RESUMO. Aos procedimentos administrativos ditos litigiosos aplicam-se os mesmos princípios constitucionais do processo judicial, com especial ênfase ao devido processo legal e a ampla defesa. No entanto, uma diferença se faz clara, enquanto no primeiro ocorre a busca pela verdade real, o segundo baliza-se pela verdade material, aquela produzida nos autos.
Palavras-Chave. Processos administrativos. Litigiosos. Princípios. Verdade real.
1. Introdução
A Constituição Federal de 1988 assegura, expressamente, aos litigantes em processo administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Por isso, é importante identificar as situações litigiosas ou circunstâncias nas quais a Administração acusa alguém.
Contudo, na prática, qualquer autuação interna realizada pelas repartições públicas brasileiras recebe o rótulo de “processo administrativo”, o que pode gerar uma confusão terminológica, com consequências jurídicas.
Segundo Celso Antonio Bandeira de Melo[1], “procedimento ou processo administrativo é uma sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo”.
Assim, apesar de entender que a denominação processos é mais adequada, o renomado autor em seu “Curso de Direito Administrativo”, prefere não diferenciar os dois termos.
Odete Medauar[2] propõe a seguinte tipologia para a distinção dos processos administrativos.
Na primeira categoria estariam os processos administrativos em que há controvérsias, conflitos de interesse e estariam divididos em :
a) Processos de gestão;
b) Processos de outorga;
c) Processo de verificação ou determinação e
d) Processo de revisão.
Já na segunda categoria estariam os processos administrativos em que há acusados, ou seja, em que litigiosos. Estes podem ser de duas formas:
a) Processos internos, os processos disciplinares sobre servidores e
b) Processos externos, que visam apurar infrações, como nas sanções decorrentes do poder de polícia.
Assim, há processos administrativos que independem da manifestação do administrado e há processos em que há tal necessidade.
Naqueles em que não há sequer notificação ao administrado, não há litigiosidade.
2. Desenvolvimento
Segundo o professor Célio Rodrigues da Cruz[3], como regra, o processo administrativo litigioso surge com a impugnação do administrado – recurso administrativo– contra uma decisão que nega sua pretensão.
Assim sendo, há conseqüências relevantes quando o processo administrativo é litigioso daquele que não o é, porque quando há a lide haverá necessidade de se observar os princípios constitucionais voltados aos processos, tais quais, o devido processo legal e a ampla defesa.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho[4], a consequência jurídica que diferencia os processos litigiosos dos não-litigiosos é que a decisão nos primeiros pode tornar-se imutável, havendo portanto a coisa julgada administrativa, enquanto nos procedimentos em que não há litígio as decisões não tem tal efeito.
Para o renomado autor Celso Antonio Bandeira de Melo[5], os princípios gerais aplicáveis aos procedimentos administrativos são os seguintes: “princípio da audiência do interessado, da acessibilidade aos elementos do expediente, princípio da ampla instrução probatória, da motivação, da revisibilidade, da representação e assessoramento, da lealdade e boa-fé, da verdade material, das celeridade processual, da oficialidade, da gratuidade e do informalismo”, sendo que os nove primeiros serão aplicados a todo e qualquer procedimento e os dois últimos apenas aos procedimentos ampliativos de direito.
Como já afirmado anteriormente, há processos ou procedimentos em que há litigiosidade e outros em que não há tal característica.
Para Hely Lopes Meirelles[6], é importante fazer uma distinção entre processo administrativo propriamente dito (aquele que encerra um litígio entre a Administração e o administrado ou o servidor) e processo administrativo impropriamente dito (simples expedientes, sem qualquer controvérsia entre os interessados).
Assim, com base em tal distinção, fica claro que, naqueles em que se encerram litígios há a fase processual propriamente dita e deve haver a observância das garantias constitucionais processuais (devido processo legal), inicia-se com a impugnação do interessado, mediante apresentação de recurso.
Desta feita, conclui-se que se aplicam os princípios constitucionais de natureza processual aos processos administrativos nas circunstâncias em que os mesmos tornam-se litigiosos e essa característica ocorre a partir do momento em que há a resposta do administrado.
Para Celso Antonio Bandeira de Mello[7], o princípio da verdade material consiste em que “a Administração, ao invés de ficar restrita ao que as partes demonstrem no procedimento, deve buscar aquilo que é realmente a verdade, com prescindência do que os interessados hajam alegado e provado”.
Ora, segundo tal princípio, no processo administrativo não se deve ficar restrito a verdade formal, ou seja, aquela apresentada apenas através dos fatos e provas trazidos aos autos, mas se deve buscar a real verdade a fim de balizar seu julgamento, o que o difere, por exemplo, do processo civil, mas o aproxima do processo penal.
Segundo o texto do professor e procurador federal Célio Rodrigues da Cruz[8],
a lei não pode deixar em aberto o prazo para a prática de atos processuais, sob pena de estimular a prorrogação indefinida do processo administrativo, o que poderia retardar e tumultuar o desenvolvimento processual. Por outro lado, os aspectos processuais não podem prejudicar a busca da verdade material. A solução passa por uma análise da situação concreta e pode ser construída por meio de uma concordância prática dos valores jurídicos colidentes, observando a Constituição Federal sempre como unidade e aplicando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Nessas circunstâncias, a Administração deve ponderar os interesses e valores normativos envolvidos na situação concreta e, se for o caso, revisar de ofício o ato administrativo.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre os efeitos da revelia e da confissão no processo administrativo:
[...] A par da circunstância de ter apresentado os esclarecimentos antes mesmo da decisão administrativa proferida pelo PROCON–PR (fls. 74⁄75), ainda assim a ora recorrente foi multada e inscrita no cadastro de proteção ao consumidor. Ocorre que, consoante esclareceu a autoridade coatora, a ora recorrente juntou serodiamente um documento essencial à solução da controvérsia, o que gerou a decretação, por analogia, dos efeitos da revelia e a cominação das referidas penalidades administrativas (fls. 107⁄108). Por mais que o aludido documento, consubstanciado em um termo de acordo entre consumidora e fornecedora (fls. 156⁄157), representasse um fato extintivo do direito da autora, não mereceu a devida consideração. A despeito do fenômeno da preclusão administrativa não ter recebido o devido tratamento legislativo, a teor do que ensinam Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 42-43), nada obstaria que o PROCON considerasse que a pretensão da consumidora foi substancialmente satisfeita com o acordo por ela proposto à fornecedora. Ignorar, no âmbito do processo administrativo, a força normativa do princípio da razoabilidade, enquanto mecanismo viabilizador do controle dos atos administrativos, significa incorrer, a rigor, em afronta ao próprio princípio da legalidade. Os atos supostamente praticados pela fornecedora, apontados como justificadores da medida infligida pelo PROCON-PR, em verdade, não possuem a virtude de embasar as sanções, pois foram precedidos de um acordo extremamente favorável à consumidora. Não bastasse a invocação do princípio da razoabilidade, poderia ainda ser invocado o princípio da verdade material como forma de dirimir a pretensão mandamental e refutar a equivocada premissa da juntada intempestiva do termo de acordo.
Por força do princípio da verdade material, plenamente aplicável no âmbito do processo administrativo enquanto garantia da indisponibilidade do interesse público, conforme ensina Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz, “mesmo no silêncio da lei, e até mesmo contra alguma esdrúxula disposição nesse sentido, nem há que se falar em confissão e revelia, como ocorre no Processo judicial. Nem mesmo a confissão do acusado põe fim ao processo; sempre será necessário verificar, pelo menos, sua verossimilhança, pois o que interessa, em última análise, é a verdade, pura e completa” (Ob. cit., p. 87). Recurso ordinário provido
Assim sendo, como se verifica claramente pelo julgado transcrito, o procedimento administrativo valoriza a busca da verdade material muito mais que os elementos fáticos e probatórios dos autos.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho[9], “é o princípio da verdade material que autoriza o administrador a perseguir a verdade real, ou seja, aquela que resulta efetivamente dos fatos que a constituíram.
E continua, “no processo administrativo, porém, o próprio administrador vai à busca de documentos, comparece a locais, inspeciona bens, colhe depoimentos e, a final, adota realmente todas as providências que possam conduzi-lo a uma conclusão baseada na verdade material ou real. É o exato sentido do princípio da verdade material”.
Assim sendo, conclui-se que no processo administrativo, a verdade real dos fatos está acima dos efeitos da confissão ou da revelia.
3. Conclusão
Em oposição ao princípio da verdade formal, inerente aos processos judiciais, ao processo administrativo se aplica o princípio da verdade material ou real.
Isso ocorre principalmente pela aplicação inerente do princípio da indisponibilidade do interesse público ao processo administrativo e se torna e fundamental importância para o julgador administrativo, que não deve somente se ater, portanto, ao devido processo legal, ao contraditório e ampla defesa, mas a verdade real.
Nas palavras de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari[10], “nem mesmo a confissão do acusado põe fim ao processo; sempre será necessário verificar, pelo menos, sua verossimilhança, pois o que interessa, em última análise, é a verdade, pura e completa”.
Essa busca torna os processos administrativos verossímeis e interessa mais ao Estado Democrático de Direito justo e igualitário.
Referências
1. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. 3. ed. Rio de Janeiro: LumemJuris, 2007.
2. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
3. CRUZ, Célio Rodrigues da. Direito Administrativo Sancionador.Curso de Educação à Distância. Universidade Federal de Brasília e Advocacia-Geral da União. 2009/2010.
4. MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
5. Medauar, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo, p.132.
6. Ferraz, Sérgio e Adilson Abreu Dallari. Processo Administrativo. Ed. Malheiros. 2001
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
[2] Medauar, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo, p.132
[3] CRUZ, Célio Rodrigues da. Direito Administrativo Sancionador.Curso de Educação à Distância. Universidade Federal de Brasília e Advocacia-Geral da União. 2009/2010.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal. 3. ed. Rio de Janeiro: LumemJuris, 2007.
[5] Idem nota1
[6] Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Ed. Malheiros. 2007
[7] Vide nota1
[8] Vide nota 3
[9] Idem nota 2
[10] Ferraz, Sérgio e Adilson Abreu Dallari. Processo Administrativo. Ed. Malheiros. 2001
Procurador Federal. Coordenador-Geral de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral Federal. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC Campinas e Especialista em Direito Público pela Universidade Federal de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MUNHOZ, Fabio. Os procedimentos administrativos litigiosos e o princípio da verdade real Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2012, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32804/os-procedimentos-administrativos-litigiosos-e-o-principio-da-verdade-real. Acesso em: 22 nov 2024.
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