucional Colombiana, e recentemente incorporada à jurisprudência tupiniquim no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamenta nº 347/MC. Trata-se de que busca dar máxima efetividade às decisões da Suprema Corte em situações constitucionais imperfeitas, onde a simples declaração de inconstitucionalidade e demais mecanismos tradicionais não seriam suficientes para a resolução do quadro encontrado. Assim, nas próximas linhas, busca-se analisar o instituto e suas consequências práticas, fazendo, ao final, uma análise crítica da decisão do STF.
I – O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
O Estado de Coisas Inconstitucional tem origem na jurisprudência da Corte Constitucional Colombiana, apreciando situações específicas ocorridas naquele país que exigiam uma atuação mais efetiva do Poder Judiciário. A primeira vez em que se reconheceu foi no ano de 1997, através da chamada “Sentencia de Unificación (SU)”, utilizando-se pela primeira vez a expressão.
O instituto é verificado quando caracterizada uma (1) violação generalizada e sistemática aos direitos fundamentais, (2) oriundo da inércia estrutural ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar esse cenário, (3) de modo que a superação da situação consolidada exige transformações estruturais mediante a atuação de diversos órgãos e autoridades dos Poderes Públicos.
A caracterização do Estado de Coisas Inconstitucional afeta grande número de pessoas, que acabam por ter seus direitos fundamentais violados diante da inércia do Poder Público em resolver a situação. O enfrentamento do litígio exigirá atuação conjunta de diversos órgãos, com medidas estruturais relacionadas às políticas públicas, o que não seria viável utilizando-se dos métodos tradicionais de decisão.
A título de exemplo, a Corte Constitucional Colombiana reconheceu a existência do Estado de Coisas Inconstitucional no que diz respeito à violação massiva dos direitos dos presos, especificamente no que toca ao desrespeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. Diante da total ausência de atuação do poder público na tentativa de arrefecer o problema, a corte determinou diversas medidas no sentido de superar aquela situação de violação generalizada de direitos fundamentais de inúmeras pessoas.
Para tanto, a Corte Colombiana emitiu diversas ordens, para diversos órgãos, a fim de superar a situação de crise. A medida, entretanto, não alcançou o fim desejado. As ordens oriundas da Corte não tinham a flexibilidade necessária para se efetivar seu cumprimento, bem como faltaram mecanismos de fiscalização acerca da implementação de tais medidas.
Em outro caso, Corte Suprema Colombiana reconheceu a existência do Estado de Coisas Inconstitucional foi apreciando um caso concreto de deslocamento forçado de pessoas, decorrente das turbulências suportadas no país vizinho em razão da atuação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). O deslocamento ocorria em razão da necessidade de fugir dos locais de conflitos, buscando segurança nas localidades vizinhas à situação conflituosa.
Nesse caso específico, a Corte Colombiana analisou mais de 100 pedidos, formulados por mais de 1000 famílias que foram obrigadas a deslocarem-se dentro da Colômbia por conta da violência que assolava o país.
A fim de não cometer o mesmo erro novamente, a Corte determinou novas medidas. Para tanto, exigiu atenção orçamentaria ao problema, determinou que fossem formuladas políticas públicas, atos normativos e marco regulatório eficiente para proteger os direitos envolvidos. Dessa vez, ordens flexíveis foram dirigidas a diversos órgãos estatais, o que ocasionou num resultado positivo, considerando que o Poder Judiciário dialogou com os demais poderes públicos no intuito de alcançar o fim almejado.
II – A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RECONHECENDO O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO – ADPF 347/MC
Em maio de 2015, o Partido Socialista e Liberdade (PSOL) ajuizou Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental com o objetivo de conseguir a declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, de que o sistema carcerário brasileiro viola a Constituição Federal ao desrespeitar diariamente os direitos das pessoas encarceradas. Buscou, ainda, que o STF determinasse aos entes federativos (União, Estados e Distrito Federal) que adotem providências com o objetivo de sanar as lesões aos direitos dos presos.
Defendeu-se, ainda, em sede de inicial, que o sistema carcerário brasileiro vive um Estado de Coisas Inconstitucional. Foram apontados os pressupostos caracterizadores do ECI, já mencionados na primeira parte do presente artigo. O julgamento do mérito ainda não foi efetuado pela Suprema Corte, entretanto, ao apreciar a medida cautelar, os Ministros entenderam pelo deferimento de algumas medidas requeridas em sede inicial.
Para admitir a concessão da liminar, o Plenário do STF reconheceu que o sistema carcerário brasileiro gera violações generalizadas dos direitos fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios brasileiros, que no mais das vezes não gozam de condições mínimas de salubridade, acabam por transformar-se em penas cruéis e sobremaneira desumanas.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a violação de dispositivos constitucionais, de tratados internacionais de direitos humanos (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e o Pacto de São José da Costa Rica), bem como normas infraconstitucionais, como a Lei 7210/84.
A falta de medidas conjuntas e interdisciplinares dos Poderes Públicos caracteriza uma falha organizacional na estrutura interna dos entes federativos, causando ofensa aos direitos dos presos. Necessária, portanto, a intervenção do Poder Judiciário, a fim de corrigir os desvios decorrentes da incapacidade das autoridades administrativas e legislativas em implementar sua missão constitucional.
Não há falar, no caso, de violação à separação de funções. O Supremo Tribunal Federal, como último guardião da Constituição Federal, deve garantir que a Carta Magna tenha reconhecida a sua força normativa, de modo a inadmitir qualquer tipo de omissão dos poderes públicos democraticamente eleitos.
Na busca pela superação da situação calamitosa do sistema prisional brasileiro, o Supremo Tribunal Federal deferiu, parcialmente, os pedidos formulados em sede de medida cautelar, na ADPF 347, para determinar que fosse implementada, em 90 dias, a audiência de custódia, bem como obrigou a União a liberar as verbas do Fundo Penitenciário para serem utilizadas na finalidade para qual foi criado o fundo, vedando qualquer novo contingenciamento.
III – A INCOERÊNCIA DA DECISÃO DO STF SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA CARCERÁRIO E AS ADC’S 43 E 44
Como ficou demonstrado, o STF teve oportunidade de manifestar-se sobre a questão do sistema carcerário e, com base na tese da Corte Constitucional Colombiana (CAMPOS, 2016, p. 292), declarou inconstitucional a realidade do sistema carcerário brasileiro, tendo em vista a falha estrutural da atuação pública dos Poderes representativos no sentido de coibir violações flagrantes e reiteradas de direitos fundamentais.
Nesse diapasão, é importante ressaltar que não houve unanimidade quanto à postura adotada pela Suprema Corte. Pelo contrário, vozes respeitáveis da doutrina sustentaram a incompatibilidade constitucional da tese importada de terras colombianas. Citam-se, a título de exemplo, as críticas direcionadas por Streck (2015) e Campilongo (et al., 2015). Para esses autores, a decisão tomada pelo STF na ADPF 347 traz muito mais perigos do que prospectos positivos à democracia.
Seus argumentos assentam-se em 3 premissas mais ou menos homogêneas entre si (CAMPOS, 2016, p. 292): 1) os riscos de subjetivismo e ativismo judicial; 2) ilegitimidade democrática e irresponsabilidade institucional de juízes e cortes; 3) violação à separação de poderes e o fim das fronteiras entre Direito e Política.
Nota-se que os argumentos ventilados, com poucas variações, são os mesmos daqueles destinados quando se quer criticar uma decisão reputada ativista da Suprema Corte (STRECK, 2014, p. 624). Concordamos com a validade dos argumentos, porém, cremos que os mesmos, ainda que mirem a tese do Estado de Coisas Inconstitucional, não a acertam. Ao menos não nos termos em que ficou assentada na jurisprudência da Corte Colombiana, seguida pelo STF (CAMPOS, 2015, p. 285).
Com efeito, a total excepcionalidade é a característica mais marcante na aplicação dessa tese. Dos 4 pressupostos elencados (BLANCA, 2016, p. 56 e ss.) para a configuração do estado de coisas inconstitucional, dois deles, por sua objetividade, já reduziriam substancialmente as chances de voluntarismo judicial, quais sejam: 1) a constatação de um quadro não apenas de proteção deficiente, mas de violação massiva e sistemática de diferentes direitos fundamentais, a afetar número indistinto de pessoas e 2) omissão reiterada e persistente das autoridades públicas no cumprimento de suas obrigações de defesa e promoção daqueles direitos.
É evidente que os referidos pressupostos, além dos demais restantes, devem ser interpretados de maneira restritiva e pari passu com disposições constitucionais expressas. Não pode sob hipótese alguma a Corte Constitucional valer-se da tese ora analisada para subrogar-se em atribuições típicas dos Poderes Legislativo e Executivo, sob pena de ofensa à cláusula pétrea da separação dos Poderes e vulneração flagrante da ordem democrática.
Isso implica a vedação da atuação proativa da Suprema Corte com fulcro em princípios constitucionais “implícitos” ou construções semelhantes. Ora, a acachapante e sistemática violação de direitos tida como pressuposto à aplicação da tese do ECI é incompatível – lógica e dogmaticamente – com a violação de prescrições meramente implícitas do texto constitucional, o que poderia dar azo a interpretações voluntaristas e oportunistas, as quais, ainda que sempre nocivas, nesse caso significariam grave ruptura democrática.
Desse modo, reitera-se a possibilidade de aplicação do ECI exclusivamente como ultima ratio. Tal reputa-se ser o caso do sistema carcerário brasileiro, conforme entendeu o STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Sem deferir todos os pedidos formulados na ação ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), os ministros concederam a cautelar para deferir parcialmente os pedidos, conforme decisão abaixo ementada:
CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil.
SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS HUMANOS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como “estado de coisas inconstitucional”.
FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional.
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civil e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.
Ressalte-se que 7 dos 11 ministros reconheceram a presença de um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro. Foram eles: Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Todos concordaram que, diante da violação massiva de direitos fundamentais, o Tribunal deveria intervir até mesmo sobre a escolha orçamentária de contingenciamento de recursos.
Ainda que em sede de cautelar, tal decisão da Suprema Corte indicava um quadro animador para a forma com que o Poder Judiciário passaria a lidar com a grave situação dos presídios brasileiros. Talvez agora, finalmente, a palavra final por do guardião máximo da constituição causasse algum constrangimento nos agentes públicos e, principalmente, representasse o início de uma jurisprudência mais progressista e ciosa da função última do Poder Judiciário, a proteção dos direitos fundamentais.
Portanto, não foi sem estranhamento que significativa parcela da academia recebeu o novo posicionamento do STF acerca da execução provisória da pena. Em sede do HC 126.292/RJ a Suprema Corte, na estrita cognição inerente a um habeas corpus, entendeu por bem revisar seu entendimento e admitir a possibilidade de prisão a partir da reiteração da condenação em segunda instância.
Ao fazer isso, os ministros favoráveis ao novo entendimento elencaram quatro fundamentos principais: 1) a previsão em tratados constitucionais (Convenção Americana de Direitos Humanos, mormente) do direito ao duplo grau de jurisdição; 2) a impossibilidade de reanálise de fatos e provas em sede de recursos especial e extraordinário (súm. 7 do STJ e 279 do STF); 3) a deficiência da proteção penal em virtude da excessiva mora judicial; 4) a ausência de efeito suspensivo dos recursos especial e extraordinário. Analisar-se-á de forma sucinta cada um dos argumentos levantados e sua compatibilidade constitucional.
Não há dúvidas de que o Pacto de San José da Costa rica assegura uma presunção de inocência (art. 8.2) “enquanto não se comprove legalmente a sua culpa”, assim como garante a todos o respeito ao duplo grau de jurisdição (art. 8.2., “h”). Nesse contexto, seria natural que, a partir da inteligência desse diploma internacional, se considerasse satisfeito o respeito à presunção de inocência a partir da condenação em segunda instância.
Porém, parece ter sido esquecido pelos Ministros da Corte que o “marco satisfatório” da presunção de inocência estabelecida na Carta Magna é distinto daquele previsto em qualquer Tratado Internacional de Direitos Humanos do qual a República Federativa do Brasil seja parte. Com efeito, dispõe o inciso LVII do art. 5º da CF/88 que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Nota-se que o texto é cristalino em assegurar a referida presunção até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Não fala em duplo grau de jurisdição ou qualquer outro momento processual, apenas em trânsito em julgado.
Portanto, a não ser que se pretendesse alterar repentinamente o conceito secular de trânsito em julgado (GAJARDONI et al., p. 617), não há qualquer retórica que justifique outra interpretação que não seja a decorrente da literalidade textual: antes do trânsito em julgado, salvo hipóteses prisão provisória, não há que se falar em encarceramento do acusado. Assim dispõe, também, a literalidade do art. 283 do CPP, in verbis:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso, senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou preventiva.
Como o dispositivo fora totalmente esquecido na decisão do STF em sede de HC, ajuizou-se ação declaratória de constitucionalidade (ADC’s 43 e 44) do referido artigo, para confirmar sua plena validade e vigência. No entanto, o STF sustentou seu novo posicionamento e, numa votação de 6 a 5, conferiu interpretação conforme à constituição do art. 283 do CPP para possibilitar a prisão após condenação em 2ª instância, em um malabarismo hermenêutico digno de aplausos.
Quanto à impossibilidade de reanálise de provas e fatos em sede de Tribunais Superiores, jamais poderia uma restrição criada pelos próprios Tribunais (STJ e STF) através da estreita via da súmula implicar na relativização de uma garantia constitucional pétrea. Nada mais óbvio, uma vez que onde o constituinte originário não comportou exceção, não poderá o intérprete fazê-lo (STRECK, 2014, p. 329). Especialmente quando a própria conformação legal conferida à garantia fundamental caminha no sentido de reforçá-la, como é o caso.
Nesse ínterim, não há que se conferir qualquer importância à existência ou não de efeito suspensivo aos referidos recursos, uma vez que o texto constitucional não impõe tal restrição. Enquanto houver pendência de recurso, ou possibilidade de interposição, não há trânsito em julgado e, por conseguinte, a presunção de inocência resta (ou deveria restar) intacta.
Quanto aos argumentos de ineficiência do processo judicial, foram estes os mais rasos, porém possivelmente os mais determinantes no overruling procedido pela Corte. O momento político vivenciado pelo país, com profusão inacreditável de denúncias de corrupção do colarinho branco, parece ter tido papel vital na repentina mutação interpretativa declinada à presunção de inocência, como ficou evidenciado no fundamento dos votos de vários Ministros, máxime no de Barroso, in verbis (grifo nosso):
Entre nós, no entanto, a ausência de um direito penal minimamente efetivo e igualitário funcionou como um estímulo a diversos tipos de criminalidade. Criamos um país no qual o crime frequentemente compensa. Isso vale, particularmente, para a chamada criminalidade de colarinho branco, universo no qual se situa o fenômeno da corrupção.
Elevando ao ápice a função ético-social atribuída por Welzel ao Direito Penal (e o processo penal, por consequência), os Ministros cederam a um furor punitivista a fim de realçar o caráter pedagógico do Direito Penal. Porém, falharam ao interpretar a Constituição segundo as demandas populares, fugindo do necessário caráter contramajoritário da Suprema Corte, sem o qual seus ministros em pouco se distanciam de um membro do Congresso Nacional, os quais não tem qualquer compromisso com a imparcialidade.
Pois bem. Sem prejuízo de todas as críticas apontáveis aos fundamentos jurídicos equivocados levantados pela Suprema Corte – o que se fez aqui apenas superficialmente, se analisarmos o novo entendimento da Corte sob um viés meramente utilitarista, ainda assim o mesmo não se sustenta.
Com efeito, é paradoxal que o mesmo colegiado que decretou, por 7 votos a 3, a inconstitucionalidade fática do sistema carcerário brasileiro, menos de 6 meses depois tome duvidosa decisão dentre cujos efeitos encontra-se o aumento substancial da clientela carcerária, tendo em vista o elevado número de recursos interpostos – sendo parte razoável deles provida – ao STF e STJ após condenação de segunda instância.
Protelatórios ou não, é direito do acusado interpor recursos de eventual condenação. E recorrer em liberdade. Diferentemente do que entendeu o STF nas referidas ADC’s, a garantia fundamental não comporta “graus de inocência”. Existe apenas uma presunção de inocência – integral, digamos – e ela se impõe de forma irrestrita até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Qualquer espécie de relativização no âmbito de proteção desta norma consiste, na verdade, em verdadeiro menoscabo da garantia, que restará totalmente esvaziada em seu sentido.
IV – CONCLUSÃO
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ainda é refém de avanços e retrocessos pontuais no que respeita à concretização dos direitos fundamentais. Foi pequeno o tempo para comemorar sua decisão que declarou a inconstitucionalidade do sistema carcerário brasileiro.
Àqueles que esperavam posicionamentos mais garantistas da Suprema Corte, restou a frustração. A virada jurisprudencial na interpretação da presunção de inocência denotou cristalinamente o quanto ainda está distante a construção de uma racionalidade decisória em nosso sistema judicial, cuja Corte Máxima ainda cambaleia para assegurar direitos fundamentais tidos como de primeira dimensão, em tese, o mais “fáceis” a serem satisfeitos pelo Estado.
Por outro lado, os massacres carcerários ocorridos em 2017, ainda vivos na memória, serviram para nos mostrar a urgência da construção de uma sólida tradição decisória efetivamente atenta à salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais. Nesse cenário, a atuação proativa do Judiciário cinde-se em uma bifurcação: por um caminho, pode significar a atuação de direitos elementares do cidadãos face à ineficiência dos demais Poderes; por outro, perigosamente próximo daquele, pode culminar na mais severa – ainda que paulatina e, para muito, imperceptível – ditatura, isto é, a daqueles que tem a palavra final.
Para que nos tomemos a via correta, é imprescindível construir uma responsabilização política da atuação judiciária, a fim de exercer-se um controle político de suas decisões. O Judiciário, como centro de legitimação do mesmo, não pode ver-se totalmente livre de amarras – políticas e epistemológicas –, sob pena de, na sua necessária atuação, por a perder séculos de construção dogmática e política do movimento constitucionalista no sentido de limitação do exercício do poder.
V – REFERÊNCIAS
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: Juspodivm, 2016.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
GAJARDONI, Fernando Fonseca et al. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016.
Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Oswaldo Machado. O Estado de Coisas Inconstitucional - breve análise do instituto e da jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal acerca das garantias individuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 out 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52311/o-estado-de-coisas-inconstitucional-breve-analise-do-instituto-e-da-jurisprudencia-recente-do-supremo-tribunal-federal-acerca-das-garantias-individuais. Acesso em: 31 out 2024.
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Por: Marcela Eugenia Gonçalves
Por: Ana Julia Possebom Bologna
Por: Fernanda Gouvea de Carvalho
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