PAULO VINÍCIUS BORGES E SILVA [1]
(coautor)
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [2]
(orientador)
RESUMO: A presente pesquisa tem como espinha dorsal compreender e analisar a importância da garantia constitucional da imparcialidade no processo penal, junto com as consequências da implementação do juiz das garantias no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como norte o impacto que o juiz das garantias teria na fase pré-processual e a sua importância na preservação da imparcialidade do juiz da instrução e julgamento. A relevância dessa pesquisa está na demonstração dos prejuízos pelo fato de no atual ordenamento jurídico não existir a distinção do juiz que atua na fase investigativa e na fase processual. Além disso, através da teoria da dissonância cognitiva de Bernd Shunemann, a pesquisa visa mostrar a necessidade da atuação de um juiz na fase pré-processual para que seja preservada a cognição do juiz da instrução e julgamento. Para fazer essas análises, a presente pesquisa utilizou método dedutivo com pesquisas bibliográficas por meio de análises doutrinárias na busca de enfatizar a importância de ter o juiz das garantias e garantir a imparcialidade de fato em um processo penal justo.
PALAVRA CHAVE: Juiz das Garantias, Imparcialidade e Dissonância Cognitiva.
ABSTRACT: This research has as its backbone to understand and analyze the importance of the constitutional guarantee of impartiality in criminal proceedings, along with the consequences of the implementation of the judge of guarantees in the Brazilian legal system, having as a guide the impact that the judge of guarantees would have in the pre-procedural phase and its importance in the preservation of the impartiality of the judge of the investigation and judgment. The relevance of this research is in the demonstration of the damages due to the fact that in the current legal system there is no distinction between the judge who works in the investigative phase and in the procedural phase. In addition, through Bernd Shunemann's theory of cognitive dissonance, the research aims to show the need for a judge to act in the pre-procedural phase so that the judge's cognition of the instruction and judgment is preserved. To make these analyses, the present research used a deductive method with bibliographic research through doctrinal analysis in the search to emphasize the importance of having the judge of guarantees and guaranteeing impartiality in fact in a fair criminal process.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como espinha dorsal o aprofundamento do entendimento das consequências do juiz das garantias ante a imparcialidade que é devida e esperada a um julgador de um processo penal brasileiro.
Desse modo, é importante ressaltar que o problema de pesquisa volta-se a entender que: a imparcialidade do juiz é uma garantia essencial para que se haja um processo justo e sem vícios de cognição do juiz, porém, quando o próprio Estado viola essa garantia e legaliza a mesma, quais seriam os desdobramentos legais que podem por em risco o ordenamento jurídico de um estado democrático de direito?
Ademais, a pesquisa bibliográfica é aquela realizada com base material já publicado (GIL, 2019), logo, a presente pesquisa será desenvolvida através de uma pesquisa bibliográfica com abordagem dedutiva, fazendo analise de premissas até chegar a uma conclusão satisfatória sobre o presente tema discutido nesse artigo.
Objetiva-se nessa pesquisa, em uma perspectiva mais ampla, a análise da conduta de um julgador com base a garantia legal da imparcialidade e de como sua conduta desde a fase pré-processual até durante o processo pode vir a violar essa garantia, tendo o julgador como norte vertentes inquisitivas que ainda ocorre nos dispositivos legais do ordenamento jurídico brasileiro.
Também, é objetivo da presente pesquisa ponderar a importância do juiz das garantias para que seja preservada a imparcialidade e analisar as eventuais consequências ao processo penal pela a imparcialidade do juiz, tudo com base em análises de bibliográficas e doutrinas sobre o tema aqui pesquisado.
Ainda, essa pesquisa justifica sua importância para o contexto social e legal, pois no momento em que se admite um estado democrático de direito é necessário atenção para a defesa de um processo penal justo com finalidade de evitar violações para que todas as pessoas possam passar por um processo penal justo com um juiz imparcial e todas as demais garantias asseguradas.
Diante o exposto, para chegar ao objetivo final dessa pesquisa, primeiramente, será trabalhado os tipos de sistemas processuais penais, destacando as garantias e sujeições que cada sistema garante as partes do processo penal.
Ademais, após análise dos sistemas processuais penais, a presente pesquisa busca entender como funciona a fase de investigação, fazendo a distinção de atos de prova e atos de investigação e analisando qual valor cada ato terá ao final do processo com base as características de cada fase, seja ela a investigatória ou a processual.
Para concluir, o objeto final será analisar as interferências da fase pré-processual na cognição do juiz do processo e por fim chegar às implicações que a implementação do juiz das garantias levaria para um processo penal justo.
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS E IMPARCIALIDADE DO JULGADOR
Para adentrar na análise da atuação do juiz no sistema acusatório, primeiramente é necessário analisar sua atuação sobre óptica dos diferentes sistemas processuais que antecederam no decorrer da historia. De acordo com LOPES JÚNIOR (2010, p.1), os sistemas processuais inquisitivos e sistema processual acusatório, são reflexos da resposta do processo penal frente às exigências do Direito Penal e do Estado da época.
Diante o exposto, cada momento histórico que houve um tipo de sistema processual era a exteriorização de um sentimento politico que existia em cada época, pois o processo penal nada mais é que um reflexo da politica em que vive determinado povo.
Ademias, para analisar os tipos de imparcialidade, é necessário ter ciência do papel do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), na qual entende que em um sistema acusatório, na qual é garantida a imparcialidade do juiz, este não deve possuir poderes investigativos, pois o mesmo estaria se contaminando e com isso comprometendo sua convicção para proferir uma decisão limpa e justa.
Portanto, é se suma importância o estudo de cada sistema processual penal para entender como a imparcialidade do juiz é importante no curso de um processo, tendo em vista que em cada sistema a atuação do juiz vai impactar diretamente no resultado do processo, pois em um julgamento que o próprio juiz é o produtor de prova a imparcialidade do juiz será altamente comprometida.
2.1 Sistema inquisitivo
Esse modelo foi sendo implementado gradativamente entre o século XII até o XIV. De acordo com JACINTO COUTINHO, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In: Crítica à Teoria Geral do Processo Penal, p. 23. “ao inquisidor cabe o mister de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero objeto de verificação, razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido”. Nesse sentido, observa-se que não há separação de funções, sendo que o juiz concentra o poder de julgar e acusar. Nesse sistema, a imparcialidade do juiz esta altamente comprometida, visto que a inexistência de um órgão independente para formular a acusação contamina o pensamento do juiz na hora de proferir o julgamento, pois no momento que a produção de provas esta sobre tutela do juiz, tente ele a proferir uma decisão em consonância com a sua ação de obtenção te prova. Ainda, esse modelo processual possuem outras características, tais como inexistência do contraditório pleno, atuação do juiz de oficio e desigualdade entre os sujeitos processuais na busca do convencimento do juiz.
Ademais, para corroborar com o que já dispunha, diz LOPES, JR, Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 56. “é da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juizator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu”. Portanto, de acordo com as disposições dos doutrinadores aqui citados e também a doutrina majoritária, o sistema inquisitivo pode ser considerado prejudicial ao processo penal justo, pois nele é suprimido a imparcialidade do julgador, que é uma garantia constitucional.
2.2 Sistema acusatório
Esse sistema é o adotado no Brasil, assegurado tanto pelo código de processo penal após a alteração do pacote anticrime, mas também pela constituição federal de 1988. Segundo LOPES JR, Direito processual penal, 2019, p.47 “a configuração do “sistema processual” deve atentar para a garantia da “imparcialidade do julgador”, a eficácia do contraditório e das demais regras do devido processo penal, tudo isso à luz da Constituição”. Desse modo, uma das características do sistema acusatório é justamente a garantia da imparcialidade do juiz, pois nesse modelo ele não atua mais como um gestor de prova, visto que esse papel cabe a um órgão independente ou ao particular ofendido. No Brasil, o órgão institucional que tem a competência de ser o acusador é o Ministério Publico, também pode o particular ser o produtor de provas, desde que este siga as determinações legais.
Ainda, devido ao sistema acusatório ser contraposto ao inquisitivo, aquele possuem características como, a impossibilidade da atuação de ofício pelo juiz, a distinção entre quem será o acusador e o julgador, juiz parcial e previamente constituído.
Portanto, é notório que em uma sociedade democrática, na qual haja respeito pelos direitos dos cidadãos, o sistema acusatório seria o ideal, primeiramente por ser uma previsão constitucional e ainda, por respeitar todos os direitos e garantias necessários, como por exemplo, a imparcialidade do julgador, que é necessário para um processo penal justo e que possa minimizar o máximo possível os abusos estatais, pois com o respeito ao contraditório e ampla defesa, a vedação do juiz em agir de oficio, vedação de prova tarifada, e outras características do sistema acusatório, a pessoa que estiver em um processo penal vai ter a certeza que será julgada com base um processo justo.
2.3 Inexistência do sistema misto
A maioria dos doutrinadores ao classificar os tipos de sistemas processuais inclui o sistema misto. Esse sistema surgiu na ideia de uma separação do processo, onde primeiro iria existir a fase de produção de prova e posteriormente haveria um juízo de fato sobre o caso concreto. Desse modo, com a separação do processo, primeiramente na fase de produção de provas seria baseado nos moldes do sistema inquisitivo, tento em vista que a supressão das garantias previstas no sistema acusatório poderia “atrapalhar” a fase de produção de prova, sendo então o sistema inquisitivo o mais ideal para essa fase. Ademais, na segunda fase, que se iniciaria com a instauração do processo, seria norteado nos moldes do sistema acusatório com todos os direitos e garantias inerentes desse sistema, nessa fase, a produção de prova seria feita totalmente diferente da primeira fase, tendo em vista a contraposição dos sistemas que cada fase adota, logo, nesse sistema a imparcialidade do juiz seria altamente comprometida, tendo em vista que ao considerar a inexistência das garantias processuais na produção de prova na primeira fase, o julgador poderia se contaminar no processo e de nada adiantaria essas garantias na segunda fase, pois a cognição do juiz seria a estabilização da busca e do que foi feito na primeira fase.
Diante do exposto, existem doutrinadores que admitem a existência do sistema misto no Brasil, apesar de na Constituição ser expresso a adoção do sistema acusatório. De acordo com NUCCI, 2016, a Constituição Federal de 1988 trouxe vários princípios que tendem a indicar um sistema processual acusatório, porém não existe uma imposição da carta magna para que esse seja o sistema adotado, tendo em vista que o código de processo penal seria aquele que ditarias as regras do processo penal.
Conforme o pensamento de Guilherme de Sousa Nucci, levar as disposições constitucionais na literalidade seria desconexo com a realidade, isso pode ser corroborado, pois o código de processo penal é de 1941 e dentro dele existem diversas disposições inquisitoriais, como já visto na introdução desse capitulo, o código de processo penal de 1941 será a expressão da conjuntura política e social da época que foi elaborado. Desse modo, os defensores do sistema misto acreditam que apesar da não conformidade de muitos dispositivos do código de processo penal com a Constituição Federal de 88, ocorreu inúmeras alterações no código no sentido de trazer mais a materialidade constitucional para o código de processo penal, contudo não se pode falar que o processo é todo inquisitivo ou todo acusatório, tendo em visto que ainda existem contradições entre a Constituição e o código, e apesar da Constituição ser um documento de maior hierarquia no mundo jurídico, ela não impõe o sistema acusatório, além de ser mera ingenuidade acreditar que atualmente o processo seria baseado nos ditames do sistema acusatório puro sem a existência de disposições inquisitoriais.
2.4- Imparcialidade objetiva.
Depois de visto os tipos de sistemas processuais e saber qual foi o adotado pelo Brasil, agora é possível a análise dos tipos de imparcialidade, primeiramente a objetiva.
Essa imparcialidade esta relacionada à forma em que o juiz demonstra ou se aparenta não ser imparcial, visto que a atuação do juiz no atual sistema processual brasileiro pode sofrer questionamentos da sociedade, logo a atuação do juiz deve demonstrar que este não esta ferindo o princípio constitucional da imparcialidade. Desse modo, o juiz das garantias, cuja eficácia esta suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal, seria de suma importância, pois as decisões judicias na fase pré-processual não seria tomada pelo juiz da instrução e julgamento, dessa forma não haveria questionamento quanto à parcialidade objetiva do juiz do julgamento.
Contudo, de acordo com JIMÉNEZ, 2002, p. 199, “mediante análise caso a caso, será possível apreciar, analiticamente, quais são as atividades cujo concurso prévio por parte do juiz afetam seu futuro juízo, e quais, pelo contrário, não representam prejuízo ou condicionamento da futura resolução”. Portanto, apesar do juiz das garantias esta com a eficácia suspensa, não significa que todos os processos atuais estão contaminados pela imparcialidade objetiva do juiz, pois é necessária a análise concreta de cada caso, logo a imparcialidade objetiva não pode ser presumida. Para exemplificar, quando um juiz é provocado pelo Ministério Público para a decretação de uma prisão preventiva e o juiz aceita o requerimento, não significa que o mesmo esta fazendo um juízo de valor acerca da condenação ou absolvição do acusado, é necessário analisar os fundamentos invocados pelo Ministério Publico, caso a pedida se fundamente na possibilidade da fuga do acusado com demonstrações reais, fáticas e contemporânea, o juiz analisara o mérito daquele pedido em especifico, que por ventura pode ou não influenciar na sentença condenatória no final do processo. Diante do exposto, é incontestável que um juiz na fase pré-processual traria mais segurança, porém como sua aplicabilidade não está vigorando, é necessário fazer a ponderação e saber que nem todo ato do juiz na fase processual vai causar a imparcialidade objetiva.
2.5- Imparcialidade subjetiva.
De acordo com LOPES JR, AURY, 2019, p.73 “Desde o caso Piersack, de 1982, entende-se que a subjetiva alude à convicção pessoal do juiz concreto, que conhece de um determinado assunto e, desse modo, a sua falta de “pré-juízos”.”.
Diante o exposto, fica evidente que a imparcialidade subjetiva, diferentemente da imparcialidade objetiva, esta ligada ao foro intimo do julgador, no momento em que o caso é posto em julgamento o juiz de acordo com suas próprias convicções realizaria pré-conceitos sobre o objeto em julgamento. Nota-se que essa imparcialidade é mais complexa de se analisar por ser algo intrínseco, diferente da imparcialidade objetiva, pois nessa para detectar se o juiz esta sendo imparcial basta analisar as suas condutas que são exteriorizadas.
3. INQUÉRITO POLICIAL
O inquérito policial é um procedimento de natureza administrativa e presidido pelo delegado de polícia, o senso comum tende a achar que a investigação realizada no inquérito já é de natureza judicial pelo fato de o inquérito ser privativo da polícia judiciária, tais como a policia civil e a policia federal, e em alguns casos a policia militar quando atua como policia judiciária militar, contudo, esses órgãos estão vinculados ao poder executivo, seja no âmbito federal como no estadual. Nesse contexto, a finalidade básica do inquérito é elucidar a possível autoria de um crime e a prova da materialidade criminal para subsidiar o titular da ação penal no oferecimento da inicial acusatória. Contudo, diferente de um processo criminal, o inquérito possui característica inquisitória.
A característica inquisitiva é a principal demonstração de diferença do inquérito para o processo penal, visto que no inquérito, devido à característica inquisitiva, o contraditório e a ampla defesa não são obrigatórios. De acordo com (RANGEL, 2010, p. 95). “O caráter inquisitivo do inquérito faz com que seja impossível dar ao investigado o direito de defesa, pois ele não está sendo acusado de nada, mas, sim, sendo objeto de uma pesquisa feita pela autoridade policial”. Portanto, é possível ocorrer uma produção de prova que seja conveniente para a investigação sem que haja a oportunidade do acusado participar e até mesmo contraditar, desse modo, fica evidente da necessidade dessas provas serem refeitas ou confirmadas perante o juiz da instrução e julgamento.
3.1 Valor probatório do inquérito policial.
Ao se fazer uma pesquisa sobre a influência de atos no procedimento pré-processual nas decisões de um processo de fato, é indispensável a análise do inquérito policial, visto que é nesse procedimento administrativo que é feito inúmeras provas que ao final serão relatadas ao titular da ação penal na formação da sua opinio delicte.
Diante disso, é possível notar vertentes na doutrina sobre o real valor probatório do inquérito, primeiramente há doutrinas que rechaça a usura das provas obtidas via inquérito policial de forma irrestrita, de acordo LOPES JR, 2019, p.144, “o inquérito policial busca apenas a verossimilhança do crime, a mera fumaça (fumus commissi delicti), não havendo possibilidade de plena discussão das teses, pois a cognição plenária fica reservada para a fase processual’’. Portanto, conforme entendimento dessa doutrina entende-se que no inquérito policial vigora o principio inquisitivo e não poderia as provas nele obtidas ser albergado em um processo onde se norteia as garantias processuais como a do contraditório, sendo que a peça pré processual serviria como elemento informativo para a admissibilidade e para o curso do processo penal, não sendo possível ter o condão de contaminar o juízo em suas decisões e na sentença por ele proferida, pois no inquérito é feito um juízo de probabilidade.
Ademais, também nota-se que é quase extinta a doutrina que admite que as provas obtidas no inquérito possam ser usadas como fundamento da sentença do magistrado sem necessidade de comprovação, conforme MODIM, 1979, p.71, se a base probatória de provas feitas no inquérito for firme, estas não precisam ser comprovadas em sede de processo, apenas bases de prova fraca necessitam ser comprovada no processo. Logo, de acordo com o entendimento da doutrina que admite absolutamente o valor probatório do inquérito, esses tem como base maior a ideia que as provas obtidas no inquérito podem se perder e não ser mais possível realizar no curso do processo. Dito isso, posto casos que ocorre a impossibilidade de reproduzir as provas no processo e considerando a legitimidade e presunção de veracidade dos atos do órgão público, é factível a usura dessas provas no processo criminal sem a necessidade de comprovação.
Por fim, a doutrina majoritária em conjunto com a maioria da jurisprudência, admite que o valor probatório do inquérito é relativo, segundo AVENA (2014, p. 207) registra que “há muito tempo consolidaram-se os tribunais pátrios no sentido de que o inquérito policial possui valor probante relativo” e que sua “utilização como instrumento de convicção do juiz condicionada a que as provas nele produzidas sejam renovadas ou ao menos confirmadas pelas provas judicialmente realizadas sob o manto do devido processo legal e dos demais princípios informadores do processo”. Logo, de acordo com essa doutrina, é possível a utilização de provas feitas no inquérito policial, contudo, a relativização se do no momento que essas provas precisam ser renovadas ou caso não seja possível que sejam confirmadas no processo penal em conformidade a todos os direitos e garantias assegurados no curso do processo.
3.2 Diferença entre atos de prova e atos de Investigação
A distinção dos atos de investigação e dos atos de prova se da basicamente por conta da valoração jurídica que cada ato possui. Desse modo, em conformidade com o princípio inquisitivo do inquérito, segundo LOPES JÚNIOR (2019, p.186) “o IP somente gera atos de investigação e, como tais, de limitado valor probatório. Seria um contrassenso outorgar maior valor a uma atividade realizada por um órgão administrativo, muitas vezes sem nenhum contraditório ou possibilidade de defesa e ainda sob o manto do segredo”.
Seguindo essa linha de entendimento, os atos de investigação no curso do inquérito policial não tem o condão de gerar um juízo de certeza para subsidiar uma sentença, pois esses atos visa um juízo de mera probabilidade, por exemplo, no momento em que o delegado de polícia indicia um acusado, esse ato é baseado estritamente em uma cognição probabilista do fumus commissi delicti, e por isso, não existe a obrigatoriedade do órgão acusatório seguir o entendimento do relatório final de um inquérito policial (o que evidência a caraterística dispensável do inquérito), pois os atos de investigação feitos no curso do inquérito não tem observância do contraditório ou tem ele limitado, sendo assim impossível exigir que esses sejam capazes por si só de subsidiar uma sentença. Ademais, vale ressaltar que as provas renováveis são atos de investigação, como exemplo disso tem-se a prova testemunhal realizada no curso do inquérito, esta é necessária ser renovada em juízo, sendo necessário novo comparecimento da testemunha para prestar o depoimento perante o julgador do processo criminal (LOPES JÚNIOR, 2019).
Já os atos de prova, são aqueles que são produzidos sobre o manto do processo penal ou aqueles feitos sob o instituto da prova antecipada, constituindo atos albergados pelos princípios e garantias constitucionais de proteção do réu sobre o autoritarismo estatal, portanto, esses atos de prova são aqueles que integram o processo penal e tem como função convencer o juízo e consequentemente influenciar na sentença, diferente dos atos de investigação, nos atos de prova pelo fato de serem observados princípios que regem o sistema acusatório, tais como ampla defesa, contraditório, publicidade dos atos probatórios, esses atos não se busca um juízo de probabilidade e sim de certeza (LOPES JUNIOR, 2019).
4- JUIZ DAS GARANTIAS
O juiz das garantias, primeiramente, é aquele responsável pelo controle de legalidade no curso do inquérito policial e também responsável pela proteção dos direitos individuais sujeitos a apreciação do poder judiciário com atuação limitada ate o recebimento da denúncia.
Ademais, a implementação do juiz das garantias é, sobretudo, a busca do legislador em adequar o código de processo penal às disposições constitucionais, sendo que a proposta do juiz das garantias é fazer uma divisão de atuação do juiz responsável pela fase investigatória e o juiz da instrução e julgamento, uma forma de garantir a efetivação do princípio da imparcialidade no processo penal. Portanto, a principal finalidade do juiz das garantias é promover o distanciamento dos elementos colhidos na fase investigativa do juiz do processo (SILVEIRA, 2011, p. 256).
4.1- Origem da teoria da dissonância cognitiva.
Essa teoria esta ligada a psicologia social, um ramo da psicologia que procura entender os pensamentos e as reações do indivíduo e a forma que isso pode influenciar as pessoas. A teoria em análise foi feita por Leon Festinger nos anos 50, ele era professor de psicologia na universidade de Stanford.
Basicamente, o estudo de Festinger buscou entender as reações psicológicas que o ser humano possa ter quando este se depara com cognições diferentes da que possui. Para Festinger no momento em que uma crença é descontruída por outra crença o ser humano tende a entrar em um estado de dissonância cognitiva.
Para RITTER, 2017, p.162, “Pode-se afirmar que há uma tendência, no ser humano, à estabilidade cognitiva, intolerante a incongruências, que são inevitáveis nos casos de tomada de decisões (...)”. Diante do exposto, já é possível fazer uma correlação da atuação do juiz com base nessa teoria, afinal o juiz é uma sujeito como qualquer outro e suscetível as minucias dos efeitos psicológicos que o ser humano possui.
4.2- Dissonâncias do juiz.
Com base no que já foi explicado, agora já é possível analisar casos hipotéticos em que o juiz pode sofrer dissonância cognitiva e consequentemente afetar a sua imparcialidade. Suponha que um juiz receba um requerimento do MP pedindo que decrete a prisão preventiva de um indivíduo, ao analisar o caso o juiz ver que possui todos os elementos suficientes para decretar a prisão preventiva. Essa atuação do juiz na fase pré-processual o faz criar uma consonância de que o acusado possa ser culpado, contudo, pelo principio constitucional da presunção de inocência o acusado até o transito em julgado deve ser considerado inocente. Essa consonância criada pelo juiz ao decretar a prisão preventiva no decorrer do processo penal, pode ser demonstrado pelo acusado de que foi injusta e que houve algum equivoco na pedida do MP, desse modo o juiz tende a entrar em dissonância cognitiva ou buscar meios para que a sua convicção seja mantida. Nesse caso, nota-se que há prejuízo do magistrado quanto à imparcialidade subjetiva, pois no momento em que faz um pré-conceito sobre o caso julgado, o juiz esta abrindo mão de fazer um julgamento livre de interferências.
Ademais, a dissonância cognitiva do juiz não serve apenas para prejudicar o réu, imagina que o juiz rejeite a inicial acusatória apresentada pelo MP sobre a justificativa de que não há lastro probatório mínimo para a abertura de um processo, o MP recorre da decisão em 2° grau e obtém sucesso. Porém, o juiz de 1° grau já proferiu uma decisão, ou seja, já possui uma consonância, logo isso vai afetar se precisar condenar o réu.
Portanto, seguindo a linha dos parágrafos anteriores, segundo LOPES JÚNIOR, 2016, p.19 “sabendo-se que a tomada de uma decisão na fase de investigação preliminar (uma conversão de prisão em flagrante em preventiva, por exemplo), pode vincular cognitivo-comportamentalmente seu responsável (magistrado) por prazo indeterminado, bem como que a primeira informação (primeira impressão) recebida pelo juiz sobre o fato, com base na qual deverá admitir ou não a abertura de um processo (ato de recebimento/rejeição da denúncia), é produto dessa investigação policial, produzida de forma unilateral; existe a possibilidade da autoridade judiciária que participou dessa primeira fase manter-se imparcial no futuro desenrolar processual?”. Ante o exposto, a teoria da dissonância cognitiva, aplicada ao processo penal, evidencia a necessidade de aprimoramentos no processo penal, sobretudo para preservar a imparcialidade do juiz e garantir que o jogo processual não sobrecarregue indevidamente uma parte no processo, pois é difícil uma parte lutar contra um pré-conceito de um julgador, mesmo que a parte esteja correta, convencer um juiz contaminado é como começar um jogo de futebol com o placar negativo.
4.3- Teoria da dissonância cognitiva de Bernd Shunneman
Como disposto no artigo 3° B do Código de processo penal, o juiz das garantias visa fazer o controle da legalidade na investigação criminal e a salvaguarda de direitos fundamentais que deva ser apreciados previamente pelo poder judiciário. Desse modo, o juiz das garantias atua na fase pré-processual e é diferente do juiz da instrução e julgamento, esse conceito foi estudado pelo jurista alemão Bernd Schunemann, ligando a teoria da dissonância cognitiva de Festinger ao processo penal com base na atuação do juiz.
Segundo RITTER, 2016, p.120 “a pesquisa empírica do jurista alemão, aliás, pretende justamente responder se o conhecimento do magistrado sobre a investigação policial não acaba impedindo o processamento adequado das circunstâncias e provas do fato em apuração, na medida em que o mesmo se vê vinculado, ainda que involuntariamente, à rota traçada exclusivamente pela polícia, que além de unilateral, contraria a versão do acusado”. Diante disso, um fundamento do juiz das garantias é evitar o comprometimento do juiz do processo por conta dos incidentes da fase investigativa, pois nessa fase como já visto nessa pesquisa, não se tem obrigatoriedade do contraditório, ampla defesa e, também, por ser um processo investigatório, a polícia aplica técnicas de obtenção de provas que muitas das vezes não condiz com a estrita legalidade, e por mais que isso seja declarado posteriormente como um abuso, a dissonância do juiz que atua no processo, dependendo do caso concreto, já pode está sendo atingida. Logo, conclui RITTER, 2016, p.121 “O que questiona Schünemann, portanto, lastreado em tal teoria, é se a leitura dos autos da investigação preliminar (inquérito policial) não acaba fixando uma imagem unilateral e tendenciosa do fato na psique do juiz, capaz de lhe vendar para outras possibilidades, visto que apegado a esta, buscará comprová-la no processo, comprometendo definitivamente sua imparcialidade”.
Portanto, o juiz das garantias evitaria a dissonância cognitiva do juiz do processo, visto que esse não praticaria nenhum ato na fase investigativa, sendo essa atribuição exclusiva do juiz das garantias, até o recebimento da inicial acusatória, assim, haveria a preservação da imparcialidade do juiz do processo, contudo, o juiz das garantias, apesar de previsto no código de processo penal por força da vigência do pacote anticrime, está com a sua eficácia suspensa por decisão do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, um dos motivos é a falta de estrutura do judiciário brasileiro, em março de 2021, o procurador geral da republica defendeu a suspensão até a regulamentação pelo CNJ.
4.4 Pacote anticrime e juiz das garantias.
Entrando nesse amplo conceito em relação à imparcialidade do pacote anticrime, temos diversas estruturas, de acordo com Marina Oliveira (2021, p. 2), O Pacote Anticrime foi, após amplas discussões no legislativo brasileiro, positivado a partir da Lei nº 13.964/2019, em 21 de dezembro. Dentre várias previsões modificativas da estrutura penal e processual brasileira, muitas das quais expressam um claro caráter punitivista do legislador, como a partir da ampliação do limite máximo de cumprimento de pena de prisão de 30 anos a 40 anos, se inclui a criação da figura do juiz de garantias, no intento de, expressamente, adequar-se o processo penal brasileiro a um sistema acusatório penal. Devido ao grande impacto que terá a implementação do juiz de garantias na prática jurídica brasileira, assim como, dogmaticamente, na visão do que é e quais as finalidades do ordenamento jurídico penal nacional, faz-se necessária uma investigação que busque delimitar os pontos de maior conflito. Desta forma, a base da presente pesquisa é a hipótese de que o juiz de garantias servirá, concretamente, e não apenas na medida dos ditames da própria legislação, como ferramenta para aumentar o conteúdo acusatório do processo penal brasileiro ou, superada a categoria “acusatório”, efetivar a imparcialidade do juiz responsável pela instrução e julgamento.
Diante disso, fica claro que o juiz de garantias é uma peça fundamental para a eficácia buscada pelo pacote anticrime, onde a figura do juiz das garantias serviria como um escudo dos direitos e garantias fundamentais e da estrita legalidade em face dos teores inquisitivos que ocorre na fase pré processual, logo, está além de apenas julgar o caso apenas com o que está elencado na legislação, mas garantir que em uma eventual processo penal, seja resguardado o poder da parte de influenciar na decisão do magistrado sem que esse possua pré conceitos formados pela atuação na fase pré processual. Portanto, o pacote anticrime além de buscar maior eficácia da aplicação da lei penal, busca também a garantia do sistema acusatório em especial a garantia da imparcialidade de um estado que por vezes viola esse preceito tão indispensável ao processo penal justo.
Após todo desenvolvimento da presente pesquisa, é possível inferir que a aplicabilidade do juiz das garantias não é só necessária para garantir a imparcialidade do juiz da instrução e julgamento, mas também, visa fazer com que o sistema acusatório seja de fato garantido, preservando além da imparcialidade do juiz, as garantias que são derivadas, pois um juiz parcial compromete toda estrutura de direitos e garantias necessárias para proteger-se de qualquer arbitrariedade do estado.
Ademais, o presente trabalho ao destrinchar como e onde o juiz das garantias atuaria, demonstra a necessidade em garantir os direitos do acusado na fase pré-processual, pois é no curso do inquérito que a autoridade judiciaria começa a ter sua formação cognitiva e tal circunstância pode influenciar no curso de um eventual processo penal, ninguém esta imune a sofrer um processo penal, logo, a atuação do juiz das garantias, que não atuaria no processo, iria garantir a atuação livre do juiz da instrução e julgamento, sem vícios de cognição e sem interferências dos atos de investigação.
Portanto, fazer justiça é seguir as regras processuais e essas regras processuais devem seguir a constituição federal de 1988, na qual prevê no seu art.5°, LIII que ninguém será julgado senão por um juiz competente, e um juiz competente é aquele, acima de tudo, juiz imparcial e para que esse seja imparcial deve-se se abster de qualquer ato na fase pré-processual, papel a ser desempenhado pelo necessário juiz das garantias.
6 REFERÊNCIAS
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[1] Graduando do curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho, E-mail: [email protected].
[2] Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, E-mail: [email protected].
Graduando do curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARRAIS, VARTINI COUTINHO POLICARPO. Juiz das garantias: afetação da imparcialidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58614/juiz-das-garantias-afetao-da-imparcialidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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