BRUNO CARNEIRO BRITO [1]
(coautor)
JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [2]
RESUMO: A presente pesquisa tem por objetivo analisar a influência exercida pela mídia no processo penal brasileiro, valendo-se de seus meios de massificação da informação e formação da opinião pública, usando como exemplo o famoso caso do Doca Street. Embora a mídia tenha papel fundamental e indispensável para um estado democrático de direito, por exercer papel de informar a sociedade, por diversas vezes tem feito o que podemos chamar de desinformação, utilizando sua força e poder, faz uso do sensacionalismo nos casos de grande repercussão, influenciando o pensamento comum da sociedade. Nesse sentido, a mídia aparece como um quarto poder, fazendo alusão aos três poderes de um estado democrático de direito. Assim, abordaremos um contexto histórico para entender quando a mídia começou a alcançar esse patamar e como ela usa da criminologia midiática para alcançar uma camada significativa da sociedade e como o processo penal do espetáculo coloca em rico o devido processo legal. Para a realização da presente pesquisa, usaremos o método dedutivo, consistindo na pesquisa bibliográfica e doutrinaria, partindo dos pressupostos da mídia, entendendo o que seria criminologia midiática e o processo penal do espetáculo, e ao final, fazer uma correlação entre esses pontos e o caso Doca Street.
Palavras-chave: mídia, criminologia midiática, processo penal do espetáculo, influencia na sociedade, Doca Street.
ABSTRACT: The present research aimed to analyze the influence of the media in the Brazilian criminal process, using its means of massification of information and formation of public opinion, taking as an example the widely known Doca Street’s case. Although the media has a fundamental and indispensable role for a democratic state of law, as it plays the role of informing society, it has often done what can be called disinformation. By using its strength and power, the media uses sensationalism in cases of great repercussion, influencing the common thinking of society. In this sense, the media appears as a fourth power, alluding to the three powers of a democratic state of law. Thus, we approach a historical context to understand when the media started to reach this level and how it uses media criminology to reach a significant layer of society, as well as how the criminal process of the spectacle enriches the due process of law. In order to carry out the present research, we will use the deductive method, consisting of bibliographic and doctrinal research. Firstly, considering the assumptions of the media, we will understand what media criminology and the criminal process of the spectacle would be, and finally, we will make a correlation between these points and Dock Street’s case.
Keywords: media, media criminology, criminal process of the spectacle, influence on society, Doca Street
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Pressupostos da mídia; 2.1. Surgimento; 2.2. Conceito; 2.3. Mídia como fonte de controle social – 4º poder; 2.4. Mídia como instrumento de formação de opinião. 3. Criminologia; 3.1. Criminologia como ciência; 3.2. Criminologia midiática; 4. Processo penal; 4.1. Breves considerações a respeito da materialização do processo penal; 4.2. Processo penal do espetáculo; 5. Doca Street e Ângela; 5.1 Ângela Diniz a “pantera de Minas”; 5.2. O homicídio; 5.3 Repercussão e influência da mídia do caso Doca Street; 5.4 Os julgamentos; 6. Conclusão; 7. Referências
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa se volta a compreensão do crescente problema a respeito da influência da mídia na sociedade e em especial, no processo penal brasileiro. Assim, delimitando o tema para tal influência e utilizando o exemplo do famoso caso do Doca Street, como sendo um dos primeiros a sofrer grande influência da mídia.
A sociedade está em constante mudança e as evoluções tecnológicas estão proporcionando às pessoas um acesso mais rápido, fácil e sem filtros às mais diversas fontes de informações. Hoje em dia, o poder imensurável da mídia vem causando enorme preocupação no meio jurídico.
Em 1976, o caso Doca Street teve um desfecho em primeira instância e outro completamente diferente em segunda. O que mudou? A mídia televisiva da época, exercendo sua influência, deu rumos totalmente diferente ao julgamento. Dentre os poderes estabelecidos na sociedade contemporânea, não resta dúvidas de que a mídia atingiu maior relevância social e econômica, se propagando de maneira rápida para muitas pessoas em todas as esferas sociais, violando direitos fundamentais, tais como vida, honra e intimidade, e assim, influenciando a vida de milhões de pessoas.
Nesse sentido, o problema da pesquisa se volta ao entendimento da influência midiática, sem estabelecer se no total, tem sido boa ou má. Então, surge o questionamento: o fato de a mídia influenciar nas decisões de direito penal, cria margem para uma crise institucional do devido processo legal?
O desenvolvimento da pesquisa terá como base a revisão bibliográfica sobre o tema influência da mídia no devido processo legal e como o Direito tem se comportado sob essa influência, uma vez que a banalização da informação a respeito de crimes e seus, supostamente, autores, virou um mercado extremamente lucrativo.
A pesquisa tem como seu principal objetivo entender como se dá essa influência da mídia no processo penal, e quais os efeitos práticos que ela vem causando no devido processo penal, sem a intenção de exaurir o assunto, nem de escolher onde ela tem sido benéfica ou não.
No artigo, iremos, num primeiro momento, trabalhar na análise do que é a mídia como um todo e qual o seu papel na sociedade e como tem exercido sua influência, valendo-se do que se entende como criminologia midiática. Em segundo momento, analisar o processo penal do espetáculo e como este está causando uma crise institucional no devido processo legal. Por fim, correlacionar com o caso Doca Street, buscando entender qual foi o papel da mídia no desfecho do caso.
2 PRESSUPOSTOS DA MÍDIA
2.1 Surgimento
O homem sempre se preocupou em encontrar mecanismos de comunicação e informação, ficando claro que desde a pré-história a troca de informações ou, podemos dizer, a mídia, esteve presente em sua evolução.
Dessa forma, Souza nos traz a ideia de que essa necessidade vinha da complexidade do pensamento humano. Segundo ele:
O ser humano é um ser eminentemente social. Nos primórdios da humanidade, os homens agregavam-se em pequenos grupos tribais e necessitavam de comunicar uns com os outros para garantir a sua sobrevivência. Quando o homem pintava as paredes das cavernas evidenciava a necessidade de comunicar que advém do pensamento complexo. (SOUSA, Jorge Pedro, 2006 pg. 129).
O termo em inglês media, que traduzido para português mídia, é derivado do latim, sendo introduzido no vocábulo americano para descrever, a princípio, três invenções para época e contexto sociocultural, a saber, o telégrafo, fotografia e a rádio.
A partir do século XV, com o surgimento de inúmeros acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais, surgiu o registro de informações em papéis, que circulavam nos grandes centros dos principais países, num primeiro momento, na Europa e mais tarde nos Estado Unidos da América. Foi então que mais tarde, em meados do século XVII, surgiu o jornalismo, denominado nesse estudo como mídia.
A revolução industrial também teve papel fundamental na evolução do processo midiático. O advento da mecanização dos meios de produção de impressos, tonou o processo mais rápido e barato, levando mais uma vez ao aumento do público leitor, fazendo com que o processo de criação, divulgação e consumo se tornasse mais dinâmico e com maior alcance, como assim descreve Straubhaar.
Os meios de comunicação atravessaram vários estágios de desenvolvimento. A evolução desse meio vem dependendo do desenvolvimento das economias e sociedade a sua volta. Não poderíamos ter meios de massa disponíveis, por exemplo, antes que a Revolução Industrial tivesse tornado possível a produção e disseminação em massa de livros, jornais, rádio e televisão. (STRAUBHAAR, Joseph; LAROSE, Robert, pág. 26)
No decorrer de um dos maiores acontecimentos históricos da humanidade, a segunda guerra mundial, a mídia deu, até então o seu salto mais significativo, passando do meio impresso para o televisivo e radiofônico. A partir daí os rumos da impressa mudaram, assumindo assim um papel empresarial, voltado para a obtenção de lucro. Segundo Sousa;
O conhecimento, a posse da informação, é a nova chave da riqueza. Durante a I Vaga (Revolução Agrícola) e nas épocas anteriores, a comunicação desenvolvia-se essencialmente dentro de pequenos grupos (família, comunidade, etc.). A II Vaga (Revolução Industrial) permitiu o desenvolvimento dos mass media, unidirecionais, que, segundo Toffler (1984), contribuíram para padronizar e massificar a sociedade. A III Vaga, sustentada pelo crescimento econômico e pelo aparecimento de dispositivos de comunicação mais fiáveis, mais baratos, mais pequenos e mais performativos, gerou um processo de desmassificação dos media (SOUSA, Jorge Pedro, 2006 pg. 487)
O universo midiático tem passado por várias transformações com o passar do tempo. O surgimento de novos meios de comunicação passou a integrar ao processo midiático um alcance e força sem precedentes na história da humanidade. Em primeiro momento, veio a mídia televisiva e radiofônica, mudando os rumos de como a informação chegava a uma quantidade maior de pessoas, e mais tarde, nos tempos de hoje, a internet e as redes sociais levaram a mídia a um patamar tão elevado que estudos apontam que a mídia exerce o papel de um quarto poder na sociedade. Assim, surge o termo mass media, se referendo aos meios de comunicação em massa, capazes de exercer influência na sociedade.
2.2 Conceito
Mídia é o processo de comunicação de informações jornalísticas através de meios impressos ou eletrônicos. Em modos gerais, mídia é o conjunto de diversos meios de comunicação, com finalidade de levar informações com uma infinidade de variações de conteúdo.
A mídia abrange uma série de diferentes plataformas que agem em conjunto ou não, na disseminação de informações, são, em modos gerais, jornais, revistas, rádio, televisão e por fim, a internet.
A mídia está ligada de maneira intima com o jornalismo, mas também abrange outras áreas da comunicação social como a publicidade e a propaganda, que usam dos meios para alcançar seus objetivos e exercer sua influência na sociedade.
Assim, a mídia se divide em duas principais categorias, a saber: analógica, sendo a mídia tradicional e digital, presente na internet.
2.3 Mídia como fonte de controle social – 4° poder
Denominar a mídia como Quarto Poder, faz referência aos três poderes do estado democrático de direito. Essa expressão foi criada no século XIX, para descrever ou mensurar o poder que a mídia alcançou, exercendo o controle social junto com o estado. Nas palavras de Sousa;
“A comunicação jornalística contribui para manter o controle social sem sacrificar a legitimidade de que os poderes dominantes necessitam para manter o seu domínio. Os meios de comunicação social dos países democráticos, apesar de não serem um monólito ideológico, servem uma função hegemônica por continuamente produzirem uma ideologia que, integrando valores e normas do senso comum, reproduz e legitima a estrutura e ordem sociais. ” (SOUSA, Jorge Pedro, 2006 pg. 228).
Controle social pode ser entendido como um conjunto de recursos materiais ou imateriais, disponíveis em uma sociedade para assegurar que cada indivíduo se comporte de acordo com as regras estabelecidas pela própria sociedade, assim, vivendo de maneira previsível de acordo com as regras e preceitos vigentes.
Nesse sentido, surge a mídia exercendo a sua função de quarto poder. A mídia, através de suas mais diversas plataformas, tem exercido grande influência no cotidiano das pessoas e assim, influenciando a sociedade como um todo, tornando inegável o poder de facto da mídia em todas as camadas sociais, por consequência, no Devido Processo Penal.
Nas palavras de Rubens Casara,
“O direito, então, passa a estar subordinado à lógica da hiper-cultura midiática-mercantil (não mais uma sociedade influenciada pela televisão, mas agora também por um número crescente de meios de comunicação, de centros multimídias, de redes, de canais, de plataformas e ainda que, no caso brasileiro, nas mãos de poucas famílias ou grupos, da teatralização, do show business, que tem como característica principal, implantar-se sobre o signo hiperbólico da sedução, do espetáculo, da diversão em massa, mas que mistura as esferas do controle social, da economia, da cultura, da desinformação, das artes, da moda, tudo a esconder interesses de grupos bem definidos.” (CASARA, Rubens, pág. 30)
Tentar coibir ou regular esse poder é uma tarefa impossível, o que pode acarretar por dar mais poder a um dos “poderes”. Além dos perigos que é levar essa regulamentação ao um nível onde o estado democrático de direito seja ferido.
2.4 Mídia como instrumento de formação de opinião
Como já mencionado, a mídia exerce influência na sociedade em todas as suas camadas sociais, econômicas e culturais e para Hjarverd, a midialização é o ponto central dessa influência. Segundo ele:
O conceito-chave para a compreensão da influência da mídia na cultura e na sociedade é a midiatização. O termo tem sido utilizado em diferentes contextos para caracterizar a influência que a mídia exerce sobre uma série de fenômenos, mas poucos trabalhos foram realizados para definir ou especificar o conceito em si. Apenas muito recentemente os pesquisadores da mídia buscaram desenvolver um conceito que exprimisse um conceito mais coerente e preciso da midiatização como um processo social e cultura (Hjarvard, 2012, p. 55)
Assim, o grande número de ocorrência envolvendo crimes tem sido tema das mais diversas reportagens e levada ao público na forma que os meios de comunicação acharem mais lucrativo, pois desde que se tornou algo comercial e econômico, a mídia abandonou o seu papel exclusivo de informação e passou a exercer o papel de influenciar na maneira que lhe convém. Hjarvard adverte de forma clara essa influência e o conceito do chamado midiatização
Por midiatização da sociedade, entendemos o processo pelo qual a sociedade, em um grau cada vez maior, está submetida a ou torna-se dependente da mídia e de sua lógica. Esse processo é caracterizado por uma dualidade em que os meios de comunicação passaram a estar integrados às operações de outras instituições sociais, ao mesmo tempo em que também adquiriram status de instituições sociais em pleno direito. […] a lógica da mídia refere-se ao modus operandi institucional […] a lógica da mídia influência a forma que a comunicação adquire […]; a lógica da mídia também influência a natureza e a função das relações sociais, bem como os emissores, o conteúdo e os receptores da comunicação. O grau de dependência aos meios de comunicação varia entre as instituições e os campos da sociedade (Hjarvard, 2012, p. 64)
Através desse poder, a população se sente municiada para participar opinando e criticando qualquer decisão do poder público e da sociedade em si, principalmente as decisões de caráter jurídico e político.
Essa invasão da mídia tem sido benéfica em alguns aspectos e maléfica em outros. As opiniões da sociedade têm se pautado no que a mídia quer, se valendo pela não censura, o sensacionalismo tem tomado dê conta dos noticiários, principalmente os policiais.
3 CRIMINOLOGIA
3.1 Criminologia como ciência
A criminologia pode ser vista como uma ciência empírica, se validando na constatação por meio da experiência, reconhecida pela doutrina como uma ciência de caráter interdisciplinar por envolver vários outros ramos científicos. Ela se baseia na análise e observação da realidade, do qual tem como objetos principais a personalidade do autor, da vítima, do delito em si e por fim, do controle social das condutas. (GARCIA; MOLINA; GOMES, 2002, pág. 39)
Nesse sentido, temos o entendimento de Mayrink da Costa:
O conceito de delito fornecido pelo Direito Penal é o ponto referencial de operacionalidade da Criminologia. Sem dúvida que esta e aquele, trabalham com conceitos distintos. A criminologia conta com a intolerabilidade social do comportamento desviado (deviante behavior) avaliando a necessidade ou não do controle social normativo-formal, ditado pelo Direito Penal Mínimo. (MAYRINK, Álvaro, (2005, 4ª ed., p. 121)
Assim, reconhecendo a criminologia como ciência, identificar seu objeto de estudo e a análise é primordial. Entendendo que essa ciência não se pauta apenas no objeto do crime, pois o fato concreto vai além do conceito objetivo do crime em si. Para a criminologia, o crime é visto como um fato ou fenômeno humano individual e social, que por sua vez, afeta toda a sociedade no seu cotidiano, entendendo ainda, que o delito está ligado ao produto do tempo-histórico, no qual se encontra inserido na sociedade o comportamento delitivo, que pode ser interpretado pelo viés subjetivo.
As concepções do comportamento delitivo dos agentes podem ser compreendidas de acordo com seu contexto histórico, social e cultural, assim, essas fases são conceituadas através de escolas criminológicas especificas. Seguindo essa linha histórica e social, podemos determinar a criminologia pelo aspecto de atuação e interpretação a respeito do estudo dessa ciência, sendo estes: delito, criminoso, vítima, e controle social do delito.
Partindo do pressuposto de que a criminologia é uma ciência, podemos identificar em suas fases dois tipos de classificação.
A fase pré-ciência, conhecida como escola clássica, que teve forte influência das ideias iluministas, onde predominavam a razão e crítica ao sistema político e social dos regimes absolutistas das monarquias, que tinham privilégios decorrentes desse sistema, assim tinha como ideia central um poder punitivo mais humanitário.
Nesse sentido, Salo de Carvalho leciona:
A teorias humanistas, plenamente apropriadas pelo discurso do liberalismo penal divulgado pela Escola Clássica, solidificarão a estrutura principiológica do direito e do processo penal, projetando (Formalmente) a racionalização do poder punitivo a partir dos conceitos de igualdade e autonomia entre sujeitos, independência e imparcialidade do julgador. (CARVALHO, Salo, 2013, pág. 154)
A segunda fase, ou fase cientifica, é reconhecida como escola positivista, que buscava entender as condutas delituosas dos agentes através de métodos empírico e dedutivo, pautando-se na observação e análise dos fatos concretos para alcançar decisão lógica
Nas palavras de Antônio Garcia:
[A Escola Clássica] concebe o crime como fato individual, isolado, como mera infração à lei: é a contradição com a norma jurídica que dá sentido ao delito, sem que seja necessária uma referência à personalidade do autor (mero sujeito ativo do fato) nem à sua realidade social ou ambiente, para compreendê-lo. O decisivo é mesmo o fato, não o autor. Falta na Escola Clássica uma preocupação inequivocamente etiológica (ou preocupação em indagar as causas do comportamento criminoso). É, pois, uma concepção mais reativa que etiológica e, em suma, só pode oferecer uma explicação situacional do delito. (MOLINA, Antônio, 2013, pág. 66)
Dessa forma, é possível perceber o contraste existente nas duas escolas, onde a escola clássica buscava o combate ao sistema monárquico com suas penas desumanas e a escola positivista se preocupou em superar o conhecimento teológico, magico e abstrato por um conhecimento científico, mediante a observação da realidade fática.
3.2 Criminologia Midiática
A criminologia pode ser entendida como uma lente que captura a realidade criminal, explicitando essa realidade. Assim a criminologia midiática surge como uma tentativa dos meios de comunicação de entender como se dá a realidade criminal.
Nesse sentido, Zaffaronni leciona que:
“A Criminologia Midiática sempre existiu e sempre apela a uma criação da realidade através de informação, subinformação e desinformação em convergência com preconceitos e crenças, baseada em uma etiologia criminal simplista, assentada na causalidade mágica” (ZAFFARONI, 2013, p. 194)
Nesse sentido, a visão do delito é determinada por aquilo que meios de comunicação entendem como conceito de crime e como a sociedade entende esse conceito. Assim, o principal foco da mídia não é a exegese da criminologia em si, mas a atenção dos telespectadores, no qual se busca, em primeiro lugar a audiência.
Dessa forma, a democratização da mídia, passando a integrar infinitos meios, tais como, televisão, rádio, jornais, revistas, internet e suas variáveis ferramentas, possibilitou a produção e veiculação de informação em massa. Assim atrelado a liberdade e facilidade em produzir e propagar qualquer opinião para incontáveis números de pessoas, foi responsável pelo impacto imensurável que está trouxe a sociedade.
Essa midiatização está diretamente ligada a ideia no senso comum expressado no castigo ocasionado pela prática de um delito por parte de um indivíduo, se transforma em uma vingança da sociedade perante o delinquente. Assim, Zaffaroni, acredita que o populismo penal midiático busca instigar na sociedade um espírito vingativo e desumano. Segundo ele:
“A criminologia midiática não tem limites, que ela vai num crescendo infinito e acaba clamando pelo inadmissível: pena de morte, expulsão de todos os imigrantes, demolição dos bairros pobres, deslocamento de população, castração dos estupradores, legalização da tortura, redução da obra pública à construção de cadeias, supressão de todas as garantias penais e processuais, destituição dos juízes. (ZAFFARONI, Eugênio, 2012) ”
Assim, o “produto” crime, que revestido de sensacionalismo, produz entretenimento, levando a altíssimos níveis de audiência, o que ocasiona em uma fonte altamente rentável financeiramente. Zaffaroni ainda firma que todo esse “teatro” criado em torno da criminologia como ciência recebe suporte e supervisão de especialistas na matéria criminal, a fim de poderem revestir-se como sendo um conhecimento técnico científico (ZAFFARONI, 2013, pág. 149).
Nesse sentido, Valverde também aponta seu entendimento sobre a criminologia midiática:
Como o tribunal do júri trata justamente sobre crimes dolosos, que tem grande repercussão, traz justamente o sentimentalismo da sociedade, a revolta e opiniões sobre tudo o que acontece no mundo do crime. Muitas vezes a mídia condena sem ter a certeza, com apenas especulações de que realmente é verdadeiro tal fato que está sendo noticiado, mas não imagina a influência que pode ter sobre os pensamentos das pessoas, que deveriam julgar apenas baseado em fatos reais, narrados no decorrer do processo e não em apenas especulações já preconcebidas antes mesmo do julgamento (VALVERDE, 2012, p. 21).
Tal aspecto faz com que a chamada criminologia midiática se encaixe perfeitamente no atual cenário da sociedade, levando não só o indivíduo a propagar suas ideias a incontáveis números de outros indivíduos, mas também à prática empresarial da imprensa privada, fazendo da mídia parte integrante do processo penal, criando o Punitivismo Popular Midiático.
4 PROCESSO PENAL
4.1 Breves Considerações a respeito da materialização do processo penal
O processo é entendido como o alicerce de materialização da tutela jurisdicional, dessa forma, o processo penal tem status de plataforma apta para dar segurança jurídica à apuração da autoria e materialidade de um crime, de forma a dar eficácia as garantias e direitos fundamentais consagrados na carta constitucional.
Assim, é possível identificar o caráter instrumental do processo penal, já que a aplicação de uma pena se torna impossível sem a existência do mesmo. Porém, esse caráter não se reduz apenas a aplicação de uma sanção. Nesse sentido, Lopes Junior leciona:
É fundamental compreender que a instrumentalidade do processo não significa que ele seja um instrumento a serviço de uma única finalidade, qual seja, a satisfação de uma pretensão (acusatória). (JR, 2013, pág. 78)
Portanto, o objetivo do processo penal vai além da mera aplicação da pena. Ele visa resguardar as garantias individuais de todos que se encontram submetidos à uma acusação. Assim, Ferrajoli leciona acerca das garantias procedimentais:
O que faz do processo uma operação distinta da justiça com as próprias mãos ou de outros métodos bárbaros de justiça sumário é o fato que ele persegue, em coerência com a dúplice função preventiva do direito penal, duas diferentes finalidades: a punição dos culpados juntamente com a tutela dos inocentes. (Ferrajoli, 2010, pág. 556)
Salvaguardar as garantias fundamentais não significa que o processo penal está praticando certa impunidade, mas sim limitando o poder do estado em punir, a fim de proteger o indivíduo que está submetido ao este. Nesse sentido, Lopes Junior leciona:
"Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)." (JR., 2022, p.55)
Assim, temos o entendimento de que o Processo Penal deve ser regado de princípios democráticos que foram consolidados na Constituição Federal de 1988. Entre suas principais características, está a existência de paridade de armas entre as partes e a imparcialidade do julgador e assim legitimar o procedimento do exercício da função jurisdicional.
Nesse sentido, temos as palavras dos mestres Cintra, Grinover e Dinamarco:
Em conclusão, pode-se afirmar que a garantia do acesso à justiça, consagrando do plano constitucional o próprio direito de ação (como direito à prestação jurisdicional) e o direito de defesa (direito à adequada resistência às pretensões adversárias) tem como conteúdo o direito ao processo, como as garantias do devido processo legal. Por direito ao processo não se pode entender a simples ordenação de atos, através de um procedimento qualquer. O procedimento já de realizar-se em contraditório, cercando-se de todas as garantias necessárias para que as partes possam sustentar as razões, produzir provas, influir sobre a formação do convencimento do juiz. E mais: para que esse procedimento, garantido pelo devido processo legal, legitime o exercício da função jurisdicional (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2009, p. 90)
Vale destacar que temos como uma das principais características do processo penal, os chamados Princípios Limitadores do Ius Puniendi, chamados também de garantias e limites do poder punitivo, adotados pela Constituição Federal de 1988, que são: Princípio da Legalidade, Princípio da Presunção de não Culpabilidade, Princípio da Publicidade e Princípio da Busca da Verdade Real,
Assim, a instrumentalidade do processo penal está intimamente ligada a limitação do poder do estado. Nesse sentido, Lopes Junior leciona que:
"Com isso, concluímos que a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais e de limitação do poder punitivo. É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta no processo penal, pois se trata de instrumentalidade relacionada ao direito penal e à pena, mas, principalmente, um instrumento a serviço da máxima eficácia das garantias constitucionais. Está legitimado enquanto instrumento a serviço do projeto constitucional de limitação do poder e maximização dos direitos fundamentais." (JR., 2022, p.104)
Quando se entende a importância da materialidade do processo penal, que é a proteção do mais fraco, e sobre tudo, salvaguardar garantias como a liberdade, todos os mecanismos vinculados à efetivação do processo penal mínimo são justificados.
4.2 Processo Penal do Espetáculo
Com a criminologia midiática, surge o processo penal do espetáculo, onde a verdade e os fatos são trocados por um enredo que busca, não só a justiça, mas o entretenimento. Nesse sentido, Rubens Casara adverte que na sociedade do espetáculo, o processo penal também se torna apenas um simulacro. Uma mercadoria que precisa ser atrativa para ser negociada (CASARA, Rubens, pág. 15 e 16)
Partindo do entendimento de que o espetáculo é uma construção social, produzida por imagens e sons, como característica principal a relação intersubjetiva, medida por sensações, que se tornou um regulador das expectativas sociais quando as imagens produzidas e todo o enredo que a cerca passaram a condicionar ou a influenciar as relações humanas, podemos dizer que os espetáculos são, de fato, influenciadores da sociedade.
Nesse sentido, Debord afirma que:
“O espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana - isto é, social – como simples aparência”. O espetáculo seria, portanto, a produção ímpar da sociedade atual, em que as pessoas apreciam a aparência em lugar do ser, à ilusão à realidade. “Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade” (DEBORD,1997, p.14).
É sobre essa influência que o nosso sistema jurídico-penal tem se deparado no atual contexto histórico da humanidade, pois entende-se que está cada vez mais está em evidência, ou podemos dizer, em cartaz, o produto crime e seus julgamentos.
O grande problema é que, o processo penal, que deve ser usado como instrumento de racionalização do poder penal, acaba sofrendo uma mudança significativa, na busca de atender a demanda da sociedade que é o entretenimento, pois nessa modalidade de processo penal voltada ao espetáculo, inexiste a garantia de direitos fundamentais. Assim, afirma Rubens Casara que:
No processo penal do espetáculo, os valores típicos da jurisdição penal de viés liberal (verdade e liberdade) são abandonados e substituídos por um enredo que aposta na prisão e no sofrimento imposto a investigados e réus como forma de manter a atenção e agradar ao público. (CASARA, Rubens, pág. 28)
Instrumentos essenciais para o devido processo legal, como diálogo e dialética da solução do caso concreto, a partir da atividade das partes, são substituídos pelo parecer, ou discurso do Juiz, este feito para agradar uma maioria. Maioria essa que foi construída pelos grandes meios de comunicação, influenciando, no final, o magistrado. Assim, esses magistrados que, ocupando papéis de suma importância dentro do processo penal, acabam atendendo os desejos da sociedade e acabam violando leis e privando direitos fundamentais há quem está na condição de réu. Esses fatos levam a um paradoxo, de quem são esses magistrados, considerados como heróis, por parte da sociedade. É nesse sentido que Rubens Casara lesiona:
“No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes. Substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um discurso construído para agradar às maiorias da ocasião, forjadas pelos meios de comunicação em massa, em detrimento da função contra majoritária de concretizar os direitos fundamentais. (CASARA, Rubens, pág. 31)”
No processo penal democrático tem como ponto central a necessidade de uma construção o mais eticamente possível do fato concreto, atribuído ao réu, porém, o que ocorre no processo penal do espetáculo é a construção de um enredo sobre o fato, algo que o torna incompatível com as garantias necessárias do devido processo legal. Assim, nas palavras de Rubens Casara:
O espetáculo, como percebeu Debord, ‘não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo’. A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento. (CASARA, 2015, pág. 498)
Assim, o enredo dramático que envolve as partes ou os personagens do “espetáculo”, se faz conhecido antes de qualquer fato concreto, fazendo o processo caminhar até o final desejado pelo juiz, motivado pela vontade da sociedade.
Esse enredo acaba por inviabilizar a defesa e o contraditório, ficando claro que no processo penal do espetáculo, tais institutos não passam de uma farsa, pois já estão maculados por uma apresentação que está mais voltada a agradar o espectador.
5. OS JULGAMENTOS DE DOCA STREET
5.1 Ângela Diniz a “pantera de Minas”
Ângela Diniz, filha de um dentista e sua mãe uma dona de casa dedicada, que sempre costurava vestidos elegantes para que Ângela fosse à missa, despertando admiração em todos que a viam por sua beleza. Com 18 anos, se casa com Mílton Villas Boas, por pressão da sua mãe que o considerava um “bom partido”, com quem teve três filhos. (RÁDIO NOVELO, 2020)
Depois do desquite com Mílton, ficou conhecida por sua vida conturbada cheia de amantes e incidentes, e assim lhe deram o apelido de “Pantera de Minas”. Em 1973, Ângela confessa ter assassinado o vigia de sua residência, José Avelino dos Santos, encontrado morto na mansão de Ângela em Belo Horizonte. Mas após ter admitido, seu amante da época, Artur Vale Mendes, o Tuca Mendes, assumiu que tinha assassinado o José Avelino em legitima defesa, assim foi julgado e absolvido, apesar dos rumores de tê-lo matado por ter sido visto pelo vigia.
Após a repercussão do caso em Minas Gerais, Ângela se mudou para o Rio de Janeiro, mas sua vida não deixou de ser menos polêmica e lá ocorreu outro incidente. Por ser desquitada de Mílton Vilas Boas e ter perdido a guarda dos seus três filhos, Ângela pegou os filhos da casa dos avós paternos, em Belo Horizonte, sem autorização e os levou para o Rio de Janeiro. Assim, sendo acusada de sequestro e até condenada a seis anos de prisão, ela recorreu, mas morreu antes de ter novo julgamento.
Em 1975, foi presa no Rio de Janeiro por esconder em seu apartamento mais de cem gramas de maconha e outras drogas ilegais. Ângela admitiu ser viciada em drogas desde a morte do seu vigia em Belo Horizonte em 1973.
No meio dessa vida conturbada e marcada pela perseguição de jornais com suas matérias sensacionalistas, em que segundo amigos e familiares próximos Ângela estava desolada por estar longe dos filhos e ainda traumatizada com o episódio da morte do seu vigia. Em agosto de 1976 conheceu o seu assassino, Doca em um jantar em São Paulo, por intermédio da própria esposa do Doca.
5.2 O homicídio
Depois de um mês que se conheceram, Doca separa da esposa, a milionária Adélia Scarpa e do filho para viver essa paixão que ele mesmo identifica como uma paixão avassaladora, indo viver uma vida de festas, bebidas, sexo e drogas com a “Pantera de Minas”. Foram quatro meses de convivência, que foram cheios de brigas e ciúmes, além de viver à custa do dinheiro de Ângela, segundo informou Maria José de Oliveira, a empregada do casal. (ELUF, 2022)
Em 30 dezembro de 1976, a socialite Ângela Maria Fernandez foi morta por Raul Fernando do Amaral Street com quatro tiros, na Praia dos Ossos, em Armação do Búzios, no Rio de Janeiro, acabando com a história do casal. Ângela foi morta com apenas 32 anos, sendo desde muito nova presente nas colunas sociais de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde nasceu.
Logo que souberam da morte de Ângela de forma tão trágica com 3 tiros no rosto tão admirado e invejado ao longo da sua vida, vários repórteres se mobilizaram para documentar o assassinato mesmo com a dificuldade de acesso ao local do crime e a dificuldade de comunicação pelos meios da época, não impedindo que nem mesmo no velório do lado a cova fosse deixado de lado dos jornalistas, causando desconforto para os amigos e familiares de luto (RÁDIO NOVELO, 2020).
5.3 Repercussão e influência da mídia no caso Doca Street
Na época do crime, o jornal Folha de S. Paulo, na edição de 06 de janeiro de 1977, o padre José Lemos, que oficiou a missa de sétimo dia de Ângela Diniz no Rio de Janeiro, afirmou que “se ela não tivesse sido assassinada, teria se suicidado em consequência da campanha mórbida e injusta movida por toda a imprensa que a apontava como má esposa, péssima mãe e adepta de vícios”, se referindo aos diversos ataques que Ângela sofria da mídia durante toda sua vida.
Doca Street fugiu e ficou escondido no Estado de Minas Gerais, e no dia 16 de janeiro de 1977, contratou o advogado Paulo José da Costa Jr, que imediatamente começou a construir a defesa de Doca, esmiuçando a vida de Ângela Diniz, com o objetivo de comprometer a vida da falecida.
Logo, Costa Jr. se junta a outro advogado famoso, Evandro Lins e Silva, e acordam de utilizar a imprensa para o reaparecimento de Doca, e não para polícia. Sendo escolhido a quem e como seria registrado. Assim, concederam uma entrevista para a TV Globo, por Odilon Coutinho, e o redator Salomão Schwartzman da revista Manchete.
Aproveitando do fato que a população brasileira acompanhava ansiosa cada acontecimento do caso, como se fosse um espetáculo, e como relata Costa Jr., ele ajudou Doca a narrar uma história que beneficiasse a imagem de Doca e justificasse seu crime (ELUF, 2022), a entrevista foi ao ar.
Assim, a mídia cobriu o crime, onde ele foi colocado de forma que Doca Street exercesse o lugar de vítima, como segue o trecho da revista Manchete:
“Doca era um homem feliz, afável, simpático, queridíssimo na sociedade paulistana e estimado por gente humilde. Tinha um filho lindo, excelente situação financeira, residia no Morumbi, era bem-casado. Ângela lhe virou a cabeça”; “O que aconteceu com meu irmão foi uma trágica fatalidade. Simplesmente uma paixão desenfreada o alcançou em cheio e ele se descontrolou fatalmente […] meu irmão teve uma paixão negra (Luís Carlos Street In. MANCHETE, 1977, p.12).
No dia 17 de janeiro, Doca foi parar no hospital, em coma alcoólico e só assim os médicos o entregaram para polícia. Doca Street confessou o crime, e em julho do mesmo ano foi liberado por habeas corpus, e aguardou o processo em liberdade.
5.4. Os julgamentos
Em 1979, aconteceu o primeiro julgamento, e tinha uma multidão na frente do fórum para ver o julgamento de Doca, multidão que era dívida entre aqueles que apoiavam o Doca e estavam munidos de cartaz, mesmo sendo réu confesso, e aqueles que fosse condenado, mas também havia a mobilização da impressa, que era em grande número, só a emissora TV Globo levou treze carros de transmissão (RÁDIO NOVELO, 2020).
Com grande repercussão em mídia nacional, o caso de Doca Street contou com mais de 160 profissionais de mídia, entre repórteres e técnicos, das mais diversas emissoras de televisão do país. Não apenas pelo crime cometido, mas por se tratar de duas pessoas tidas como celebridades na época. Ângela Diniz, conhecida como uma socialite de personalidade forte e Raul Fernando do Amaral Street, o Doca, conhecido no mercado de capitais.
Reportagens da época mostram pessoas fazendo filas durante a madrugada, só para poder acompanhar o julgamento. Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro, que na época era uma cidade pacata, estava recebendo, até em tão, o julgamento de um dos crimes passionais de maior repercussão do país.
Em entrevista concedida ao Podcast Praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo, o advogado Carlos Lins e Silva, filho do renomado advogado criminalista Evandro Lins e Silva, que na época foi o advogado de Doca, acompanhou de perto o seu pai e o acusado, Doca. Ele conta detalhes de como o clima era de muita tensão entre eles, pois se tratava do primeiro julgamento transmitido pela televisão e que a multidão era tão grande que mais se parecia uma data festiva na cidade. (RÁDIO NOVELO, 2020)
Doca foi condenado a uma pena diminuta, dois anos de reclusão com sursis (suspensão condicional da pena), ou seja, o condenado não precisa se recolher à prisão. Era uma vitória para Doca e seus advogados.
A Revista VEJA estampou em sua capa de 24 de outubro de 1979 o título:
“DOCA VAI MATAR E VENCER”, com a seguinte matéria: “A defesa provou que Ângela tinha má conduta. A promotoria disse que Doca era um rufião. A plateia foi uma festa e um crime deixou de ser julgado. ” (Revista veja, 1979)
O advogado de Evandro Lins e Silva, utilizando da tese da legítima defesa da honra, com excesso culposo. Apresentou caso aos jurados, levando-os pela sua linha de raciocínio. Doca Street era um homem apaixonado, bom caráter, trabalhador, que amparava suas ex esposas, que não tinha cometido nenhum crime até aquele dia fatídico. Usou o fato de, segundo ele, ser um homem passional, que agiu no impulso e no calor da emoção e acabou matou Ângela Diniz. Não havia premeditação no seu ato. É um ato deslocado de um homem apaixonado que se viu desesperado com o rompimento do relacionamento, colocando que o comportamento sexual lascivo da vítima contribuiu para o desfecho da tragédia. (ELUF, 2022).
O jornal República foi mais duro na crítica e na sua edição de número 00047, no dia 19 de outubro de 1979, trouxe uma matéria onde tinha como título “CIRCO? PASTELÃO? NÃO, ERA UM TRIBUNAL. ”
O jornalista Ricardo Kotscho escreveu a seguinte matéria nessa mesma edição:
“‘Você tem problemas com sua mulher? A solução é simples. Vá com ela a Cabo Frio, compre uma casa em Búzios com o dinheiro dele e, na primeira oportunidade, acerte-lhe quatro tiros no rosto. Depois fuja para São Paulo e procure a fazenda de um amigo. Um bom advogado cuidará do álibi. Antes de se apresentar a polícia, acerte a publicação da sua versão do crime, contando todas as perversidades da sua mulher morta a algum órgão da imprensa sadia. O máximo que pode acontecer a você é ser condenado a dois anos de prisão com sirsus, ou seja, três anos de liberdade condicional. ” (KOTSCHO, 1979)
O promotor do caso, entendendo que houve um erro por parte do tribunal, na pessoa do juiz e percebendo a mudança do pensamento crítico da sociedade em relação ao caso, recorreu a sentença, sobre a alegação de que a decisão havia contrariado as provas dos autos. Assim, a sentença teve sua anulação, ocorrendo novo julgamento, desta vez, na cidade do Rio de Janeiro.
Dois anos depois do primeiro julgamento, em 1981, a sociedade brasileira estava se posicionando contra o argumento que vitimizava Doca, onde o mesmo foi condenado a 15 anos de reclusão pelo crime de homicídio. Tal decisão teve forte influência da mídia, que como pudemos ver, logo após o primeiro julgamento, estampava nos telejornais e revistas a revolta sobre a decisão, colocada na época pelo renomado jornal República como “um puxão de orelhas”. (KOTSCHO, Ricardo, 1979).
O movimento das mineiras “quem ama não mata”, acabou sendo fundamental para o clima que se armou no decorrer do processo no segundo julgamento do Doca, mudando a ideia para Ângela Diniz não ser uma “vítima ideal”, que foi construída no primeiro julgamento.
A grande repercussão do caso e diversas matérias como as citadas, fez com que o segundo julgamento tivesse um desfecho completamente diferente. Não foi o sistema jurídico brasileiro que mudou, dois anos depois da primeira condenação, mas sim a opinião pública.
Municiada pelas matérias em jornais, revistas e programas televisivos, a sociedade que, no primeiro julgamento tinha Doca como uma “vítima” começou a olhar o então réu como assassino de Ângela Dias. (RÁDIO NOVELO, 2020).
Em entrevista concedida a revista Folha de São Paulo, em 01 de setembro de 2006, Doca afirmou que mereceu ser condenado, mostrando que ele mesmo havia sido influenciado:
“Fiquei com vergonha de ser absorvido. Não entendi. Também não entendi por que era aplaudido. ”; “As feministas fizeram um bom trabalho. Fui condenado muito bem. Ainda bem que fui”; e “Digamos que foi uma fronteira. Depois disso, o Brasil melhorou, sim. Que bom! Não se aceita mais que um homem maltrate uma mulher”
É nesse sentido que podemos observar a influência que a mídia exerceu no caso Doca Street e tem exercido no processo penal. Para essa pesquisa, não é mister entender quando e como essa é uma influência boa ou má, se os tribunais têm acertados em suas condenações e, em especial, se no caso Doca Street o tribunal acertou na primeira ou na segunda condenação, mas sim salientar que, pelo poder da mídia, Doca teve dois julgamentos completamente diferentes, num intervalo de dois anos e isso ocorreu graças a grande influência da mídia.
6. CONCLUSÃO
Compreendemos que a mídia tem grande influência na sociedade, visto que seu auge começou na Revolução Industrial, fato que deixou o processo de divulgação da informação mais rápido e fácil, conseguindo atingir praticamente todas as camadas sociais. O jornalismo ganhou força significativa com a expansão da mídia, assim, a divulgação da informação passou a alcança a grande massa.
Hoje em dia, a mídia abrange outras áreas da comunicação social, como publicidade e propaganda e tem a internet e as mídias sociais como um forte aliado. O que possibilitou um alcance ainda maior, exercendo uma grande influência no cotidiano da sociedade e atingindo seus objetivos voltados a obtenção de lucro.
Também, pode-se perceber que coibir tal poder de influência da mídia é uma tarefa impossível, já que é um meio imprescindível para o estado democrático de direito. Assim, surge a expressão da mídia como 4° Poder do estado democrático de direito, não só por sua importância, mas também por seu poder de controle social.
No segundo momento analisamos a ciência da criminologia, em que o crime é visto como um fenômeno humano individual e social, que afeta a sociedade no seu cotidiano, e está ligado ao tempo-histórico inserido na sociedade, sendo analisado subjetivamente. Como é visto no caso que foi estudado nessa pesquisa.
No primeiro julgamento de Doca Street, a sociedade aceitou a ideia de que o crime “matar por amor” era aceitável, porém no segundo julgamento, com uma vacância de apenas 2 anos do primeiro, a sociedade se mostrou totalmente contraria a sentença anterior, e exigia uma punição mais severa. O que mudou?
Surge, então, no contexto do caso Doca Street, a criminologia midiática, na análise feita pelos meios de comunicação, buscando entender como se deu a realidade criminal, levando seu foco não na exegese da criminologia em si, mas sim na busca da atenção dos telespectadores. O caso Doca Street ganhou os noticiários e a mídia conseguiu influenciar a sociedade que, à época, tinha a visão de que Doca era, na verdade vítima, mas dois anos depois se tornou o grande vilão.
Esse fenômeno ocorreu e continua a ocorrer atualmente, pois, os grandes números de ocorrência de crime, ou “produto” crime, que revestido de sensacionalismo, produz entretenimento, levando a altíssimos níveis de audiência, acaba ocasionando uma fonte altamente rentável financeiramente.
Dessa forma, influenciados pela mídia, a população se envolve opinando e criticando os crimes, e principalmente as decisões de caráter jurídica e política, com base no senso comum e movidos por emoções, se transformando numa vingança da sociedade, criando o Punitivismo Popular Midiático.
Contrário a esse sentido, Rubens Casara, destaca que é imprescindível para o estado democrático de direito a figura do devido processo legal, destacando os Princípios Limitadores do Ius Puniendi, chamados também de garantias e limites do poder punitivo, adotados pela Constituição Federal de 1988, devendo assegurar ao agente que está sendo julgado o não excesso punitivo do estado e a efetivação do devido processo legal. Porém, na busca de atender a demanda da sociedade que é o entretenimento, como é no processo penal do espetáculo propagada pela mídia, inexiste a garantia de direitos fundamentais, sendo este o grande problema que o processo penal deve combater.
O caso Doca Street reuniu alguns elementos que descrevem bem a criminologia midiática, o processo penal do espetáculo e a influência que a mídia exerceu na “plateia”.
Ângela Diniz foi assassinada e Doca estava foragido. Os advogados de dele, cientes da grande repercussão do caso, viram na mídia um meio de “limpar” a imagem do seu cliente criando um enredo em que, Doca seria o bom moço que foi levado uma paixão avassaladora por Ângela. Dessa forma a mídia divulgou a vida conturbada de Ângela, que sempre foi alvo da sociedade conservadora na época do crime. Podendo perceber que antes mesmo do processo ser julgado, a sociedade já estava opinando e acompanhando o caso de homicídio da socialite Ângela.
E como um espetáculo, a mídia acompanhou e propagou história narrada por Doca no primeiro julgamento, dividindo as pessoas em torcidas dividida naqueles que viam Doca como herói e Ângela era alguém que pelo seu modo de viver, que não era aceita pela sociedade conservadora, era merecedora de morte, e o outro lado queria que Doca fosse punido. Esse discurso era reforçado e complementado pela defesa, e assim influenciando o júri que praticamente absorveu o assassino
No segundo julgamento a pena foi mais severa. O judiciário, motivado pela pressão de movimentos feministas da época que desnaturalizava a violência contra a mulher, aplicou uma pena de 15 anos de reclusão a Doca.
A impressa que antes tratava o crime como resultado de um comportamento da vítima que ocasionou sua morte, agora passa a fazer várias críticas a decisão do primeiro julgamento, gerando um clima de impunidade e insegurança para as mulheres brasileira. Dessa forma, percebe-se a discrepância que existe entre a decisão do primeiro julgamento para o segundo, em menos de 2 anos, a visão social mudou e a mídia com o poder de divulgação em massa teve papel fundamental nos julgamentos.
Tal acontecimento evidencia que a mídia tem um poder propagação da grande massa de suas ideologias, que acaba construindo o senso comum, influenciando a sociedade. Essa influência afeta as decisões dos magistrados que buscam responder a sociedade, sem se preocupar com os direitos e garantias estabelecidas pela Constituição Federal de 1988. E mesmo que o processo penal tenha mecanismos de proteção ao réu, advindos do devido processo legal, mostram-se insuficiente, afetando sua eficácia.
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[1]Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected]
[2] Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UBC/DF; Doutorando em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail: [email protected]
Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIEIRA, Gabriela Maria Lima Araújo. Julgamento Doca Street: influência da mídia no processo penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jun 2022, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58665/julgamento-doca-street-influncia-da-mdia-no-processo-penal-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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