RESUMO: O Código de Processo Penal data de 1941 e, diante de toda a evolução pela qual a sociedade contemporânea passou no decurso desse considerável lapso temporal, pode-se afirmar que o referido diploma legal necessita de revisão em alguns aspectos, posto que reflete os ideais e o contexto histórico da época de sua promulgação, retratando o autoritarismo então vigente, o que pode ser observado, dentre outros institutos, pela figura do foro por prerrogativa de função. Nesse contexto, o presente artigo se propõe a trazer uma reflexão e análise acerca da relação entre o contexto histórico e raízes que embasam o Código de Processo Penal e a sua relação com o mencionado instituto.
Palavras-chave: Código de Processo Penal. Autoritarismo. Foro por prerrogativa de função.
Sumário: Introdução. 1. Contexto histórico da promulgação do Código de Processo Penal. 2. Elementos que denotam o autoritarismo no Código de Processo Penal. 3. O foro por prerrogativa de função como reflexo do autoritarismo do Código de Processo Penal. Considerações finais. Referências bibliográficas
Introdução
O tema tratado no presente artigo traz uma reflexão sobre o instituto do foro por prerrogativa de função, defendido por alguns estudiosos e criticado por outros. O estudo aqui proposto objetiva realizar uma análise do tema e dos seus reflexos na sociedade atual.
Nesse contexto, o assunto é abordado à luz dos conceitos aplicáveis, no contexto dos princípios e valores consagrados pela Constituição Federal de 1988, coletando-se informes e concepções oriundos da legislação e doutrina correlatas ao assunto, além de fontes bibliográficas multidisciplinares, ao que se conclui que, não obstante a validade jurídica do instituto e a existência de doutrinadores a ele favoráveis, resta claro que a sua aplicação viola alguns valores de grande relevância como a isonomia constitucionalmente assegurada.
O Código de Processo Penal atualmente vigente no Brasil foi promulgado no ano de 1941, ocasião em que o país vivenciava uma experiência ditatorial, durante o governo de Getúlio Vargas. Sob a égide de uma ditadura, podemos afirmar que vigorava um sistema repleto de medidas excepcionais, concentração e usurpação de poderes.
Dito isso, importa transcrever o conceito de ditadura trazido pelo renomado Noberto Bobbio. Senão vejamos:
A Ditadura moderna não é autorizada por regras constitucionais: se instaura de fato ou, em todo o caso, subverte a ordem política preexistente. A extensão do seu poder não está predeterminada pela Constituição: seu poder não sofre limites jurídico.[1]
A Constituição vigente à época, de 1937, era marcada pela centralização política, pelo exacerbado poder conferido ao Presidente da República e pelo autoritarismo. Nesse sentido, Francisco Campos[2], responsável por redigir a Constituição de 1937, deixou claro o ideal de autoritarismo da época, como pode ser observado da citação a seguir, de sua autoria: “ O futuro da democracia depende do futuro da autoridade. Reprimir os excessos da democracia pelo desenvolvimento da autoridade será o papel político de numerosas gerações.”.
Nesse contexto, o Código de Processo Penal foi promulgado, no ano de 1941, com influxos autoritários, princípios procedimentalistas arcaicos, trabalho legislativo defeituoso e formalismos prejudiciais, além da ausência de garantias hoje constitucionalmente asseguradas.
2.Elementos que denotam o autoritarismo no Código de Processo Penal
Esclarecido o contexto histórico no qual foi promulgado o Código de Processo Penal, importa transcrever as lições de Antônio Silva Jardim[3] acerca do papel de tal contexto na produção do Direito posto. Senão vejamos:
O Direito, como manifestação cultural do homem, sofre condicionamentos e reflexos da estrutura econômica e social que o gerou. Por sua vez, num verdadeiro evoluir dialético, este mesmo Direito vai atuar sobre a sociedade, sofrendo aí novas mutações estruturais, na sua aplicação prática. ”
Dessa forma, podemos destacar os reflexos do autoritarismo que marcou aquele período histórico na confecção do Código de Processo Penal que vigora até os dias atuais. Compulsando o citado diploma legal, constata-se que grande parte de suas disposições militam em favor da condenação, não havendo garantias ao investigado, que só passou a ser encarado sob uma nova perspectiva a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Assim, ao compulsar o Código de Processo Penal, nos deparamos com dispositivos que afrontam claramente princípios e valores consagrados na Constituição Federal de 1988. É o caso, por exemplo da incomunicabilidade do indiciado, que ainda consta no artigo 21 do Código de Processo Penal, porém, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, não foi recepcionada pela Constituição Federal.
Outro exemplo de resquício de autoritarismo no Código de Processo Penal pode ser constatado na redação do artigo 107, que prevê a impossibilidade de se opor suspeição às autoridades policiais. Considerando a previsão da suspeição como uma forma de garantir a imparcialidade, e considerando que o processo penal deve ser justo e imparcial, a disposição legal atenta contra princípios basilares da Constituição Federal.
No mesmo sentido, o artigo 156 do Código de Processo Penal é apontado por alguns estudiosos como uma afronta ao sistema acusatório, ao facultar que o juiz, de ofício, saia da posição de inércia e tome determinadas providências no curso da ação penal. Ainda visando a imparcialidade, o juiz não deve contribuir com nenhuma das partes do processo, de forma que tal dispositivo legal representa mais uma vertente do autoritarismo vigente quando da promulgação do Código de Processo Penal.
3.O foro por prerrogativa de função como reflexo do autoritarismo do Código de Processo penal
Na mesma toada dos dispositivos acima comentados, o artigo 84 do Código de Processo Penal, ao prever a competência por prerrogativa de função, estabelece mais um exemplo de reflexo do autoritarismo no sistema processual penal vigente demonstrando, mais uma vez, a necessidade de atualização do Código, a fim de buscar concretizar os valores previstos na Carta Magna.
Eis a noção de foro por prerrogativa de função, na lição de Renato Brasileiro de Lima[4]:
“Em face da relevância das funções desempenhadas por certos agentes, a Constituição Federal, as Constituições Estaduais e a legislação infraconstitucional lhes confere o direito de serem julgados por Tribunais. Cuida-se da denominada ratione funcionae.”
Nesse sentido, o foro por prerrogativa de função representa uma busca por proteger determinadas pessoas e autoridades, caminhando o Código em direção oposta à imparcialidade e à isonomia buscadas atualmente pelo ordenamento pátrio.
Nesse sentido, as ideias de Marcelo Semer[5]:
“o foro privilegiado para julgamentos criminais de autoridades é outra desigualdade que ainda permanece. Reproduzimos, com pequenas variações, a regra antiga de que fidalgos de grandes estados e poder somente seriam presos por mandados especiais do Rei. É um típico caso em que se outorga maior valor à noção de autoridade do que ao princípio da isonomia, com a diferença de que hoje a igualdade é um dos pilares da Constituição [...] Competência processual não se deve medir por uma ótica militar ou por estrato social. Autoridades que cometem crimes devem ser julgadas como quaisquer pessoas, pois deixam de se revestir do cargo quando praticam atos irregulares. (...) O foro privilegiado, tal qual a prisão especial, é herança de uma legislação elitista, que muito se compatibilizou com regimes baseados na força e no prestígio da autoridade”
Nesse contexto, importa mencionar a relevância constitucionalmente assegurada ao princípio da igualdade. De acordo com José Afonso da Silva[6], “o direito da igualdade compõe um símbolo essencial da democracia, pois não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra.”
Ademais, a Constituição Federal de 1988 é clara ao consagrar a igualdade em seu artigo 5º, caput, como um dos eixos centrais do texto constitucional. Senão vejamos:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos”.
Nessa esteira, em que pese a distinção feita entre a igualdade formal e a igualdade material, sabe-se que, em algumas situações, como uma forma de amenizar as desigualdades naturalmente existentes, impõe-se tratar os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades. Ocorre que tais exceções, para serem legítimas, devem apresentar uma correlação entre o fator de discriminação e o fundamento lógico para tal medida aparentemente desigual, tudo com vistas a garantir outros interesses constitucionalmente protegidos.
A questão do foro por prerrogativa de função, ou “foro privilegiado” está justamente na falta de correlação lógica para justificar o tratamento diferenciado a determinadas autoridades. O gozo dessa espécie de proteção política não encontra correlação lógica com fatores de discriminação que justifiquem tal tratamento excepcional, em mais um claro exemplo de reflexo do autoritarismo no Código de Processo Penal.
Essa ruptura de valores se explica em razão da diferença do contexto histórico da promulgação do Código de Processo Penal e aquele presente quando da promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, esclarecedora a passagem de autoria de Grandinetti[7]:
“Com efeito muita coisa mudou entre o Código de 1941 e a Constituição de 1988; a alteração foi de estrutura, foi subjacente, o que provoca uma ruptura de grande monta que deita raízes profundas na estrutura jurídico-política. Urge, pois, que se faça uma reforma radical no Código de Processo Penal brasileiro, de forma que aquela diretriz constitucional se imponha plenamente. (...).”
Considerações Finais
Ao refletir sobre o contexto histórico no qual fora promulgado o Código de Processo Penal, em cotejo com a figura do foro por prerrogativa de função e outros institutos previstos pelo diploma legal, verificou-se a desarmonia do Código com a Carta Magna e seus valores mais fundamentais.
Dito isso, em que pese a validade jurídica do instituto, e a sua aplicação pela jurisprudência pátria, este trabalho busca trazer uma análise sobre os seus fundamentos, deixando clara, mais uma vez, a existência de dispositivos obsoletos no Código de Processo Penal, que não se harmonizam com os princípios e valores consagrados pela Constituição da República Federativa do Brasil.
Concluímos, assim, pela necessidade de alteração da nossa legislação processual penal, em razão da existência de diversos dispositivos que precisam se conformar aos ditames do sistema constitucional vigente que busca, entre outros valores, à consagração e efetivação do princípio da igualdade em suas mais variadas formas.
Referências bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política Vol. I. 8ª ed. Brasília. UNB.1995.
CAMPOS, Francisco. Democracia e Unidade Nacional. Antecipações à Reforma Política. Rio de Janeiro: J. Olympo. 1940.
SILVA JARDIM, Afrânio. Direito Processual Penal. 11ª Ed. Rio de Janeiro. Forense. 2005.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. Ed. Ver., Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. p. 562.
SEMER, Marcelo. A síndrome dos desiguais. Boletim da Associação dos Juízes para a Democracia, ano 6, nº 29, jul-set. 2002. P . 11-12, Apud NUCCI, op. cit. P. 264)
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
DE CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho. Processo Penal e Constituição. Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4ªed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2006.
[1] BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política Vol. I. 8ª ed. Brasília. UNB.1995.
[2] CAMPOS, Francisco. Democracia e Unidade Nacional. Antecipações à Reforma Política. Rio de Janeiro: J. Olympo. 1940.
[3] SILVA JARDIM, Afrânio. Direito Processual Penal. 11ª Ed. Rio de Janeiro. Forense. 2005. pg.38-39
[4] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. Ed. Ver., Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. p. 562.
[5] SEMER, Marcelo. A síndrome dos desiguais. Boletim da Associação dos Juízes para a Democracia, ano 6, nº 29, jul-set. 2002. P . 11-12, Apud NUCCI, op. cit. P. 264)
[6] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
[7] DE CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho. Processo Penal e Constituição. Princípios Constitucionais do Processo Penal. 4ªed. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2006. Pg 4
Graduada em Direito pela UFRN. Pós Graduada em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Maryana Ferreira Vieira. Resquícios do autoritarismo no Código de Processo Penal e o foro por prerrogativa de função Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 maio 2022, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58290/resqucios-do-autoritarismo-no-cdigo-de-processo-penal-e-o-foro-por-prerrogativa-de-funo. Acesso em: 23 dez 2024.
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