RESUMO: A cadeia de custódia trata-se de garantia do réu no processo penal, que visa a garantir a higidez da prova produzida. O presente trabalho buscará analisar o seu conceito, etapas e consequências da quebra da cadeia de custódia, analisando especialmente o posicionamento recente do Superior Tribunal de Justiça acerca deste ponto, sob a ótica dos princípios constitucionais afetos à matéria, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a inadmissibilidade das provas ilícitas.
Palavras-chave: cadeia de custódia, quebra da cadeia de custódia, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, inadmissibilidade das provas ilícitas.
ABSTRACT: The chain of custody is the defendant's guarantee in the criminal process, which aims to guarantee the soundness of the evidence produced.
The present work will seek to analyze its concept, stages and consequences of breaking the chain of custody, especially analyzing the recent position of the Superior Court of Justice on this point, from the perspective of constitutional principles related to the matter, such as due process of law, contradictory, the broad defense and the inadmissibility of illegal evidence.
Keywords: chain of custody, breaking of the chain of custody, due process of law, contradictory, full defense, inadmissibility of illegal evidence.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo visa a não só apresentar o instituto da cadeia de custódia, inserido no Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/2019, mas já há muito debatido pela doutrina, como também destacar a salutar importância da sua estrita observância e as consequências causadas pela sua quebra.
Para tanto, será feita uma análise dos conceitos dados pela doutrina e pela lei de cadeia de custódia, um apanhado de cada fase prevista legalmente e uma análise das decisões e fundamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça acerca das consequências causadas pela quebra da cadeia de custódia.
Na análise, serão considerados os direitos e garantias fundamentais relacionados diretamente ao tema aqui abordado, especialmente o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a inadmissibilidade de utilização das provas ilícitas.
2. Noções introdutórias acerca da cadeia de custódia
A cadeia de custódia, nas palavras de Renato Brasileiro, deve ser entendida como “um mecanismo garantidor da autenticidade das evidências coletadas e examinadas, assegurando que correspondem ao caso investigado, sem que haja lugar para qualquer tipo de adulteração. Funciona, pois, como a documentação formal de um procedimento destinado a manter e documentar a história cronológica de uma evidência, evitando-se, assim, eventuais interferências internas e externas capazes de colocar em dúvida o resultado da atividade probatória” (LIMA, 2019, p. 625)
Nesse sentir, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 77.836/PA, afirmou que a cadeia de custódia “consiste no caminho que deve ser percorrido pela prova até a sua análise pelo magistrado, sendo certo que qualquer interferência indevida durante esse trâmite processual pode resultar na sua imprestabilidade”.
Pretende-se, com a cadeia de custódia, preservar a idoneidade dos objetos e bens apreendidos, evitando-se qualquer dúvida a respeito da sua origem e do caminho percorrido durante a persecução penal. Por consequência, deve a acusação, em juízo, ao apresentar evidências físicas, a exemplo de arma do crime, demonstrar que o objeto apresentado é o mesmo que foi apreendido na data dos fatos (LIMA, 2019, p. 625-626).
Foi nesse contexto de substancial proteção das provas colhidas que o legislador, por meio da Lei nº 13.964/2019 (Pacote anticrime), incluiu no Código de Processo Penal os arts. 158-A, 158-B, 158-C, 158-D, 158-E e 158-F, abordando, detalhadamente, o caminho a ser observado desde o reconhecimento de um elemento como de potencial interesse para a produção da prova, até a liberação do vestígio.
O art. 158-A, em harmonia com os ensinamentos doutrinários que tratavam sobre o tema, definiu a cadeia de custódia “como o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse a manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”.
Seguidamente, o art. 158-B discrimina, etapa por etapa, o rastreamento da cadeia de custódia, conceituando cada fase pormenorizadamente.
Art. 158-B. A cadeia de custódia compreende o rastreamento do vestígio nas seguintes etapas: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - reconhecimento: ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - isolamento: ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e preservar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local de crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III - fixação: descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito, e a sua posição na área de exames, podendo ser ilustrada por fotografias, filmagens ou croqui, sendo indispensável a sua descrição no laudo pericial produzido pelo perito responsável pelo atendimento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV - coleta: ato de recolher o vestígio que será submetido à análise pericial, respeitando suas características e natureza; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
V - acondicionamento: procedimento por meio do qual cada vestígio coletado é embalado de forma individualizada, de acordo com suas características físicas, químicas e biológicas, para posterior análise, com anotação da data, hora e nome de quem realizou a coleta e o acondicionamento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VI - transporte: ato de transferir o vestígio de um local para o outro, utilizando as condições adequadas (embalagens, veículos, temperatura, entre outras), de modo a garantir a manutenção de suas características originais, bem como o controle de sua posse; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VII - recebimento: ato formal de transferência da posse do vestígio, que deve ser documentado com, no mínimo, informações referentes ao número de procedimento e unidade de polícia judiciária relacionada, local de origem, nome de quem transportou o vestígio, código de rastreamento, natureza do exame, tipo do vestígio, protocolo, assinatura e identificação de quem o recebeu; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VIII - processamento: exame pericial em si, manipulação do vestígio de acordo com a metodologia adequada às suas características biológicas, físicas e químicas, a fim de se obter o resultado desejado, que deverá ser formalizado em laudo produzido por perito; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IX - armazenamento: procedimento referente à guarda, em condições adequadas, do material a ser processado, guardado para realização de contraperícia, descartado ou transportado, com vinculação ao número do laudo correspondente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
X - descarte: procedimento referente à liberação do vestígio, respeitando a legislação vigente e, quando pertinente, mediante autorização judicial. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
(grifo nosso)
O Código de Processo Penal dispõe ainda acerca da necessidade de a coleta de vestígios ocorrer, preferencialmente, por perito oficial, bem como a necessidade de todos os vestígios coletados serem tratados como descrito na lei.
Não consta, entretanto, na lei processual penal, quais seriam as consequências processuais nas hipóteses de quebra da cadeia de custódia. Sendo assim, ficou a cargo dos Tribunais Superiores, analisando as disposições constitucionais e legais vigentes, decidir quais seriam as consequências do desrespeito a cadeia de custódia no processo penal.
3. Consequências processuais da quebra da cadeia de custódia (break in the chain of custody)
Antes de ser editada a Lei nº 13.964/2019, o Superior Tribunal de Justiça proferiu julgamentos reconhecendo o instituto da cadeia de custódia e a inadmissibilidade da prova em caso de sua quebra, consoante verifica-se nos julgamentos do HC 160.662/RJ.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. UTILIZAÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO. NÃO CONHECIMENTO DO WRIT. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO E TELEMÁTICO AUTORIZADA JUDICIALMENTE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA COM RELAÇÃO A UM DOS PACIENTES. PRESENÇA DE INDÍCIOS RAZOÁVEIS DA PRÁTICA DELITUOSA. INDISPENSABILIDADE DO MONITORAMENTO DEMONSTRADA PELO MODUS OPERANDI DOS DELITOS. CRIMES PUNIDOS COM RECLUSÃO. ATENDIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 2º, I A III, DA LEI 9.296/96. LEGALIDADE DA MEDIDA. AUSÊNCIA DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRALIDADE DA PROVA PRODUZIDA NA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E TELEMÁTICA. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DA PARIDADE DE ARMAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO.
(...)
VII - A intimidade e a privacidade das pessoas não constituem direitos absolutos, podendo sofrer restrições, quando presentes os requisitos exigidos pela Constituição (art. 5º, XII) e pela Lei 9.296/96: a existência de indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, a impossibilidade de produção da prova por outros meios disponíveis e constituir o fato investigado infração penal punida com pena de reclusão, nos termos do art. 2º, I a III, da Lei 9.296/96, havendo sempre que se constatar a proporcionalidade entre o direito à intimidade e o interesse público.
VIII - O Superior Tribunal de Justiça tem decidido no sentido de "ser legal, ex vi do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 9.296/96, a interceptação do fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática, se for realizada em feito criminal e mediante autorização judicial, não havendo qualquer afronta ao art. 5º, XII, da CF" (STJ, RHC 25.268/DF, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (Desembargador Convocado do TJ/RS), SEXTA TURMA, DJe de 11/04/2012).
IX - A decisão que determinou a quebra de sigilo telefônico dos envolvidos na prática criminosa - cujos fundamentos foram incorporados à decisão de quebra de sigilo telemático - encontra-se devidamente fundamentada, à luz do art. 2º, I a III, da Lei 9.296/96, revelando a necessidade da medida cautelar, ante as provas até então coligidas, em face de indícios razoáveis de autoria ou de participação dos acusados em infração penal (art. 2º, I, da Lei 9.296/96), para a apuração dos delitos de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, crime contra a ordem tributária e formação de quadrilha, punidos com reclusão (art. 2º, III, da Lei 9.296/96), demonstrando que a prova cabal do envolvimento dos investigados na alegada trama criminosa, para complementar as provas até então recolhidas, não poderia ser obtida por outros meios que não a interceptação telefônica, especialmente a prova do liame subjetivo entre os investigados, para identificação, com precisão, da atividade desenvolvida pelos alvos principais, o modus operandi utilizado e as pessoas a eles associadas, em intrincado e simulado grupo de empresas nacionais e estrangeiras, destinado a ocultar seu verdadeiro controlador, cujas negociações revestiam-se de clandestinidade, valendo lembrar que, em casos análogos, é conhecida a dificuldade enfrentada pela Polícia Federal para desempenhar suas investigações, uma vez que se trata de suposto grupo organizado, com atuação internacional e dotado de poder econômico (art. 2º, II, da Lei 9.296/96).
X - Apesar de ter sido franqueado o acesso aos autos, parte das provas obtidas a partir da interceptação telemática foi extraviada, ainda na Polícia, e o conteúdo dos áudios telefônicos não foi disponibilizado da forma como captado, havendo descontinuidade nas conversas e na sua ordem, com omissão de alguns áudios.
XI - A prova produzida durante a interceptação não pode servir apenas aos interesses do órgão acusador, sendo imprescindível a preservação da sua integralidade, sem a qual se mostra inviabilizado o exercício da ampla defesa, tendo em vista a impossibilidade da efetiva refutação da tese acusatória, dada a perda da unidade da prova.
XII - Mostra-se lesiva ao direito à prova, corolário da ampla defesa e do contraditório - constitucionalmente garantidos -, a ausência da salvaguarda da integralidade do material colhido na investigação, repercutindo no próprio dever de garantia da paridade de armas das partes adversas.
XIII - É certo que todo o material obtido por meio da interceptação telefônica deve ser dirigido à autoridade judiciária, a qual, juntamente com a acusação e a defesa, deve selecionar tudo o que interesse à prova, descartando-se, mediante o procedimento previsto no art. 9º, parágrafo único, da Lei 9.296/96, o que se mostrar impertinente ao objeto da interceptação, pelo que constitui constrangimento ilegal a seleção do material produzido nas interceptações autorizadas, realizada pela Polícia Judiciária, tal como ocorreu, subtraindo-se, do Juízo e das partes, o exame da pertinência das provas colhidas. Precedente do STF.
XIV - Decorre da garantia da ampla defesa o direito do acusado à disponibilização da integralidade de mídia, contendo o inteiro teor dos áudios e diálogos interceptados.
(...)
XVII - Ordem concedida, de ofício, para anular as provas produzidas nas interceptações telefônica e telemática, determinando, ao Juízo de 1º Grau, o desentranhamento integral do material colhido, bem como o exame da existência de prova ilícita por derivação, nos termos do art. 157, §§ 1º e 2º, do CPP, procedendo-se ao seu desentranhamento da Ação Penal 2006.51.01.523722-9.
(grifo nosso)
Não obstante o entendimento acima transcrito, após a edição do Pacote Anticrime o Superior Tribunal de Justiça preferiu decisão afirmando que as irregularidades constantes da cadeia de custódia devem ser sopesadas pelo magistrado com todos os elementos produzidos na instrução, a fim de aferir se a prova é confiável. Assim, de acordo com o entendimento da Corte Cidadã, a quebra da cadeia de custódia não leva, obrigatoriamente, à ilicitude ou ilegitimidade da prova, devendo ser analisado o caso concreto.
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O NARCOTRÁFICO. QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA. AUSÊNCIA DE LACRE. FRAGILIDADE DO MATERIAL PROBATÓRIO RESIDUAL. ABSOLVIÇÃO QUE SE MOSTRA DEVIDA. ASSOCIAÇÃO PARA O NARCOTRÁFICO. HIGIDEZ DA CONDENAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.
1. A superveniência de sentença condenatória não tem o condão de prejudicar a análise da tese defensiva de que teria havido quebra da cadeia de custódia da prova, em razão de a substância entorpecente haver sido entregue para perícia sem o necessário lacre. Isso porque, ao contrário do que ocorre com a prisão preventiva, por exemplo - que tem natureza rebus sic standibus, isto é, que se caracteriza pelo dinamismo existente na situação de fato que justifica a medida constritiva, a qual deve submeter-se sempre a constante avaliação do magistrado -, o caso dos autos traz hipótese em que houve uma desconformidade entre o procedimento usado na coleta e no acondicionamento de determinadas substâncias supostamente apreendidas com o paciente e o modelo previsto no Código de Processo Penal, fenômeno processual, esse, produzido ainda na fase inquisitorial, que se tornou estático e não modificável e, mais do que isso, que subsidiou a própria comprovação da materialidade e da autoria delitivas.
2. Segundo o disposto no art. 158-A do CPP, "Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte".
3. A autenticação de uma prova é um dos métodos que assegura ser o item apresentado aquilo que se afirma ele ser, denominado pela doutrina de princípio da mesmidade.
4. De forma bastante sintética, pode-se afirmar que o art. 158-B do CPP detalha as diversas etapas de rastreamento do vestígio:
reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte. O art. 158-C, por sua vez, estabelece o perito oficial como sujeito preferencial a realizar a coleta dos vestígios, bem como o lugar para onde devem ser encaminhados (central de custódia). Já o art. 158-D disciplina como os vestígios devem ser acondicionados, com a previsão de que todos os recipientes devem ser selados com lacres, com numeração individualizada, "de forma a garantir a inviolabilidade e a idoneidade do vestígio".
5. Se é certo que, por um lado, o legislador trouxe, nos arts. 158-A a 158-F do CPP, determinações extremamente detalhadas de como se deve preservar a cadeia de custódia da prova, também é certo que, por outro, quedou-se silente em relação aos critérios objetivos para definir quando ocorre a quebra da cadeia de custódia e quais as consequências jurídicas, para o processo penal, dessa quebra ou do descumprimento de um desses dispositivos legais. No âmbito da doutrina, as soluções apresentadas são as mais diversas.
6. Na hipótese dos autos, pelos depoimentos prestados pelos agentes estatais em juízo, não é possível identificar, com precisão, se as substâncias apreendidas realmente estavam com o paciente já desde o início e, no momento da chegada dos policiais, elas foram por ele dispensadas no chão, ou se as sacolas com as substâncias simplesmente estavam próximas a ele e poderiam eventualmente pertencer a outro traficante que estava no local dos fatos.
7. Mostra-se mais adequada a posição que sustenta que as irregularidades constantes da cadeia de custódia devem ser sopesadas pelo magistrado com todos os elementos produzidos na instrução, a fim de aferir se a prova é confiável. Assim, à míngua de outras provas capazes de dar sustentação à acusação, deve a pretensão ser julgada improcedente, por insuficiência probatória, e o réu ser absolvido.
9. O fato de a substância haver chegado para perícia em um saco de supermercado, fechado por nó e desprovido de lacre, fragiliza, na verdade, a própria pretensão acusatória, porquanto não permite identificar, com precisão, se a substância apreendida no local dos fatos foi a mesma apresentada para fins de realização de exame pericial e, por conseguinte, a mesma usada pelo Juiz sentenciante para lastrear o seu decreto condenatório. Não se garantiu a inviolabilidade e a idoneidade dos vestígios coletados (art. 158-D, § 1º, do CPP). A integralidade do lacre não é uma medida meramente protocolar; é, antes, a segurança de que o material não foi manipulado, adulterado ou substituído, tanto que somente o perito poderá realizar seu rompimento para análise, ou outra pessoa autorizada, quando houver motivos (art. 158-D, § 3º, do CPP).
9. Não se agiu de forma criteriosa com o recolhimento dos elementos probatórios e com sua preservação; a cadeia de custódia do vestígio não foi implementada, o elo de acondicionamento foi rompido e a garantia de integridade e de autenticidade da prova foi, de certa forma, prejudicada. Mais do que isso, sopesados todos os elementos produzidos ao longo da instrução criminal, verifica-se a debilidade ou a fragilidade do material probatório residual, porque, além de o réu haver afirmado em juízo que nem sequer tinha conhecimento da substância entorpecente encontrada, ambos os policiais militares, ouvidos sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, não foram uníssonos e claros o bastante em afirmar se a droga apreendida realmente estava em poder do paciente ou se a ele pertencia.
10. Conforme deflui da sentença condenatória, não houve outras provas suficientes o bastante a formar o convencimento judicial sobre a autoria do crime de tráfico de drogas que foi imputado ao acusado. Não é por demais lembrar que a atividade probatória deve ser de qualidade tal a espancar quaisquer dúvidas sobre a existência do crime e a autoria responsável, o que não ocorreu no caso dos autos. Deveria a acusação, diante do descumprimento do disposto no art. 158-D, § 3º, do CPP, haver suprido as irregularidades por meio de outros elementos probatórios, de maneira que, ao não o fazer, não há como subsistir a condenação do paciente no tocante ao delito descrito no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006.
11. Em um modelo processual em que sobrelevam princípios e garantias voltadas à proteção do indivíduo contra eventuais abusos estatais que interfiram em sua liberdade, dúvidas relevantes hão de merecer solução favorável ao réu (favor rei).
12. Não foi a simples inobservância do procedimento previsto no art. 158-D, § 1º, do CPP que induz a concluir pela absolvição do réu em relação ao crime de tráfico de drogas; foi a ausência de outras provas suficientes o bastante a formar o convencimento judicial sobre a autoria do delito a ele imputado. A questão relativa à quebra da cadeia de custódia da prova merece tratamento acurado, conforme o caso analisado em concreto, de maneira que, a depender das peculiaridades da hipótese analisada, pode haver diferentes desfechos processuais para os casos de descumprimento do assentado no referido dispositivo legal.
13. Permanece hígida a condenação do paciente no tocante ao crime de associação para o tráfico de drogas (art. 35 da Lei n. 11.343/2006), porque, além de ele próprio haver admitido, em juízo, que atuava como olheiro do tráfico de drogas e, assim, confirmando que o local dos fatos era dominado pela facção criminosa denominada Comando Vermelho, esta Corte Superior de Justiça entende que, para a configuração do referido delito, é irrelevante a apreensão de drogas na posse direta do agente.
14. Porque proclamada a absolvição do paciente em relação ao crime de tráfico de drogas, deve ser a ele assegurado o direito de aguardar no regime aberto o julgamento da apelação criminal. Isso porque era tecnicamente primário ao tempo do delito, possuidor de bons antecedentes, teve a pena-base estabelecida no mínimo legal e, em relação a esse ilícito, foi condenado à reprimenda de 3 anos de reclusão (fl. 173). Caso não haja recurso do Ministério Público contra a sentença condenatória (ou, se houver e ele for improvido) e a sanção permaneça nesse patamar, fica definitivo o regime inicial mais brando de cumprimento de pena.
15. Ordem concedida, a fim de absolver o paciente em relação à prática do crime previsto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006, objeto do Processo n. 0219295-36.2020.8.19.0001. Ainda, fica assegurado ao réu o direito de aguardar no regime aberto o julgamento do recurso de apelação.
(grifo nosso)
A corrente adotada pelo Superior Tribunal de Justiça tem respaldo doutrinário. Eis os ensinamentos de Leonardo Barreto Moreira Alves
É dizer, a quebra da cadeia de custódia não resulta, necessariamente, em prova ilícita ou ilegítima, interferindo apenas na valoração dessa prova pelo julgador. A irregularidade na cadeia de custódia reduzirá a credibilidade da prova, diminuirá o seu valor, passando-se a ser exigido do
juiz um reforço justificativo caso entenda ser possível confiar na integridade e na autenticidade da prova e resolva utilizá-la na formação do seu convencimento. Enfim, “a quebra da cadeia de custódia não significa, de forma absoluta, a inutilidade da prova colhida. É preciso não se esquecer que a cadeia de custódia existe não para provar algo, mas para garantir uma maior segurança – dentro do possível – à colheita, ao armazenamento e à análise pericial da prova [...]. Desta forma, a análise do elemento coletado e periciado, se houver quebra dos procedimentos de cadeia de custódia, interferirá apenas e tão somente na valoração dessa prova pelo julgador. (Alves, 2021, p. 754)
Desprestigiou-se o entendimento de parte da doutrina que defendia como consequência imediata da quebra da cadeia de custódia a ilicitude da prova, com a sua exclusão, assim como das demais provas derivadas dela.
O posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça parece-me estar em desarmonia com arcabouço principiológico trazido pela Constituição Federal de 1988, bem como pelas próprias disposições do Código de Processo Penal.
Isso porque a CF/1988, em seu art. 5º, incisos LIV, LV e LVI, garante a todos o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, e afirma a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
Em linha idêntica ao disposto constitucionalmente, o Código de Processo Penal, precisamente em seu art. 157, afirma ser inadmissível as provas ilícitas, devendo elas serem desentranhadas do processo.
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.(Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
À vista do fundamento constitucional acima apresentado, somado as disposições do Código de Processo Penal acerca da cadeia de custódia e da inadmissibilidade das provas ilícitas, mostra-se muito mais acertado o entendimento de que a quebra da cadeia de custódia, por si só, deve gerar a nulidade processual.
Isso porque “surgirá inevitável dúvida quanto ao grau de confiabilidade das evidências colhidas pelos órgãos persecutórios, dúvida esta que há de ser interpretada em favor do acursado à luz da regra probatória do in dubio pro reu, daí porque tal evidência deve ser excluída dos autos” (LIMA, 2019, p. 626).
O próprio Superior Tribunal de Justiça afirma que “em um modelo processual em que sobrelevam princípios e garantias voltadas à proteção do indivíduo contra eventuais abusos estatais que interfiram em sua liberdade, dúvidas relevantes hão de merecer solução favorável ao réu (favor rei)”.
De mais a mais, a garantia do devido processo legal certamente não abarca a existência de ocorrências em desrespeito à lei, especialmente considerando o alto grau de detalhamento dado pelo legislador no procedimento de preservação das provas produzidas.
Outrossim, mesmo inexistindo na lei qual seria a consequência da quebra da cadeia de custódia, o entendimento de que a não observância do procedimento legal viola o princípio constitucional da separação dos poderes, pois o Poder Judiciário, malgrado a indicação pelo legislador de todas as etapas a serem observadas, está afirmando a possibilidade de não se respeitar o caminho indicado pelo Poder Legislativo no exercício de sua função típica de legislar.
Não se deve esquecer, ademais, a condição de vulnerável do réu no processo penal, especialmente por estar diante do Estado, que possui forte aparato, devidamente aparelhado, para promover a acusação. Nesse sentir, a relativização de garantias constitucionais e legais garantidas ao réu agrava ainda mais a sua condição de vulnerável, devendo, portanto, serem repudiadas.
Frise-se, por fim, que não se está exigindo dos órgãos de acusação qualquer ônus desproporcional, mas, unicamente, o respeito aos procedimentos estabelecidos pelo legislador, para que, desse modo, o acusado possa exercer o seu direito de defesa.
CONCLUSÕES
Da exposição feita anteriormente, verifica-se a inexistência de afinidade entre a corrente adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e as garantias constitucionais previstas no art. 5º da Constituição Federal, em especial o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a inadmissibilidade de provas obtidas por meio ilícito.
Outrossim, há igual afronta às disposições do Código de Processo Penal, especialmente com relação as alterações promovidas pelo Pacote Anticrime, que esmiuçam o procedimento a ser adotado para respeito a cadeia de custódia.
No contexto das disposições constitucionais e legais vigentes, o respeito à cadeia de custódia deve ser visto direito subjetivo do réu no processo penal, não mero procedimento a ser observado, de modo a ser admissível, a depender do caso concreto, as provas produzidas em seu desrespeito.
Deve-se priorizar a defesa do vulnerável no processo penal, o réu, mormente perante as condições abastadas que o Estado possui para acusação.
REFERÊNCIAS
Alves, Leonardo Barreto Moreira, Teresa. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 08 de junho 2022.
BRASIL. Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 08 de junho 2022.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. HC 653515-RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 23/11/2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28HC.clas.+e+%40num%3D%22653515%22%29+ou+%28HC+adj+%22653515%22%29.suce. Acesso em 09 de junho de 2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 160.662/RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Assussete Magalhães, DJe 17/03/2014. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?id=1335748. Acesso em: 09 de junho de 2022.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2019.
Pós-Graduado em Direito Público e em Direito Processual pelo Instituto Elpídio Donizetti.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTA, Diego Souza Carvalho. A cadeia de custódia como garantia do réu no processo penal: análise das decisões do Superior Tribunal de Justiça acerca das consequências da quebra da cadeia de custódia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58715/a-cadeia-de-custdia-como-garantia-do-ru-no-processo-penal-anlise-das-decises-do-superior-tribunal-de-justia-acerca-das-consequncias-da-quebra-da-cadeia-de-custdia. Acesso em: 24 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
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