RESUMO: Este trabalho faz uma análise do procedimento engendrado pelo legislador para a fiscalização do cumprimento do acordo de não persecução penal - ANPP - no juízo de execução penal. Trata-se, essencialmente, de verificar se a forma de execução do ANPP prevista no Código de Processo Penal - CPP - é adequada/necessária. Parte-se da análise das razões de criação do ANPP como mais um mecanismo da justiça criminal negocial a fim de acarear, criticamente, por meio do método zetético, seu fundamento de existência com sua forma de fiscalização de cumprimento (Art. 28-A, §6º, CPP). Para tanto discorrer-se-á, ainda que perfunctoriamente, acerca dos princípios da eficiência, economia, celeridade e razoável duração do processo, bem como comparar-se-á a forma de fiscalização do cumprimento do ANPP com a dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, tudo com vistas a se aferir a (in)eficiência, (in)adequação e (des)necessidade da determinação legal de que o ANPP seja fiscalizado perante o juízo de execução penal.
PALAVRAS-CHAVE: Acordo de Não Persecução Penal (Art. 28-A, CPP). Fiscalização do cumprimento. Juízo de execução. Ineficiência.
ABSTRACT: This work analyzes the oversight procedure created by the legislator to the non-prosecution agreement - ANPP - in the enforcement court. It is essentially about checking whether the form of “execution” of the ANPP provided for in the Code of Criminal Procedure - CPP - is appropriate/necessary. It starts from the analysis of the ANPP’s foundations as another mechanism of the negotiated criminal justice to critically examine its basis of existence with its oversighting procedure (Art. 28-A, §6º, CPP). To this end, it discusses, albeit perfunctorily, the principles of efficiency, economy, celerity and reasonable duration of the process, as well as comparing the ANPP’s oversight procedure with the criminal mechanisms of negotiation of the Law nº 9.099/95, all with a view to analyze the (in)efficiency, (in)adequacy and (un)necessity of the legal determination that the ANPP shall be supervised on the criminal enforcement court.
KEYWORDS: Non-Prosecution Agreement (Art. 28-A, CPP). Fulfillment oversighting. Enforcement court. Inefficiency.
O fenômeno da justiça criminal negocial (ou consensual) avançou pelo mundo e não foi diferente no Brasil: o direito penal, na sociedade de risco, se expandiu, mas a persecução criminal pelo Estado, em sua necessária lentidão diligente, não conseguiu acompanhá-lo, fazendo com que acordos supressores de fases processuais surgissem como opção sancionatória do indivíduo imputado, com seu consentimento acerca de sanções negociadas e renúncia de direitos (Vasconcellos, 2022).
Também como consequência dessa disparidade entre a expansão do direito penal e da persecução criminal é que o Sistema de Justiça Criminal brasileiro não vai bem. A cifra de infrações penais só aumenta, o que é um problema posto e as alternativas para soluções são buscadas obstinadamente por aqueles que têm compromisso com o aperfeiçoamento do Sistema Penal brasileiro, sistema que, caso não seja aperfeiçoado, tende a deteriorar-se a um nível intolerável (Cabral, 2023).
Na tendência da expansão da justiça negocial, surgiram no Brasil, ainda na década de 1990, com a promulgação da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95), os primeiros mecanismos que, nas lições de Vasconcellos (2022, p. 17), se “aderem cristalinamente ao desenho conceitual da justiça criminal negocial”: os institutos despenalizadores da transação penal e suspensão condicional do processo, previstos, respectivamente, nos artigos 76 e 89 daquela lei.
Após cerca de duas décadas de consolidação dos institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/95 é que, seguindo a tendência já ditada por eles, surge, dentre outros mecanismos da justiça criminal negocial, o denominado Acordo de Não Persecução Penal – ANPP, inicialmente em Resoluções editadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP (Resoluções do CNMP de n.º 181/2017 e n.º 183/2018) e, posteriormente, por meio da Lei n.º 13.964/19 (“Pacote Anticrime”), que, dentre outras coisas, alterou o Código de Processo Penal para inserir o art. 28-A e passar a disciplinar o ajuste (Rocha, 2021).
Contudo, diferentemente do procedimento pragmático previsto pela Lei 9.099/95 para a pactuação e cumprimento de seus institutos despenalizadores, o procedimento engendrado pelo Legislador ao ANPP é bem mais intrincado, tendo, quiçá, como diferença mais marcante em relação aos outros institutos, o cumprimento da avença no Juízo de Execução, e não no mesmo feito em que foi firmada, o que aparenta, numa análise perfunctória, ser desnecessariamente ineficiente, custoso e moroso. É o que se busca examinar mais cautelosa e meticulosamente com este trabalho.
2 FUNDAMENTOS DA CRIAÇÃO DO ANPP
Mesmo tendo sido revestido de legitimidade com sua inserção no diploma processual penal e agora seja algo posto na realidade prática da persecução das conceituadas infrações de menor e médio potencial ofensivo, a doutrina ainda debate acerca de temas diversos relacionados ao ANPP, apontando suas falhas e propondo “critérios e regramentos para sua limitação e racionalização” (Vasconcellos, 2022, p. 12).
Não obstante, como leciona Cabral (2023), a realização de ajustes negociais na esfera criminal no Brasil, ainda que não seja a solução ou alternativa exclusiva e suficiente para a resolução dos graves problemas enfrentados pelo sistema penal brasileiro, mostra-se imprescindível, urgente, a bem da verdade, para o necessário aprimoramento (ou socorro) de como a persecução penal é realizada neste país.
Entre os fatores que levaram o legislador a inserir o art. 28-A no Código de Processo Penal, estabelecendo agora formalmente em lei a possibilidade de o Ministério Público celebrar o ANPP com investigados, está a demanda por soluções eficientes, ágeis, aos procedimentos criminais, ampliando a gama de mecanismos da justiça criminal negocial brasileira e filtrando os feitos de maior relevância, o que já vinha acontecendo desde a promulgação da Lei n.º 9.099/95, com seus institutos despenalizadores, considerados “irmãos mais velhos” do ANPP (Cabral, 2023).
É dizer, o ANPP vem na esteira da necessidade de “desafogar o Judiciário” (Mendonça, 2020, p. 31) e de se alcançar soluções céleres e efetivas ao sistema penal brasileiro, que passa por uma crise devido ao grande número de casos em apuração, que só aumentam, a fim de ampliar os mecanismos da justiça criminal negocial, reduzir a desumana carga de trabalho e aprimorar o sistema penal (Cabral, 2023).
Não que se deva aceitar acriticamente a alarmante expansão dos mecanismos negociais na justiça criminal apenas por ser a alternativa menos custosa ao enfrentamento de sua crise vivenciada, que tem por pano de fundo a “crescente expansão do controle social por meio do Direito Penal” (Vasconcellos, 2022, p. 238).
Contudo, como dito alhures, o ANPP é agora algo posto, perene, e o que se pode fazer é estabelecer medidas para redução de danos, que, na prática, destaca-se, pois relevante ao tema deste trabalho, têm incidência quase exclusivamente na primeira fase do ANPP – de negociação extrajudicial –, isto é, até a homologação do ajuste pelo juiz das garantias, não havendo maiores consternações doutrinárias relacionadas à fase de execução do ajuste.
3 DOS PRINCÍPIOS DA CELERIDADE, EFICIÊNCIA, ECONOMIA PROCESSUAL, RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E A PERTINÊNCIA DE SUA APLICAÇÃO NA FASE DE EXECUÇÃO DO ANPP
Sendo o ANPP o produto (menos custoso) da busca por soluções céleres e efetivas para a crise inflacionária vivenciada pela justiça criminal, é de se esperar que, uma vez homologado em juízo, deva ser operado, fiscalizado e cumprido de forma eficiente, célere e da forma menos onerosa possível aos envolvidos (compromissário, Ministério Público e Juízo fiscalizador) e ao Estado.
Reconhece-se que há de se ter cuidado ao se manejar num mesmo parágrafo o ANPP e os princípios da celeridade, eficiência e economia. Isso porque a fase de negociação do ANPP deve seguir a estrita legalidade, respeitando o direito de defesa do investigado, limitando-se a discricionariedade do órgão acusador em relação às condições do ajuste, entre outras cautelas apontadas pela doutrina (Vasconcellos, 2022).
Não obstante, como já mencionado de passagem alhures, as medidas soerguidas pela doutrina para a redução de danos na aplicação do ANPP têm incidência quase exclusiva na fase de negociação (primeira fase), ressalvada, na fase de execução (segunda fase), a medida de intimar o compromissário que não vem cumprindo o ajuste para lhe oportunizar que justifique a inadimplência antes da rescisão do ANPP.
Dessarte, pensa-se não haver problemas em se almejar que a fase de execução do ANPP se dê forma célere, efetiva e econômica. Afinal, uma vez realizado o controle judicial efetivo da fase de negociação na ocasião da homologação judicial do acordo (Art. 28-A, §4º, CPP), torna-se presumida a lisura do ajuste e é de interesse do réu se ver livre o mais breve possível da fonte de sofrimento e desgaste psicológico que é ser investigado em inquérito policial e ao se tornar compromissário em ANPP.
Nesse diapasão, Lopes Jr. (2022, p. 57) leciona que a celeridade processual deve ser vista pelo escopo de abreviar o sofrimento do réu, isto é, “o processo deve ser mais célere para evitar o sofrimento desnecessário de quem a ele está submetido”. O autor expõe ainda que o tempo exerce uma função punitiva no processo, “uma nova pena processual decorrente desse atraso” (Lopes Jr., 2022, p. 57). Considerando o exposto alhures, pensa-se que o argumento de Lopes Jr. deve ser estendido à fase de fiscalização do cumprimento do ANPP.
Ademais disso, a celeridade na execução do acordo também é de interesse direto do réu e sua defesa porque, uma vez homologado, a passagem de tempo não mais opera em seu favor, pois o prazo prescricional fica suspenso enquanto não cumprido ou rescindido o ANPP, por disposição expressa do art. 116, inciso, IV, do Código Penal.
Não apenas célere, a fase de execução do ANPP deveria ser efetiva e econômica. Santiago (2009, p. 92) leciona que “o princípio da eficiência, embora esteja previsto para a Administração Pública em geral, aplica-se convenientemente ao processo penal”, buscando-se sempre “a produtividade e economicidade, reduzindo os desperdícios de dinheiro público, impondo-se a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional”.
Os princípios da economia processual e razoável duração do processo, extraídos do art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, sendo encontrados também no art. 62 da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n.º 9.099/95), consubstanciam que é tarefa do Estado dar a resposta jurisdicional no menor tempo e custo possíveis (Alves, 2023).
Nessa toada, os Juizados Especiais Criminais, instituídos pela Lei n.º 9.099/95, são referências em celeridade, economia e eficiência em matéria processual penal. A Lei inclusive estabelece em seu art. 2º que a simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade devem sempre orientar o processo (Brasil, 1995).
Ademais disso, os primeiros mecanismos brasileiros da justiça penal negocial (transação penal e suspensão condicional do processo) foram criados justamente pela Lei 9.099/95. Dessarte, é pertinente ao que se expõe comparar os procedimentos de fiscalização estabelecidos aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 e o engendrado pelo Legislador ao ANPP.
4 DIFERENÇAS ENTRE A FORMA DE FISCALIZAÇÃO DO CUMPRIMENTO DO ANPP E OS INSTITUTOS DESPENALIZADORES DA LEI 9.099/95
A arquitetura procedimental criada pelo legislador ao ANPP possui arestas que podem ser lapidadas para aprimorá-lo, “cabendo à doutrina denunciar a falha legislativa e promover as devidas correções técnicas” (Pinheiro; Messias, 2021, p. 107), como é o caso de sua forma de fiscalização de cumprimento (“execução”) no juízo de execução penal.
Cabral (2023) obtempera que algumas das questões de ordem prática e jurídicas surgidas com o ANPP já foram confrontadas no passado pelos institutos despenalizadores previstos na Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), o que pode ser tomado como exemplo a fim de facilitar a implementação prática do ANPP.
Há algumas semelhanças entre os institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95 – transação penal e suspensão condicional do processo – e o ANPP, dentre elas elenca-se: todos são manifestações de consenso entre os polos que integram ações criminais; todos devem ser homologados judicialmente; não implicam em aplicação de pena propriamente dita e, por fim, em caso de descumprimento pelo beneficiário, a persecução criminal deve continuar, embora em fases distintas (Cabral, 2023).
As diferenças entre os mecanismos são diversas, a exemplo: cada um tem requisitos objetivos e subjetivos diferentes; são passíveis de celebração em fases processuais distintas; no ANPP se exige a confissão prévia da prática delitiva pelo investigado, o que é dispensado nos demais institutos; o ANPP tem procedimento mais detalhado, dentre outras diferenças (Cabral, 2023).
Contudo, a principal diferença de ordem prática entre os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 e o ANPP é onde e por quem se dá a fiscalização do cumprimento (“execução”) do ajuste pactuado entre as partes: nos casos da transação penal e suspensão condicional do processo o cumprimento do ajuste é fiscalizado no mesmo processo em que os fatos delituosos são inicialmente noticiados, geralmente pela lavratura de termo circunstanciado, enquanto no ANPP é necessário duplicar o procedimento, criando um novo processo perante o juízo de execução no qual o acordo deverá ser cumprido.
Isso porque, após todas as tratativas extrajudiciais entre o Ministério Público e o investigado para firmar o ANPP, o ajuste deve ser homologado pelo juízo de conhecimento (das garantias) e, então, devolvido ao Parquet a fim de que o Órgão Ministerial o apresente perante o juízo das execuções penais para iniciar e fiscalizar seu cumprimento, nos termos do art. 28-A, §6º, do Código de Processo Penal - CPP. Veja-se o dispositivo legal:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
[...]
§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal (Brasil, 1941, art. 28-A, grifo próprio).
Enquanto pende no juízo de execução o cumprimento do ajuste, no caso do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, o §7° do art. 2º do Provimento Conjunto n° 01/2020 – CGJPJRO e CGMPRO dispõe que "O juízo de conhecimento sobrestará o inquérito, peças de informação, ou ainda a ação penal, até o recebimento da comunicação do Ministério Público do cumprimento ou descumprimento do acordo" (CGJPJRO e CGMPRO, 2020, Art. 2º). É dizer, em razão de um único ANPP, dois feitos são criados (o de origem e o de execução) e permanecem ativos até o cumprimento integral do ajuste.
Como se vê, diferentemente dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95, é notório, o ANPP teve seu procedimento bastante detalhado e, numa primeira vista, até engessado, sobretudo pela exigência legal de que o ajuste seja cumprido perante o Juízo das Execuções Penais (Art. 28-A, §6º, do CPP).
Tais disposições parecem ir contra o papel que o ANPP assumiu como alternativa promissora de, nas palavras de Cabral (2023, p. 17), “tornar o sistema mais eficiente, eficaz e adequado”, “economizando-se tempo e recursos públicos e lançando mão de uma intervenção menos traumática junto àqueles que cometeram” delitos de baixo e médio potencial ofensivo.
Afinal, é antagônico criar um mecanismo negocial que visa desafogar o sistema criminal para torná-lo mais eficiente, eficaz e adequado, mas estabelecer ao instituto procedimento de execução desnecessário e intrincado, duplicando feitos e custos econômicos e pessoais para concretizá-lo.
O dispositivo do § 6º, do art. 28-A do CPP, leciona Cabral (2023), não constava nas resoluções do CNMP que criaram o ANPP, uma vez que “somente com a nova Lei atribuiu-se a competência do juízo da execução para a fiscalização do acordo de não persecução criminal” (Cabral, 2023, p. 65). Essa inovação legislativa recebe críticas de naturezas diversas e, dentre elas, quiçá a mais pertinente, está a de sua ineficiência.
5 CRÍTICAS À FISCALIZAÇÃO DO CUMPRIMENTO DO ANPP NO JUÍZO DE EXECUÇÃO
Pode-se classificar as críticas feitas à determinação legal de que o ANPP seja fiscalizado pelo juízo de execução penal em duas ordens: a primeira tem por fundamento a natureza jurídica do instituto e a segunda, razões de ordem prática – esta é o enfoque deste trabalho, mas ambas consubstanciam a inadequação da fiscalização do ANPP no juízo de execução.
5.1 CRÍTICAS EM RAZÃO DA NATUREZA JURÍDICA DO ANPP
Pinheiro e Messias (2021) afirmam ser estranho que a Lei 13.964/19 tenha determinado a fiscalização das condições do ANPP no juízo de execução penal: a uma, porque o ANPP não tem natureza jurídica de pena, mas de negócio jurídico processual para a não denunciação; a duas, porque o ajuste não possui força executiva, isto é, caso o compromissário deseje não cumprir o acordo após sua homologação, a única possibilidade decorrente é sua denunciação, sem a possibilidade de sua execução forçada, como se sucede com sanções penais.
De forma semelhante, Cunha (2020, p. 138) também é crítico à determinação legal de que o ANPP seja cumprido perante o Juízo de Execução Penal, não por razões de eficiência, mas pela natureza do instituto, porque, explica o autor, a execução do ajuste “não tem como objeto sanção imposta pelo Estado, mas condições voluntariamente pactuadas pelas partes”, isto é, nas palavras de Pinheiro e Messias (2021, p. 107), “não há falar em ‘execução’ do acordo, mas em seu ‘cumprimento’ ou ‘fiscalização’”.
Por fim, Bizzotto e Silva (2020) destacam também que o cumprimento do ANPP no juízo de execução ainda traz consigo o problema de que deveria ser evitado que compromissários de ajuste dessa natureza convivessem com reeducandos do sistema prisional, pois geralmente são indivíduos ainda não contaminados pelo sistema de execução com quem cumpre pena privativa de liberdade.
5.2 CRÍTICAS DE ORDEM PRÁTICA: INEFICIÊNCIA, INADEQUAÇÃO E DESNECESSIDADE DA “EXECUÇÃO” DO ANPP NO JUÍZO DE EXECUÇÃO
Pinheiro e Messias (2021) asseveram que o ANPP não deveria ser executado perante o juízo de execução porque “levar o feito ao juízo da execução penal trará delonga e carga de trabalho desnecessários ao Poder Judiciário, exatamente o que se pretende evitar por meio do acordo de não persecução penal” (Pinheiro; Messias, 2021, p. 107).
No mesmo sentido, Bizzotto e Silva (2020) corroboram que o legislador andou mal quando fixou a competência do juízo de execução, uma vez que o ANPP “poderia ser tranquilamente cumprido nas varas de conhecimento, nos mesmos moldes do acordo criminal da suspensão condicional do processo. Seria mais simples e arrisca-se a dizer, mais efetivo” (Bizzotto; Silva, 2020, p. 158-159).
Ferreira e Silva (2021) compartilham de visão semelhante, ao lecionarem que a criação de procedimentos apartados parece ir contrária à vontade do legislador, porquanto “o acordo em si, em uma interpretação holística, possui como objetivo primordial destravar o andamento da justiça e não produzir mais feitos, tornando a operação complexa” (Ferreira; Silva, 2021, p. 49).
Cunha (2020, p. 138) expõe que, em casos de ANPP compostos de “condições não continuadas, como, por exemplo, acordo com a obrigação única de reparar o dano, sua fiscalização deve ficar a cargo do juiz da homologação, dispensando-se a remessa do ajuste ao juiz da execução”.
A conclusão semelhante parece ter chegado o Colégio de Procuradores de Justiça do Ministério Público do Estado de Rondônia ao editar a Resolução n.º 17/2022/CPJ, que disciplina o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) no âmbito do MPRO, a qual estabelece, em seu art. 10, §1º, hipóteses de dispensa da remessa do ANPP ao juízo de execução para sua fiscalização:
Art. 10. Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o membro do procedimento de origem distribuirá o acordo perante a Vara de Execução Penal competente, por meio do Sistema Eletrônico de Execução Unificada – SEEU, instruindo-o com a decisão homologatória, comprovando a distribuição perante o juízo de conhecimento, competindo ao membro que oficia perante o juízo de execução fiscalizá-lo, inclusive no que se refere aos incidentes ou descumprimentos.
§1º Dispensa-se a distribuição perante o SEEU quando houver a compensação entre os valores devidos e a fiança recolhida (cumprimento instantâneo) ou, por qualquer outra forma, o acordo já se dê por cumprido de imediato ou em até 90 (noventa) dias (MPRO, 2022, Art. 10, grifo próprio).
A desnecessidade da remessa dos autos ao juízo de execução também fica evidenciada pelo fato de que, embora a lei seja omissa, parcela da doutrina, como demonstra Mendonça (2020), sustenta que a redação do art. 28-A, §6º, do CPP indica que a função do juízo de execução é tão somente a de fiscalizar o cumprimento do acordo, não tendo competência para extinguir a punibilidade do compromissário ou mesmo de considerar o ajuste rescindido em caso de descumprimento, devendo, o juízo de execução, devolver o processo ao juízo que homologou o acordo para decidir nessas hipóteses.
Em comparação, seria como expedir uma carta precatória para fiscalizar o cumprimento de transação penal no caso de infrator que reside em comarca diversa da comarca onde cometeu a infração penal: o juízo deprecado (juízo de execução) tão somente fiscaliza o cumprimento, não podendo decidir sobre a extinção da punibilidade ou revogação do benefício – procedimento que, exceto em idêntica hipótese, é absolutamente despiciendo e contraproducente ao ANPP.
A execução do ajuste em autos apartados ou no juízo de execução se justificaria em casos de ANPP com investigados que residam em outra comarca ou ainda em inquéritos policiais com vários investigados, dentre os quais apenas alguns façam jus ao benefício, a fim de se evitar tumulto processual com a instauração de um feito que, ao mesmo tempo, fiscalizaria o ajuste firmado com alguns dos indiciados e perseguiria os demais.
Exigir-se que o ANPP seja fiscalizado pelo juízo de execução sem qualquer hipótese de dispensa, da forma que foi e está disposta no CPP, como bem apontado por Pinheiro e Messias (2021), traz custos econômicos e pessoais, além de delonga e carga de trabalho desnecessárias ao procedimento, aos órgãos envolvidos em sua tramitação e ao Estado, não atendendo aos princípios da eficiência, celeridade, economia processual e razoável duração do processo, indo contra justamente o que se pretendia evitar com a criação do ANPP.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas últimas décadas, o fenômeno da justiça criminal negocial avançou no Brasil: o Direito Penal se expandiu, mas a persecução criminal pelo Estado não conseguiu acompanhá-lo, fazendo com que acordos supressores de fases processuais surgissem como opção sancionatória do indivíduo imputado, com seu consentimento acerca de sanções negociadas e renúncia de direitos, o que se iniciou no Brasil por previsão constitucional expressa (Art. 98, I, CF) e, posteriormente, com a promulgação da Lei n.º 9.099/95, que prevê os institutos despenalizadores da transação penal e suspensão condicional do processo.
Nessa esteira, o fundamento de criação do ANPP, reflexo recente da expansão da justiça criminal consensual, foi a necessidade de se desafogar o Judiciário e demais órgãos envolvidos na persecução criminal de forma célere, efetiva e menos onerosa possível, reduzindo a desumana carga de trabalho daqueles órgãos e aprimorando o sistema criminal brasileiro, que passa por crise devido ao grande número de casos em apuração.
Dessarte, andou mal o Legislador ao determinar que o ANPP seja fiscalizado no juízo de execução penal (Art. 28-A, §6º, CPP), o que tornou o instituto moroso, indo na contramão dos princípios da celeridade e razoável duração do processo, além de resultar no aumento de custos e carga de trabalho desnecessários ao Poder Judiciário e Ministério Público, indo contra os princípios da eficiência e economia, justamente o que se buscava remediar por meio do ANPP, com sua função político-criminal assumida, instituto que deveria ser fiscalizado de forma mais célere, econômica, simples e efetiva nas próprias varas de conhecimento responsáveis pela homologação do acordo, como já há muito se sucede com os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95.
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VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Acordo de Não Persecução Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
graduada em Direito, assessora de juiz.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARIA, Gabriele da Silva. A execução do acordo de não persecução penal à luz dos princípios da eficiência, economia processual, celeridade e razoável duração do processo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 ago 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/66289/a-execuo-do-acordo-de-no-persecuo-penal-luz-dos-princpios-da-eficincia-economia-processual-celeridade-e-razovel-durao-do-processo. Acesso em: 23 dez 2024.
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