Resumo: Além da análise histórica da atividade portuária, o presente trabalho examina as características da atividade desenvolvida no âmbito dos terminais portuários de uso privativo, na disciplina da Lei nº 8.630/93. Conclui que esta atividade, exercida mediante termo de autorização, não se conforma perfeitamente com a noção de serviço público, embora sua atuação se verifique no campo material peculiar àquele. Sua natureza jurídica, portanto, é de atividade econômica stricto sensu, pois tem por escopo atender às necessidades do próprio titular da outorga – para a movimentação preponderante de cargas próprias. Excepcionalmente, admite-se a movimentação de cargas de terceiros, desde que de forma complementar, jamais como negócio finalístico e principal do empreendimento. O ato de autorização exigido na espécie é mero ato de polícia administrativa, que não se confunde com outorga de prestação de serviço público.
PALAVRAS-CHAVE: Terminal – portuário – autorização – natureza jurídica.
Title: The legal nature of port operations within the private terminals.
ABSTRACT: SUMMARY: Beyond the historical analysis of port activity, the present study examines the characteristics of the activity developed by private port terminals, under the discipline of Law No. 8.630/93. It concludes that this activity, which is handled under an authorization term, does not conform perfectly with the concept of public service, although it conserves some similarities. Therefore its legal nature is strictly an economic activity, as it aims to fullfill the needs of the owner of the grant - for moving cargo predominant own. Exceptionally, it admits to attend other cargos, since it is done in a complementary way and never as finalistic main business of the enterprise. The authorization act required in this kind of activity is mere an act of administrative policy, which is not confused with the granting of public service itself.
KEY WORDS: terminals – Port – authorization – legal nature.
Introdução
Publicada em 1993, a Lei nº 8.630 dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e das instalações portuárias. O Estatuto, além de trazer o conceito legal de diversos institutos e fenômenos ligados à atividade, especificou as espécies de instalações portuárias e respectivo modus operandi.
A referida lei, chamada Lei de Portos, em seu art. 4º, assegurou o direito de exploração da atividade por meio de contratos de arrendamento (espécie de subconcessão), celebrados com a União, no caso de exploração direta, ou com sua delegatária[1], sempre por meio de licitação.
De forma singular, autorizou-se a exploração de terminais de uso privativo (exclusivo e misto), mediante expedição de termo de autorização, considerando, sobretudo, o fato de que tais instalações teriam por finalidade precípua o atendimento das necessidades do próprio autorizatário (verticalização da cadeia produtiva). Em tais casos, seria admitida a movimentação de carga de terceiros, todavia de forma residual, conforme será explorado no presente trabalho.
Por sua vez, a Lei nº 11.518/2007 criou as figuras da Instalação Portuária de Pequeno Porte (IP4) e da Estação de Transbordo de Cargas (ETC), que, assim como os Terminais de Uso Privativo (TUP), não estão sujeitos à regra da prévia licitação. Também nesses casos o direito de explorar (seu exercício) a atividade é outorgado mediante mera autorização.
Todavia, neste trabalho, o estudo está voltado exclusivamente sobre a exploração dos terminais de uso privativo (TUP). Analisar os precedentes que serviram de inspiração para a disciplina de tais instalações, seu conceito, bem como o papel que desempenham no âmbito da atividade regulada. Promover uma comparação entre estes terminais e os portos organizados (portos públicos latu sensu), estabelecendo a exata compreensão sobre os limites da atividade realizada no âmbito dos TUP’s, de forma a compatibilizar os dispositivos legais com o marco constitucional.
O assunto é palpitante, mormente neste momento em que se cogita do esgotamento do modelo porto organizado – denominação conferida pela Lei nº 8.630/93 à espécie do gênero porto público – que não vem suprindo as diversas necessidades da coletividade, notadamente pela expansão imprimida à troca internacional de mercadorias e cargas.
Lado outro, o debate pode contribuir para o estabelecimento de nova disciplina para a atividade regulada. Isto porque, decorridos vinte anos daquela lei, dois graves problemas do serviço portuário ainda persistem. Primeiro, o custo da movimentação e armazenagem de cargas, significativamente superior ao do mercado internacional, o que encarece o produto nacional e prejudica a competitividade da indústria pátria. Segundo, a falta de profissionalização das Cias Docas, que contribui para a manutenção do anacronismo da estrutura portuária brasileira.
I – Terminais privativos: antecedentes
É competência da União a exploração dos portos marítimos, lacustres e fluviais, conforme dispõe o art. 21, XII “f”, da Constituição Federal/88. Ou seja, a exploração da atividade portuária como serviço público federal[2], pelo menos naquilo que toca a exploração de instalações portuárias voltadas para o atendimento das necessidades da coletividade geral.
Embora sob marco regulatório impreciso, historicamente os portos sempre foram qualificados como serviço de relevante interesse público, quer por sua importância estratégica para o comércio internacional, quer por sua posição geográfica (fronteiriça), representando aspecto de segurança nacional.
Tome-se, por exemplo, o disposto na Constituição Federal de 1891. Ao tratar do comércio internacional, estabeleceu como competência exclusiva da União o ato de decretar “direitos de entrada, saída e estadia de navios” nacionais ou mesmo estrangeiros (art. 7º). O texto constitucional vedava, ainda, a possibilidade estabelecer distinções ou preferências entre os portos de uns contra os de outros estados (art.8º).
Implicava, portanto, no reconhecimento da centralização da direção administrativa (dirigismo estatal), incidente sobre a atividade portuária, tutela essa exercida pela própria União. A dizer, seria competência exclusiva da União dispor sobre a exploração dos portos, todavia, com a vedação do estabelecimento de quaisquer preferências entre os estados.
Inobstante este cenário jurídico, a par de se tratar de serviço de relevante utilidade pública, de observar que a atividade era desenvolvida sob o pálio do regime marcadamente privado. Porém já se podia divisar a falta de identidade da atividade portuária em relação às demais atividades meramente econômicas. De fato, desde a edição do Decreto Imperial nº 1.746, de 13 de outubro de 1869, ficou evidente que a atividade somente poderia ser desenvolvida com a constituição de “concessão”, cujo prazo máximo fora inicialmente fixado em noventa anos.
Todavia, a inexistência de uma efetiva regulação da atividade permitia a exploração de instalações portuárias mediante a imposição de critérios subjetivos. De qualquer modo, há que se evidenciar que o termo “concessão”, utilizado à época, não se identifica com o conteúdo atual do instituto. Quer dizer, a expressão consagrava predominantemente a autorização (sentido material) para o uso e gozo do Bem Imperial, e não necessariamente a exploração de uma atividade pública. Encerrava, no máximo, conteúdo correspondente àquele hoje conferido à concessão de direito real de uso. Não mais.
A ideia de estruturação do porto como um conjunto coordenado, sob uma direção superior delegada[3], destinado ao atendimento das necessidades variadas do mercado, só veio com a disciplina do Decreto nº 4.279, de 2 de junho de 1921[4], cujo objetivo era regular a atracação de navios nos portos providos de “installações modernas de cáes, molhes, obras congeneres, e serviço de dragagem e outros necessários ao trafego de navios”. Pelo artigo 1º daquele repositório, a essas instalações restou assegurado o monopólio da atividade de embarque e desembarque de mercadorias e passageiros, para, ou de, outros portos. Instalações essas que, posteriormente – com a edição do Decreto nº 15.693[5], de 22 de setembro de 1922 – foram designadas de “portos organizados”, porém, ainda assim, sem o conteúdo hoje incidente sobre tais fenômenos jurídicos.
Com a vigência da Constituição Federal de 1934[6], a atividade ganha novos contornos jurídicos. Isto porque, além atribuir competência à União para legislar sobre o regime de portos (art. 5º, XIX “e”), definiu expressamente que a exploração da atividade dependeria de concessão federal[7], devendo preferir-se os estados na expedição das outorgas.
Para Suriman Nogueira de Souza Júnior, o início da sistematização da legislação portuária nacional se dá com a publicação dos Decretos 24.447, 24.508 e 24.511, todos de 1934. Destaca que “Pelo sistema de 1934, monopólico, foi estabelecido juridicamente o conceito de que a cada porto organizado corresponderia o monopólio da exploração de uma hinterlândia. Assim, o território nacional foi particionado, consistindo cada hinterlândia de uma parte do litoral e sua respectiva projeção para o interior do país[8].
Parece mais correto assinalar que a sistematização já se teria iniciado com a publicação do Regulamento dos portos organizados, por meio do referido Decreto nº 15.693/1922. De fato, o referido Regulamento já informava a natureza de serviço público da atividade, que deveria ser prestada de forma ininterrupta, de dia ou de noite, com a exigência de condições para a satisfação quanto ao funcionamento e prestação do serviço, com vistas à satisfação das necessidades dos usuários.
Cabe observar que, pela regulamentação de 1934, restou confinado ao ambiente do porto organizado (“installações modernas de cáes”) o embarque e desembarque de mercadorias destinadas ou provindas do transporte aquaviário. A dizer, qualquer movimentação de mercadorias do e para o meio aquaviário, economicamente significativa, teria trânsito obrigatório pelo porto organizado (ou simplesmente, porto nacional). Para tanto, fixou o conceito de “hiterland[9]” como sendo a área de influência da Administração do Porto, cujas instalações, contíguas ou não, estariam vinculadas ao regulamento do Porto que, desse modo, deteriam a exclusividade (poder de “autorizar” no sentido material) da movimentação e armazenagem de mercadorias provindas ou destinadas ao transporte aquaviário.
Paralelamente à atividade desenvolvida pelos portos organizados (portos nacionais), com a edição do Decreto-lei nº 6.460, de 2 de maio de 1944, o legislador passou a reconhecer, expressamente, a necessidade de instalações portuárias diversas. A dizer, para o fim de abrigar situações específicas, notadamente quando sua expressão econômica não justificasse constituição e aparelhagem de um “porto organizado” propriamente dito. Referia-se às pequenas instalações em cidades e vilas, exploradas pelos estados e municípios, cujo valor não ultrapassasse um milhão de cruzeiros. Todavia, sempre sujeitas ao processo conversão em porto organizado ou de mera “encampação” por parte da União (§ 1º, do art. 2º, do Decreto-lei nº 6.460/44).
Não só. O referido decreto estabeleceu que a exploração dessas instalações (chamadas de rudimentares) seria feita sem qualquer caráter de monopólio, e, ainda, permitiu-se aos armadores e embarcadores particulares a construção de trapiches próprios, o que acabou por constituir-se no embrião para a regulamentação dos terminais privativos.
Com a alteração trazida pelo Decreto, admitiu-se, pois, a atuação subsidiária e complementar dos estados e municípios, condicionada à respectiva aprovação dos projetos pela União, a par do funcionamento de trapiches e embarcadores diversos, com vistas ao atendimento da demanda não suprida diretamente pelo Poder Público.
Inobstante, o avanço mais expressivo na questão da estruturação e legalização dos terminais de uso privativo veio com o Decreto-lei nº 5, de 4 de abril de 1966, que permitia aos embarcadores, ou a terceiros (particulares), satisfeitas as exigências legais, construir e/ou operar instalações portuárias, desde que sua exploração “se faça para uso próprio” (art. 26)[10]. A dizer, para movimentação de “cargas próprias”, em oposição à “cargas de terceiros” (da coletividade em geral). A movimentação destas (carga de terceiros) somente seria admitida nos terminais e embarcadouros de uso privativo em situações excepcionais, previstas no parágrafo quinto daquele dispositivo, desde que previamente reconhecidas pelo Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis.
Com a edição do Decreto nº 5/66, perde significado o limite do valor das instalações (art. 1º, do Decreto-lei nº 6.460/44). Porém estabelece-se um novo requisito, a dizer na destinação do terminal de uso privativo, uma vez que não poderia ser direcionada para o atendimento da demanda do público em geral, senão do próprio titular da instalação. Tal aspecto, conforme será demonstrado, constitui-se o principal traço a distinguir tais instalações daquelas voltadas para a prestação do serviço público propriamente dito (art. 151, da CF/46).
A denominação foi reafirmada pelo Decreto-lei nº 83, de 26 de dezembro de 1966, que conferiu igualdade de tratamento entre os terminais ou embarcadouros de uso privativo e as instalações portuárias rudimentares, tratadas pelo Decreto-lei nº 6.460/44.
Com a publicação da Lei nº 8.630/93, surge nova ordem jurídica no ambiente portuário, inclusive com a revogação dos indigitados Decretos-lei 5 e 83, dando-se novo tratamento à exploração das instalações ditas privativas.
A partir desta lei de modernização dos portos, o que se verifica é uma vinculação do legislador ordinário aos limites constitucionais, inclusive no que tange ao modo de exploração das atividades nas instalações portuárias de uso privativo, cuja concepção encontra-se fundada na necessidade de verticalização da cadeia produtiva.
Todavia, notadamente pela possibilidade de movimentação de carga de terceiros – terminal de uso privativo misto –, ergue-se uma fundada controvérsia acerca dos limites jurídicos ocorrentes na espécie. A dizer, teria havido uma substancial privatização do setor, ou mesmo o estabelecimento da concomitância dos regimes público e privado na exploração dos portos, a partir da ampla liberdade de operação dos terminais particulares, possibilitando, dessa forma, uma efetiva concorrência entre esses e os portos públicos?[11]
Da natureza jurídica
A definição da natureza jurídica de determinado instituto, no âmbito da ciência[12] do direito, é etapa essencial para a sua exata compreensão. Cuida-se, pois, da sistematização do direito, quer para fins didáticos, quer para a escorreita identificação de normas e princípios incidentes (operatividade plena do direito).
Segundo Plácido e Silva, natureza, na terminologia jurídica, assinala notadamente “a essência, a substância ou a compleição das coisas... É, portanto, a matéria de que se compõe a própria coisa, ou que lhe é inerente ou congênita”[13]
Determinar a natureza jurídica, portanto, é instrumento didático de indicar topograficamente a posição do instituto, segundo suas afinidades, e, mais propriamente, identificar, prima facie, as normas que lhe são aplicáveis, a partir dessa estruturação enquanto ciência. Ao “descobrir”, desnudar, tornar evidente a natureza jurídica, exercita-se parcela da atividade de interpretação jurídica, com o fim de afastar-se do casuísmo, do senso comum e do próprio erro etc.
Nesse enfoque, torna-se relevante a definição da natureza jurídica da atividade empreendida pelos terminais portuários de uso privativo, no desenvolvimento da atividade de movimentação e armazenagem de mercadorias provindas ou destinadas ao meio de transporte aquaviário (cadeia logística). A saber, se a atividade desenvolvida por eles configuraria serviço público propriamente dito, ou mera atividade econômica objeto de especial regulação da Administração Pública (?).
Oportuno pontuar que a Lei nº 8.630/93, já sob a égide da nova ordem constitucional, inovou o ordenamento jurídico, ainda que sem muita consistência técnica, para estabelecer a possibilidade de exploração dos terminais de uso privativo (espécie de porto lato sensu[14]), dependente de mera autorização do Poder Público, como será visto. Aqui, desimportante é qualquer distinção entre instalações portuárias de uso privativo e terminal portuário, enquanto espécies do mesmo gênero.
Daí, pois, a necessidade de se estabelecer o sentido e alcance dessa norma, dentro do contexto da Carta Magna vigente, que impõe limites e condições para a exploração do serviço público[15], notadamente pelo escorreito modo de trespasse à iniciativa privada (concessão ou permissão), que, dessa forma, limita e conforma a atuação do legislador ordinário[16].
Antes disso, porém, a fim de cumprir o desiderato deste capítulo, volta-se para a análise e classificação da atividade portuária nos terminais de uso privativo.
Ao tratar das formas de atuação do Estado, no quanto respeita à ordem econômica, o Ministro Eros Roberto Grau destaca: “...dos temas da classificação das formas de atuação do Estado em relação ao processo econômico, da noção de atividade econômica, onde a distinção que aparta o campo dos serviços públicos (área de atuação estatal) do campo da chamada atividade econômica (área de atuação do setor privado), e da noção de Direito econômico[17].
Assim, vinculado apenas à utilidade do instrumento, cabe, pois, tomar em consideração tão-somente duas categorias de atividades materiais exercidas pela Administração Pública em relação ao processo econômico: (i) atividades consideradas serviço público; (ii) atividades econômicas propriamente ditas[18].
E como diferenciá-las?
Grosso modo, pode-se definir serviço público como atividade eleita como tal, quer por sua essencialidade ao desenvolvimento do Estado e cumprimento de seus fins, que por conferir ao indivíduo sobrevivência e desenvolvimento dignos (relativo à dignidade da pessoa humana).
No que toca ao Estado, atividades Econômicas são aquelas eventualmente por ele exercidas, em regime de concorrência com a iniciativa privada, porém sob a premissa do relevante interesse coletivo que as consagram, ou pelos imperativos de segurança nacional, ex-vi art. 173, da CF/88. Todavia, em face da proposta do presente trabalho, cabe aprofundar a análise num e noutro caso.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, serviço público é “toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.”[19]
Maria Sylvia Zanella de Pietro traz um conceito muito próximo ao daquele jurista, para dizer da atividade material que a lei atribui ao Estado, para que exerça diretamente ou por meio de delegados, como objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, mas por regime jurídico total ou parcialmente público.[20]
Para Odete Medauar o serviço será público quando: o setor for delicado para deixar ao bel-prazer dos particulares; o serviço prestado deve beneficiar aos menos favorecidos; o serviço venha a suprir a carência da iniciativa privada ou a favorecer o progresso técnico[21].
Nessa quadra, Marçal Justen Filho afirma que o serviço público está relacionado à satisfação direta e imediata de direitos fundamentais, e não pode ser compreendido simplesmente pela titularidade estatal determinada a priori.[22]
A par do reconhecimento da inexistência de um conceito universal (ou melhor, não equívoco)[23] daquilo que pode ser qualificado prima facie como serviço púbico, passou-se a evidenciar a importância do conceito formal, recaindo-se ao legislador o encargo de definir, em determinado momento histórico, quais serviços deveriam ser prestados ou garantidos pelo Estado, materializando, assim, a vontade das forças sociais e políticas reinantes.
Diz-se da atividade, subtraída do domínio econômico – conjunto de atividades exercidas em ambiente livre e aberta competição, com ampla disponibilidade ao particular – para ser titularizada pelo Estado, a quem é conferido o poder-dever de fornecê-lo à coletividade geral, valendo-se de prerrogativas próprias do poder de imperii, o que qualifica o regime jurídico como prevalecente direito público.
Significa dizer que determinada atividade eleita pelo legislador como serviço público tem sua titularidade conferida ao Poder Público, com o correspectivo encargo de prestá-lo de modo adequado, quer seja diretamente ou por interposta pessoa. Como dito, no caso de prestação pelo particular, o trespasse é feito sempre por licitação, mediante concessão, que é a regra, e, esporadicamente, permissão (CF/88, art. 175)[24]. É da titularidade conferida ao Estado, portanto, que exsurge a necessidade de investir o particular no direito de sua exploração, por meio de título jurídico eficaz – v.g., concessão.
Assim, tal conceito formal passou a ter maior utilidade, pois de simples e direta apreensão. A dizer, é serviço público qualquer atividade que, dado o interesse e utilidade para a coletividade, o legislador a eleja como tal, imputando-se ao Estado (seu titular) o dever de prestá-la.
Para Maria Sylvia Zanella di Pietro “é toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados”[25]
De evidenciar que a jurista utiliza a expressão “lei” em sentido lato, para entender não somente a lei ordinária, mas qualquer ato normativo que lhe seja superior (hierarquia das normas[26]). Por outro lado, em razão dos reflexos da escolha, resta também óbvio que a manifestação política (vontade do Estado) não pode ser empreitada de normas secundárias. Uma vez que a atividade eleita é retirada do âmbito da livre atuação da iniciativa privada, tal desiderato não é atribuição compatível com a atividade do legislador que não tenha potência para inovar a ordem jurídica.[27] São escolhas, portanto, que devem figurar em lei, e não em mero decreto regulamentar, e muito menos em resolução do ente regulador.
Daí, portanto, a afirmação de que a identificação de determinada atividade como “serviço público” é decorrência da vontade do legislador ordinário, como manifestação da vontade política do próprio Estado (representação política do poder).
Nesse contexto, exsurge a indagação: quanto às escolhas já efetivadas pelo legislador constituinte, seria legítimo o esvaziamento de tal escolha pelo legislador ordinário? Por qualquer modo, poderia o legislador ordinário ou o Administrador Público invalidar a opção legítima já empreendida pela CF?
A resposta, ao nosso entender, deve ser negativa. Como já dito, a doutrina e a jurisprudência convergem no sentido que o serviço público pode ser criado por lei ordinária. Isto posto, novo cenário social poderia implicar na necessidade de superação de novos desafios para o Estado, enquanto responsável pela manutenção da dignidade da pessoa humana e seu desenvolvimento social. Bem por isso, não se poderia advogar em sentido contrário, de que o rol estabelecido pelo constituinte seria estanque, inalterável. Tal entendimento não se mostra razoável.
Por outro lado, parece também evidente que a estrutura do nosso ordenamento, fundada com a supremacia da Constituição Federal, é suficiente para negar a possibilidade de que normas inferiores venham a substituir a vontade do constituinte, ou de qualquer modo esvaziar o conteúdo das normas constitucionais responsáveis por escolhas desse quilate. Dito de outro modo, as atividades especialmente colocadas sob a tutela do Estado pelo legislador constituinte só podem sofrer esvaziamento mediante revisão da própria Constituição, conformando-se o substrato jurídico a eventual novo cenário histórico, que implique na desnecessidade de garantia da prestação do serviço pelo próprio Estado.
Nessa quadra, Egon Bockmann Moreira assevera que tais atividades são cometidas ao Estado pelo próprio constituinte e “Logo, a desestatização instalada ao nível infraconstitucional não pode ser quanto à titularidade do serviço, mas deve circunscrever-se à sua gestão. Aqui não se pode falar em privatização substancial – matéria abrangida pelo PND, mas estranha à Lei nº 8.987/1995”[28]
De igual modo, dada a redação do art. 175, CF/88, não se pode admitir que a escolha do constituinte seja, de qualquer modo, frustrada por ocasião do trespasse da prestação aos particulares (outorgas). Tal decisão política do constituinte limita e conforma a atuação do administrador público, que não poderá fugir do regime jurídico administrativo estabelecido no ordenamento.
Em relação ao regime jurídico incidente – regime prevalecente de direito público – parte da doutrina questiona essa peculiaridade atribuída como inerente à atividade categorizada como “serviço público”, argumentando que a Constituição nada dispõe a respeito desse aspecto. Sem razão aqueles que assim pensam, uma vez que o art. 175, CF/88, entre outras características da prestação do serviço, impõe que o dever de garantir: (i) os direitos dos usuários; (ii) política tarifária, compreendida com a busca da modicidade tarifária, própria da natureza do serviço; (iii) a obrigação de manter o serviço adequado. E qual o meio de realização de tais garantias, senão por meio do regime jurídico institucional: regime jurídico de direito público?
Para Marçal Justen Filho “O Regime jurídico de direito público consiste no conjunto de normas jurídicas que disciplinam o desempenho de atividades e de organizações de interesse coletivo, vinculadas direta ou indiretamente à realização dos direitos fundamentais, caracterizado pela ausência de disponibilidade e pela vinculação à satisfação de determinados fins”[29]
Particularmente sobre o aspecto ora abordado, interessa predominantemente perquirir sobre a noção que deve recair sobre a expressão “serviço adequado”. Doutrina autorizada e jurisprudência convergem no sentido de serviço adequado, no que pertine à categoria de serviço público, diz propriamente à realização dos princípios universalmente aceitos: da continuidade; da universalidade; da segurança; da continuidade; da eficiência; regularidade; da modicidade tarifária.
E, para a garantia da realização desses princípios, o titular do serviço (Estado) não se encontra propriamente em patamar equivalente ao do contratado. Aqui, a relação é de subordinação, que confere ao Estado (titular do serviço) prerrogativas próprias do poder de imperii, voltadas para a garantia da supremacia do interesse público, insuscetível de ser substituído pelo interesse particular. Vale dizer, ainda que eventuais instrumentos de concessão (ou permissão) contenham cláusulas ou disposições que afastem a realização dos indigitados princípios, a interpretação das avenças deverá ser conformada no sentido de garantir a realização do interesse público (daqueles mesmos princípios), que demarca o regime jurídico administrativo.
Feitas essas considerações, é de se concluir, portanto, que a noção de serviço público pode ser tomada em seu sentido material, como sendo atividades essenciais para a dignidade da pessoa humana, ou mesmo necessárias para garantir a realização de direitos básicos conferidos pela própria Constituição Federal, razão pela qual devem ser regulados e garantidos pelo Estado.
Tomada no sentido formal, tem-se a noção de serviço público como sendo aquela atividade eleita pelo legislador (constituinte ou ordinário) como sendo de titularidade do Estado, que tem o dever de prestá-la de modo adequado, diretamente ou por interposta pessoa, neste caso mediante os institutos de concessão ou permissão.
Retornando-se à análise central deste trabalho, resta aferir a situação da atividade portuária, em confronto com as noções acima. No que tange o aspecto formal, tem-se que o serviço de exploração de “portos” foi eleito como sendo de titularidade da União, que tem o dever de prestá-lo diretamente, ou mediante concessão e permissão (art. 21, XII “f”). Do caso da autorização trataremos adiante.
Destarte, tendo em vista a ideia de que, no nosso Estado Democrático de Direito, todo o poder deriva do povo, e que tal poder é ordinariamente exercido por seus representantes (modo de operatividade daquele poder), restaria suficiente a escolha do legislador, para os efeitos jurídicos que ora se pretende. Ou seja, de qualificar para todos os fins a atividade portuária como “serviço público federal”, com as implicações já tratadas, tornando, em certa medida, desimportante o conceito material.
Porém, também neste aspecto (material), haveria também razões – hoje bem menos do que no passado – para a qualificação da atividade portuária como “serviço público”, pois revela-se de peculiar importância para o desenvolvimento do País, dado que permite o intercâmbio comercial entre as nações, indispensável para a garantia da qualidade de vida e benefícios advindos do processo de globalização (composição da balança comercial, acesso ao progresso científico e tecnológico, bem assim a preservação das divisas do País).
A propósito, Jose Afonso da Silva sustenta que o porto é um serviço público por qualificação e destinação, e acrescenta in verbis:
A mudança é importante precisamente por isso: o sistema constitucional anterior não reservava à União a exploração dos portos em geral; a matéria era deixada à legislação ordinária. Agora, a Constituição o faz, no dispositivo transcrito. Isso significa uma barreira a certas pretensões privatizantes que a Lei 8,639/1993 incorporou, numa postura contrária até mesmo a toda tendência universal sobre a matéria, porque todos os Estados têm ciência e consciência de que a área portuária é muito mais do que um lugar de embarque e desembarque, de carga ou descarga, porque é fronteira nacional, um lugar extraordinariamente sensível à defesa do território nacional – uma área, enfim, onde se desenvolvem as atividades de controles diversos, de migração, vigilância sanitária, inspeção e classificação de produtos, fiscalização aduaneira, alfândega e arrecadação de tributos, policiamento de repressão ao contrabando e de tráfico de drogas e tantas outras mais. Enfim, um serviço público por qualificação e destinação.”[30]
Dentro desse enfoque, a lei de portos estabelece caracteriza o regime jurídico próprio para a exploração das instalações portuárias de uso público, na medida em que define o modo e forma de prestação do serviço, notadamente a partir das cláusulas essenciais do contrato de arrendamento (§ 4º, do art. 4º), cabendo destacar o dever de garantir os direito e deveres dos usuários (inciso VI); a reversão dos bens aplicados no serviço (VII); a manutenção da atualidade do serviço (VIII); as garantias para “adequada” execução do contrato (X); a responsabilidade do titular da instalação ela inexecução ou deficiente execução dos serviços (XII).
Lado outro, o parágrafo 2º, do art. 1º, define que a concessão do porto organizado será sempre precedida de licitação realizada de acordo com a lei que regulamenta o regime de concessão e permissão de serviços públicos. Esta, por sua vez, informa que toda concessão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, e que serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das suas tarifas (art. 6º e §§).
Ora, as aludidas condições para a prestação do serviço portuário, na forma que regulamentada pelo legislador, nada mais são do que a caracterização do regime jurídico incidente – regime prevalecente de direito público – peculiar à prestação de “serviço público”, divisando-o daquele regime privado, próprio da atividade econômica stricto sensu. Impõe-se, à toda sorte, a exegese de que o objeto regulado (dado o grau de intervenção) detém a qualificação de serviço público, não existindo sentido em tamanha intervenção, senão por considerá-lo essencial para o desenvolvimento do Estado, e por este deve ser garantido e regulado.
Não por outra razão, Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que “só merece ser designado serviço público aquele concernente à prestação de atividade e comodidade material fruível singularmente pelo administrado, desde que tal prestação se conforme a um determinado e específico regime: regime de Direito Público, o regime jurídico-administrativo”.[31]
Do regime jurídico de direito público, exsurge para o titular do serviço o dever de garantir a sua prestação, mediante a realização dos princípios da universalização e da continuidade, em face da sua essencialidade e do interesse coletivo que ostenta.
Em relação à atividade portuária, a jurisprudência também não discrepa quanto a sua natureza de “serviço público” e, consequentemente, do regime jurídico incidente.
É certo, porém, que no julgamento do RE 209.365-3/SP, ao se referir à natureza jurídica da exploração dos ‘portos’, restou consignado no voto condutor do Min. Ilmar Galvão consignou não tratar-se de serviço público ínsito à soberania do Estado, mas que “Não passam de atividades de natureza econômica que, por revestidas, isso sim, de interesse público, a Carta de 88 incumbiu à União, autorizando-a a explorá-las (e não prestá-las) diretamente ou por via de empresa privada”.
Mas, tal posição não prosperou, já que predomina naquela Corte Suprema o entendimento acerca da natureza jurídica de serviço público para as atividades portuárias. Bem a propósito, no julgamento do RE 253472/SP o Ministro Joaquim Barbosa destacou in verbis: “Em uma série de precedentes, esta Corte reconheceu que a exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres caracteriza-se como serviço público (cf. o RE 172.816; rel. Ministro Paulo Brossard, DJ de 13.05.1994; o RE 356.711, rel. min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ de 07.04.2006; o RE 253.394, rel. min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ de 11.04.2003 e o RE 265.749, rel. min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, DJ de 12.9.2003)”. (RE 253.472/SP – Ministro. Joaquim Barbosa, Julgamento 25/08/2010 - DJe 20, 31/01/2011, publicação 01/02/2011-Pleno)
Assim, em face do que até aqui foi exposto, tem-se que o serviço de exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres é serviço público federal, tanto sob o enfoque meramente formal – escolha do legislador constituinte, art. 21, XII “f” – quanto no seu aspecto material, entre outras razões pela sua relevância para o desenvolvimento social do País. Todavia, não se pode desconhecer que outros países já se desvincularam da atividade, sem sofrer qualquer abalo de sua soberania, notadamente pelos avanços tecnológicos que permitem ampla fiscalização da atividade, sem maiores intervenções do Estado.
Ipso facto, pode-se inferir a existência de novo cenário histórico a permitir nova reflexão do legislador constituinte, inclusive para o fim de reavaliar a necessidade do Estado manter-se na titularidade do serviço. Assim para dizer que a atividade portuária, enquanto serviço público, não pode ser compreendido como manifestação estática e definitiva do Estado, porquanto representa a materialização das forças sociais e políticas em dado momento histórico. E, nessa medida, cabe ao próprio Estado promover a redefinição do âmbito de sua atuação, para centrar-se naquilo que lhe seja mais “caro” à realização dos seus fins, enquanto garantidor do bem estar social.
Então, diante do quadro traçado, cabe indagar qual a natureza jurídica da atividade desempenhada pelos terminais de uso privativo, objeto da disciplina da Lei dos Portos? E, por conseguinte, qual o regime jurídico incidente para o caso?
Conforme já mencionado alhures, cabe aduzir que, até a edição da Lei 8.630/93, a exploração de estruturas similares aos terminais de uso privativo encontrava-se exclusivamente amparada pelo disposto no art. 26, do Decreto-lei nº 5/66, que permitia aos particulares, satisfeitas as exigências legais, construir e/ou operar instalações portuárias, desde que tal exploração fosse desempenhada para uso próprio. Isto porque a Constituição Federal de 1946[32], por seu art. 151, estabelecia como requisito para a prestação dos serviços públicos o respectivo título de concessão, no âmbito de cada ente federado (serviços públicos federais, estaduais e municipais).[33]
Instaurada a nova ordem constitucional (CF/88), sobreveio a disciplina estabelecida pela citada Lei 8.630/93, que promove inovação também no âmbito infraconstitucional, dispondo sobre a classificação dos terminais de uso privativo: (i) exclusivo, destinados a movimentação exclusiva de carga própria; (ii) misto, para movimentação de carga própria e carga de terceiros. Veja:
Art. 4º (...)
§ 2º A exploração da instalação portuária de que trata este artigo far-se-á sob uma das seguintes modalidades:
I – uso público;
II – uso privativo
Exclusivo, para movimentação de carga própria;
Misto, para movimentação de carga própria e de terceiros.
(...)
Art. 6º Para os fins do disposto no inciso II, do art. 4º desta lei, considera-se autorização a delegação, por ato unilateral, feita pela União a pessoa jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.
§ 1º A autorização de que trata este artigo será formalizada mediante contrato de adesão, que conterá as cláusulas a que se referem os inciso I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do § 4º, do art. 4º desta lei.
§ 2º Os contratos para movimentação de cargas de terceiros reger-se-ão, exclusivamente, pelas normas de direito privado, sem participação ou responsabilidade do poder público.
Pois bem. Conforme dito anteriormente, as normas constitucionais determinam o conteúdo possível das normas infraconstitucionais, dado o status de superioridade conferido àquelas.
Bem por isso, ao se promover a interpretação sistemática da disciplina contida na Lei 8.630, chega-se à escorreita conclusão de que a movimentação de carga no âmbito dos terminais privativos não poderia ocorrer de forma livre, para atendimento das necessidades da coletividade geral, pois violaria o disposto no art. 175, da CF, que condiciona a prestação do serviço público pelo particular à celebração de contrato de concessão ou permissão, mediante prévia licitação.
Partindo-se da premissa de que a lei não contém palavras ou expressões inúteis, e a fim de conferir interpretação conforme a Constituição, considerou-se significativa a própria nomenclatura utilizada pelo legislador ordinário, para entender que a finalidade precípua de tais estabelecimentos era, como de fato é, a verticalização da cadeia produtiva, e não o atendimento do interesse geral. Uso privativo, portanto, como oposição ao uso público (coletividade geral). Diverso, não coincidente com o de uso público.
Caso não fosse essa a ideia, poder-se-ia simplesmente tê-lo nominado de terminal privado, terminal autorizado, ou expressão equivalente, mas não de uso privativo. Manteve, nessa situação, o conceito e alcance até então utilizado pelo disposto no art. 26, do Decreto nº 5/66, de que a exploração se fizesse para o uso próprio; a dizer, movimentação de cargas do próprio titular da outorga.
Isto posto, sabendo da essencialidade de instalações portuárias para a garantia da troca internacional de mercadorias (escoamento da produção nacional) o legislador entendeu adequado oportunizar aos interessados a implantação de terminais de uso privativo, assim designados para o alcance de suprir as necessidades do próprio titular da instalação. Autorização, pois não travestido pelo direto interesse coletivo.
Assim, em face do processo crescente de globalização (encurtamento das fronteiras em decorrência do progresso tecnológico; queda de barreiras comerciais), resultando num crescimento exponencial da demanda pelos serviços portuários, a concepção do terminal de uso privativo, no âmbito da conveniência do seu proprietário, visava a um só tempo permitir efetivos ganhos em termos de logística (domínio integral do processo produtivo e escoamento da produção), como garantia da disponibilidade do serviço, independentemente da atuação de terceiros.
Enquanto as instalações de uso público eram legitimamente destinadas à movimentação e armazenagem de mercadorias de titularidade da coletividade geral (desimportante a titularidade da carga), a mesma vocação não imperou em relação aos terminais de uso privativo, pois direcionados ao atendimento das necessidades do seu próprio titular (relevância do titular da carga).
Destarte, parece evidente que o legislador, ao estabelecer como espécies de instalação portuárias, as de uso público, de um lado, e de uso privativo, de outro, teve como desiderato conferir efetividade à prescrição constitucional acerca do regime jurídico incidente (gizou fortemente um e outro marco legal).
De fato, não é demais acentuar que a exploração de serviço público se dá sob o regime jurídico de direito público, com as repercussões daí decorrentes: da licitação como princípio basilar; da universalidade, regularidade, da segurança, da continuidade, da eficiência e comodidade, e modicidade de tarifas. Esse regime é inteiramente aplicável à exploração de instalação portuária de uso público. O mesmo não ocorre com a exploração de terminal de uso privativo, conforme expresso no art. 6º, da Lei nº 8.630.
Também importante para a presente análise o modo de trespasse da atividade para a exploração do particular. Enquanto condicionada a exploração de terminais públicos ao título de concessão (arrendamento como subespécie de concessão[34]), exige-se mera autorização como ato de outorga suficiente para a exploração dos terminais de uso privativo. Note-se que, tradicionalmente, a exploração de serviço público por autorização somente é admitida nos casos de emergência ou em caráter eventual.
Importa observar que os atos de autorização para exploração de terminal de uso privativo expedidos pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários, embora não homogêneos, encerravam entendimento segundo o qual a movimentação de cargas de terceiros deveria ocorrer de forma complementar (subsidiária). Todavia, foi com a edição da Resolução 517/ANTAQ, de 18 de outubro de 2005, que tal aspecto restou expressamente regulamentado, tornando-se exigível a demonstração de que a carga própria do pretendente à outorga justificasse, por si só, a implantação do empreendimento (art. 5º, II “c”). Assim, para conferir interpretação ao indigitado art. 4º, § 2º, II “b”, que guardasse conformidade com a Constituição Federal.
Agasalha, portanto, a concepção tradicional de que a autorização a que alude o art. 21, da CF/88, em regra, constitui-se em instrumento de delegação da atividade de titularidade estatal, mas para que o particular a explore em seu próprio benefício.
Dentro da lógica jurídica que imperou na edição da Lei nº 8.630/93, de que a possibilidade de movimentação de carga não representava a instituição de um modelo jurídico híbrido para o setor (ou dualidade de regimes), o art. 6º, daquele Estatuto, relacionou as cláusulas que deveriam estar contempladas no título de autorização, deixando de fora: (i) relativa aos direitos e deveres dos usuários; (ii) sobre as obrigações correlatas do contratado e as sanções respectivas; (iii) do regime tarifário, pois vinculadas à liberdade de preços.
Ora, qual o sentido para essa exclusão, senão para indicar que não se estava tratando de um regime especial de sujeição, que deve garantir a proteção do usuário, mediante a estipulação do comportamento do titular em face das relações jurídicas estabelecidas. Que no caso a proteção seria aquela ordinária, garantida pelo ao consumidor pelo regime de direito privado[35]. E é exatamente por não ser a atividade do terminal de uso privativo “serviço público” propriamente dito – embora se desenvolva no mesmo campo material deste – que a ela não se aplica o regime jurídico de direito público.
A exclusão é significativa para dizer: aqui, o regime jurídico incidente não é o mesmo aplicável às instalações de uso público, porquanto os contratos celebrados para a movimentação de cargas de terceiros reger-se-ão, exclusivamente, pelas normas de direito privado, sem necessidade de estabelecer-se qualquer garantia adicional ao usuário e mesmo qualquer prerrogativa de intervenção do Poder Público. Essa é a redação do § 2º, do art. 6º, da Lei de Portos “§ 2 Os contratos para movimentação de cargas de terceiros reger-se-ão, exclusivamente, pelas normas de direito privado, sem participação ou responsabilidade do poder público”.
Prima facie, o disposto no indigitado § 2º poderia induzir o intérprete ao entendimento equivocado acerca da incidência de regime jurídico híbrido para o caso. De que o serviço público federal, no caso, poderia ser prestado tanto no regime público (concessão/arrendamento das instalações de uso público), quanto no regime privado (autorização para terminais de uso privativo).
Porém, a assimetria regulatória (grau de intervenção do Estado numa e noutra situação) é de tamanha ordem, concorrendo em sentido contrário, para evidenciar o predomínio da concepção tradicional do instituto de autorização, como mero ato de polícia a condicionar a atuação do particular. Seria mesmo impensável o estabelecimento de um modelo de livre e aberta competição entre os terminais públicos e privados, com tamanha assimetria regulatória, sem o legítimo (ou sua genérica previsão legal; norma primária aberta; standards[36]) estabelecimento de salvaguardas para a exploração no regime jurídico de direito público, que, por mais paradoxo que seja, é muito menos eficiente que o modelo privado.
Enquanto nas instalações de uso público – é significativa a expressão para dizer: satisfazer as necessidades da coletividade geral – incide o prevalecente regime jurídico de direito público, com as prerrogativas inerentes ao regime, para a garantia da universalidade, continuidade, regularidade e modicidade tarifária, nos terminais de uso privativo – voltados para a verticalização da cadeia produtiva, cuja exploração não depende de licitação – vigora a liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, em ambiente de aberta e livre competição, sem fixação de prazo ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação, nos moldes da reestruturação do serviço, de que trata a Lei nº 10.233 (art. 43).
Enquanto nas instalações de uso público os investimentos realizados são revertidos para o Poder Público titular do serviço, ao final do prazo da concessão, nos terminais de uso privativo os investimentos incorporam-se no patrimônio privado definitivamente. Nos terminais públicos, é exigível a requisição de mão de obra do Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO), conforme disciplina da Lei dos Portos (8.630). Já nos terminais de uso privativo o uso de trabalhadores avulsos é mera faculdade, segundo previsto no § único, do art. 56, da referida lei. Estão livres, portanto, para a contratação de pessoal no regime celetista (contrato por prazo indeterminado).
A administração e exploração da atividade no âmbito dos portos organizados (instalações portuárias de uso público, segundo disposto no § 3º, do art. 4º, da Lei 8.630), além das prerrogativas próprias do titular do serviço, encontram-se sujeitas às competências do Conselho da Autoridade Portuária (CAP), aspecto este estranho à atividade desenvolvida no âmbito dos terminais de uso privativo. Este está livre não só dos custos de apoio e manutenção ao órgão, como também da ingerência na espécie.
Destarte, tamanha assimetria regulatória torna inviável a livre e aberta competição entre os terminais de uso público e os terminais de uso privativo, a menos, como dito, que se estabeleçam legítimas salvaguardas, em paralelo à redução do nível de intervenção no serviço público.
A seu turno, o termo carga de “terceiros” a que alude o inciso II “b”, do § 2º, do art. 4º, da Lei 8.630, não pode ser compreendido como “público em geral” ou “a coletividade”, dado que inexiste a fixação de direitos e garantias prévias para os usuários, mas apenas e tão-somente terceiros individualizados, cujas cargas são movimentadas segundo ajustes específicos celebrados com o titular da instalação portuária de uso privativo misto, submetidos ao crivo de adequação do regime pela Agência Reguladora do serviço.
Daí, portanto, a lógica jurídica para se exigir do terminal portuário de uso privativo misto a movimentação preponderante de carga própria e, em caráter complementar e subsidiário, a movimentação de cargas de terceiros, sob pena de subversão da ordem jurídica então legitimamente posta.
Na espécie, não é o caso de concomitância do regime público e do regime privado. Isto porque, quando o legislador ordinário entendeu cabível a concorrência entre os regimes, ele foi expresso nesse sentido, como se pode verificar no caso da telefonia móvel[37]. Legitimou, inclusive, o estabelecimento de medidas capazes de impedir a inviabilidade econômica da prestação do serviço no regime público, sabidamente mais oneroso, em razão particularmente da intervenção do Poder Público na seara empresarial (serviços públicos comerciais e industriais).
E veja que na exploração da atividade portuária não é mero caso de omissão (descuido) do legislador, pois na reestruturação do serviço, por meio da edição da Lei nº 10.233/2001, quando promoveu-se a correção de várias atecnias da lei dos portos, teve oportunidade de afastar as divergências doutrinárias ocorrentes na espécie, porém manteve a prescrição originária, entendendo que a vocação para a prestação do serviço público encerrava-se nas estruturas públicas do porto organizado (§ 3º, do art. 4º, Lei 8.630/93).
Nessa quadra, cabe indagar: qual é, em rigor técnico, o conteúdo do ato de autorização para a exploração de terminal de uso privativo misto?
A propósito do assunto, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera in verbis:
Já a expressão ‘autorização’, que aparece no art. 21, XI e XII, tem em mira duas espécies de situações:
a) Uma, que corresponde a hipóteses em que efetivamente há serviço de telecomunicação, como de radioamador ou de interligação de empresas por cabos de fibras óticas, mas não propriamente serviço púbico, mas serviço de interesse privado delas próprias, tal como anotamos no item 4 e nota de rodapé 4. Aí, então, a palavra ‘autorização’ foi usada no sentido corrente em Direito Administrativo para exprimir o ato de ‘polícia administrativa’, que libera alguma conduta privada propriamente dita, mas cujo exercício depende de manifestação administrativa aquiescente para verificação se com ela não haverá gravames ao interesse público;
b) outra, a de abranger casos em que efetivamente está em pauta um serviço público, mas se trata de resolver emergencialmente uma dada situação, até a adoção dos convenientes procedimentos por força dos quais se outorga permissão ou concessão[38].
Um terceiro sentido, esporadicamente afirmado pelo próprio legislador ordinário, ter-se-ia do ato uma peculiar forma de delegação de serviço público, inobstante o conteúdo normativo do art. 175, CF/88 (conflito a ser dirimido no âmbito do controle de constitucionalidade).
É o que sustenta Almiro Couto e Silva, para quem o termo “autorização” do art. 21, XII, é significativo “para possibilitar maior flexibilidade à atuação da União em face de certas atividades econômicas de interesse coletivo”. Ademais, teria o condão de conferir conteúdo lógico ao termo autorização utilizado pelo legislador constituinte no indigitado art. 21 “XII” – ao argumento de que a lei lato sensu não contém termos ou expressões incongruentes, excrescentes ou inúteis. Veja:
20. Por uma interpretação a contrario sensu do art. 175 poder-se-ia entender que só seriam públicos os serviços prestados mediante concessão ou permissão. Assim, a execução, por terceiros, dos serviços e atividades referidos nos inciso XI e XII do art. 21, mediante autorização, induziria desde logo a conclusão ou, de que aqueles serviços não eram públicos ou, embora públicos, seriam de algum modo distintos dos delegáveis mediante concessão ou permissão. Dizendo de outro modo: só estes últimos, os serviços delegáveis mediante concessão ou permissão, porque expressamente considerados pelo art. 175 seriam (a) serviços públicos; ou (b) seriam serviços públicos stricto sensu, e os demais, executados mediante autorização, ou (a) não seriam serviços públicos, rompendo-se, assim o vínculo orgânico com o Estado, ou (b) seriam serviço públicos lato sensu, com características menos severas, e subordinados a regime jurídico mais brando do que os vigentes para o serviço público estrita
Conquanto um critério de definição de serviço público a partir das formas ou espécies pelas quais ele possa ser delegado a terceiros seja lógica e cientificamente insustentável, de qualquer maneira, a coexistência desses três termos, autorização, concessão e permissão, no corpo da Constituição, a qual não pode ter expressões incongruentes, excrescentes ou inúteis, obriga o intérprete a buscar o adequado sentido de cada um deles dentro do sistema.[39].
No caso concreto, é certo que o termo de autorização para a exploração de terminal de uso privativo misto (significativa tal nomenclatura, como já visto) não se coaduna com o conteúdo de forma de delegação de prestação de serviço público, porquanto destituída de características essenciais para a noção, notadamente por inexistente a vocação de atendimento das necessidades da coletividade geral ou “interesse do público”. Antes, visa atender predominantemente às necessidades do próprio autorizatário. Noutras palavras, para que o particular explore atividade de titularidade estatal, mas a exerça em seu próprio benefício, subtraindo-se núcleo essencial para a caracterização e natureza da atividade “serviço público”.
Demais disso, ou bem por isso, eventuais relações jurídicas com terceiros “individualizados”, estabelecidas pelo autorizatário enquanto terminal portuário, encontrar-se-ão confinadas (ou conformadas) pelo direito privado, sem a participação ou responsabilidade do poder público, conforme previsto expressamente no § 2º, do art. 6º, da Lei 8.630. Nesta relação, vigorará a liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, em ambiente de aberta e livre competição, sem fixação de prazo ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação, sem que se faça presente o “regime prevalecente de direito público” – ou não seria esse o sentido, quando não se expõe o regime a nenhuma das prerrogativas e garantias que gizam o regime de direito público? - ocorrente na exploração de serviço público. Assim, no âmbito dos terminais de uso privativo, as obrigações e direitos são aqueles ocorrentes nos empreendimentos caracterizados pela inciativa privada, permeada pela autonomia da vontade.
Tampouco o ato de autorização na espécie é caso de solução emergencial de falta da prestação do serviço público, decorrentes de fatos não previsíveis ou de força maior. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, para abranger efetivamente serviço público, mas para resolver situações emergenciais ou ocasionais, e não num regime de “normalidade” da atividade. No caso vertente, a característica inafastável é a da estabilidade do negócio e da segurança jurídica.
Resulta, então, que a autorização para a exploração de terminal de uso privativo foi utilizada pelo legislador ordinário no sentido corrente do Direito Administrativo, para representar um ato de ‘polícia administrativa’, para liberar o desempenho da atividade, sem o que restaria vedada ao particular. Tem por escopo estabelecer a forma e condições da exploração pelo particular, para a sua conformação ao interesse público, mormente pelo potencial de interferir diretamente em atividade qualificada como serviço público (gravita no campo em que se desenvolve o serviço público portuário).
Com efeito, ao estabelecer como potência do ato a satisfação do interesse próprio do autorizatário, esvazia-se da atividade o conteúdo de serviço público, transmutando-o em mera atividade econômica stricto sensu, porém destituída da plena autonomia da vontade, como de regra ocorre. Antes, condiciona-a numa relação de sujeição especial. A seu turno, não fornece garantia adicional ao contratante do serviço (rectius: usuário peculiar), tendente à realização dos princípios inerentes (cogentes) ao serviço categorizado como “público”.
A autorização, no caso, funciona como ato de outorga, por meio do qual se confere o direito de exploração de atividade, formalmente inserida no campo dos serviços públicos, mas sem a configuração material destes; e, a um só tempo, instrumento de controle e fiscalização do Poder Concedente.
No mesmo sentido, Benedicto Porto Neto assevera que a autorização, in casu, é o ato do Poder Público que libera o desempenho de atividade econômica stricto sensu e, portanto, sujeita ao regime jurídico de direito privado. Desempenha, portanto, o papel de servir de instrumento de aferição da não invasão, pelas atividades econômicas stricto sensu, do campo reservado aos serviços públicos, além de meio de verificação da conformação da exploração da atividade econômica ao interesse público[40].
Não se reconhece, portanto, a existência de dualidade de regimes jurídicos, público e privado, incidindo de forma concomitante sobre a atividade qualificada como serviço público portuário, pois a autorização em testilha encerra por objeto mera atividade econômica, dirigida ao atendimento das necessidades próprias do autorizatário. É o alcance do título, portanto, que desqualifica o seu objeto. Daí porque a exigência de carga própria preponderante, que justifique, por si só, técnica e economicamente, a implantação e a operação da instalação portuária objeto da outorga, é condição de legitimidade do ato de outorga, guardando, assim, inteira compatibilidade do ato administrativo com o marco constitucional (art. 35, II, do Decreto nº 6.620/2008).
Não há falar-se que a Lei nº 8.630/93 tenha instituído a concomitância de regimes, público e privado, a incidir sobre o mesmo objeto (serviço portuário público). O primeiro, nas instalações portuárias de uso público; o segundo, nas instalações portuárias de uso privativo. Não foi isso. O que os qualifica e os distingue é o objeto (seu alcance), pois não coincidentes conforme já demonstrado. De fato, dentro da lógica jurídica que imperou na edição da referida lei, a possibilidade de movimentação de carga de terceiros não representou a instituição de um modelo jurídico híbrido para o setor, dadas as características imprimidas às atividades desenvolvidas pelos Terminais de Uso Privativo, não equiparável à prestação de serviço público.
De fato, nada há na disciplina legal dos portos que possa inferir a concomitância do regime jurídico público e do privado, incidindo sobre a mesma atividade portuária, enquanto serviço público de titularidade da União. Quando o legislador ordinário assim quis (art. 65, da Lei 9.472/97) ele foi taxativo, o que não se verificou no caso vertente.
Conclusão
Embora o Programa Nacional de Desestatização tratasse de atividades “indevidamente” exploradas pelo setor público – em regra, campo não abrangido pelos os serviços públicos – é certo que parte do objetivo, como bem expressado pelo legislador ordinário, era o de permitir que a Administração Pública se concentrasse nas atividades em que sua presença fosse essencial para a consecução das prioridades nacionais. Refletia, portanto, o entendimento de que o Estado assumira, até ali, mais funções de que era capaz de desempenhar adequadamente.
Reconheceu-se, portanto, a crise do próprio Estado Brasileiro (similar às crises enfrentadas noutros países), dado que, afastado de suas funções básicas, imiscui-se no campo de atividades que não lhe eram peculiares (atividades econômicas stricto sensu), contribuindo, dessa forma, para subsequente deterioração dos serviços públicos prestados.
Destarte, parte dessa transformação (reordenação do Estado) foi estruturada, a partir do recrudescimento do mecanismo de delegação dos “serviços públicos”[41], da qual fez parte a Lei nº 8.630/93, com o fim de disciplinar a exploração dos portos públicos, fixando limites à atuação do Estado, bem como modernizar a “anacrônica” estrutura portuária. Inobstante o trespasse dos serviços à particulares, tais serviços permanecem na titularidade do Estado, enquanto atividade que deve ser garantida à coletividade, de forma contínua, universal e atual.
Diversamente, os terminais de uso privativo não se destinam à prestação de serviço público, pois têm como objetivo a movimentação e/ou armazenagem da carga do próprio titular da outorga, de forma preponderante, e, apenas em caráter subsidiário (complementar), carga de terceiros (individualizados). Sua atuação, portanto, encontra-se voltada para atender às necessidades da própria autorizatária (verticalização da cadeia produtiva).
Nessa quadra, a autorização exigível para o desenvolvimento da atividade portuária no terminal de uso privativo é mero “ato de polícia administrativa”. Autorização utilizada pelo legislador ordinário no sentido corrente do Direito Administrativo, para liberar o desempenho da atividade de titularidade do Estado, porém exercida em benefício do próprio titular da outorga.
Decorridos vinte anos da edição da Lei nº 8.630/93, constata-se que as alterações promovidas pela lei dos portos não foram suficientes para superar a anacrônica estrutura portuária, embora se reconheça os avanços obtidos com os arrendamentos portuários, cujos investimentos particulares permitiram o atendimento da demanda em crescimento exponencial.
É chegada a ora, portanto, de nova alteração do marco legal, sob pena de convivermos com notícias como a divulgada no Jornal “Valor Econômico” em que se aborda a iminência de novo marco regulatório para a atração de novos investimentos: “Trata de uma modernização mais do que necessária. Hoje, o Brasil está na 130ª posição entre 142 países no ranking de qualidade portuária do Fórum Econômico Mundial. O custo de exportação por contêiner no país chega a US$ 690, contra US$ 136 de Cingapura, US$ 172 da Alemanha, US$ 250 dos EUA e US$ 320 da China, impulsionado principalmente pelo excesso de burocracia. ‘Mesmo a Índia, com a infraestrutura em frangalhos, consegue um custo menor. O Brasil está atrás de todos os Brics e também de seus dois principais parceiros comerciais vizinhos, o Chile e a Argentina’, diz Gesner Oliveira, da GO Associados”[42].
Como visto, os serviços portuários gozam de características peculiares. São enquadrados na categoria de serviços públicos comerciais e industriais, pelos quais os usuários podem arcar com os seus custos, integralmente. Não há que se falar, nessa relação jurídica institucionalizada, em relação de hipossuficiência a ser neutralizada pelo Poder Público, embora necessária a perseguição da modicidade tarifária, para redução do “Custo Brasil”.
[1] Embora a Lei de Portos mencione concessionária, entende-se devido o termo genérico “delegatária”, por conta da disciplina da Lei nº 9.277/96, que preconiza a possibilidade de delegação a estados e municípios, como meio de descentralização da atividade. Delegatária como gênero, e delegação legal e concessão como espécies.
[2] Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª ed., São Paulo: MALHEIROS, 1999, pág. 305.
[3] Repartição de Fiscalização do Porto e das “Emprezas de Portos”, assim consideradas as empresas, companhias ou sindicatos, que tenham a seu cargo a exploração dos serviços das instalações do porto, e consideradas delegadas imediatas da Repartição de Fiscalização de Portos subordinada ao Ministério da Viação e Obras Públicas (art. 7º, do Regulamento anexo ao Decreto nº 15.693/1922)
[4] Publicada no Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil no dia 5 de junho de 1921, razão pela qual certos informativos dão como data do Decreto esse dia, e não data da sua edição.
[5] Regulamentos de portos organizados (“Art. 1º Nos Portos providos de instalações modernas de cáes, de molhes e obras congêneres, serviços de dragagem e outros necessários ao trafego dos navios, executados por concessão nos termos da lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869, ou por contrato de administração, nos termos dos decretos ns. 4.859, de 8 de junho de 1903 e 6.308, de 14 de fevereiro de 1907, essas instalações e os seus serviços ficarão a cargo do Ministerio da viação e Obras Publicas, que estabelecerá a respectiva “Fiscalização do Porto” ou repartição equivalente, de acordo com as disposições do presente regulamento).”
[6] Segundo Raul Machado Horta, a Constituição de 1934 é verdadeiro marco no território constitucional brasileiro. Acrescenta, in verbis: “O dilatado grau de intervencionismo econômico e social, que a Constituição de 1934 adotou, repercutiu no alargamento da competência da União Federal, para atender às novas dimensões do Estado, e esse processo de dilatação da competência federal acarretou a correspondente redução da autonomia do Estado-Membro”. (in Direito Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: DEL REY, 2002, pág. 55/56).
[7] § 2º - Os Estados terão preferência para a concessão federal, nos seus territórios, de vias-férreas, de serviços portuários, de navegação aérea, de telégrafos e de outros de utilidade pública, e bem assim para a aquisição dos bens alienáveis da União. Para atender às suas necessidades administrativas, os Estados poderão manter serviços de radiocomunicação. (art. 5º).
[8] Regulação Portuária: a regulação jurídica dos serviços públicos de infraestrutura portuária no Brasil. São Paulo: SARAIVA, 2008. Pág. 55.
[9] Hinterlância: região servida por um determinado porto (HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário eletrônico versão 5.11. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa corresponde à 3ª ed., revista e atualizada. Positivo, 2004)
[10] “É permitido a embarcadores ou a terceiros, satisfeitas as exigências da legislação em vigor, construir ou explorar instalações portuárias, a que se refere o Decreto-lei número 6.460, de 2 de maio de 1944, independentemente da movimentação anual de mercadorias, desde que a construção seja realizada sem ônus para o Poder Público ou prejuízo para a segurança nacional, a exploração se faça para uso próprio (art. 26, Decreto-lei n5/66)
[11] É a posição defendida por Carlos Tavares de Oliveira que, ao comentar sobre a criação da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, adverte sobre funções a Autarquia, verbis: “se bem administrada, cingindo-se ao estrito cumprimento da lei, poderá a Antaq prestar bons serviços, caso complete a privatização do setor, assegurando a liberdade dos terminais particulares e evitando a interferência de outros órgãos oficiais nas atividades portuárias...” (in Portos e Marinha Mercante: panorama mundial. São Paulo: LEX EDITORA, 2005, pág. 14);
[12] Segundo Maria Helena Diniz, ciência é “uma ordem de constatações verdadeiras, logicamente relacionadas entre si, apresentando a coerência interna do pensamento consigo mesmo, com seu objeto e com as diversas operações implicadas na tarefa cognoscitiva. O conhecimento científico pretende ser um saber coerente. O fato de que cada noção que o integra possa encontrar o seu lugar no sistema e se adequar logicamente às demais é a prova de que seus enunciados são verdadeiros. Se houver alguma incompatibilidade lógica entre as ideias de um mesmo sistema científico, duvidosas se tornam as referidas ideias, os fundamentos do sistema e até mesmo o próprio sistema. (In Compêndio de introdução à ciência do direito. 8ª ed. São Paulo: SARAIVA, 1995, pág. 17).
[13] De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. Volume III J-P, 11ª ed. Rio de Janeiro: FORENSE, 1991, pág. 230.
[14] Art. 21. Compete à União: (...) XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...) os portos marítimos, fluviais e lacustres;
[15] Para o Ministro Gilmar Mendes, a Constituição tem por meta não apenas erigir a arquitetura normativa básica do Estado, ordenando-lhe o essencial das suas atribuições e escudando os indivíduos contra eventuais abusos, como, e numa mesma medida de importância, tem por alvo criar bases para a convivência livre e digna de todas as pessoas, em um ambiente de respeito e consideração recíprocos. Isso reconfigura o Estado, somando-lhe às funções tradicionais as de agente intervencionista e de prestador de serviços. In Curso de Direito Constitucional, 6ª ed., São Paulo: SARAIVA, 2011. pág. 64
[16] A superioridade das normas constitucionais, afinal, além de gerar a invalidade dos atos que as contrariam, também se expressa no efeito de condicionar o conteúdo de normas inferiores. São, nesse sentido, normas de normas. As normas constitucionais, situadas no topo da pirâmide jurídica, constituem o fundamento de validade de todas as outras normas inferiores e, até certo ponto, determinam o conteúdo material destas últimas. . In Curso de Direito Constitucional, 6ª ed., São Paulo: SARAIVA, 2011. pag. 76.
[17] A ordem econômica na Constituição de 1988. 13ª ed. São Paulo: MALHEIROS, 2008, págs. 90.
[18] “Nesta linha, Geraldo Vidigal (ob. cit., pp. 99-100) anota coexistirem na ordenação constitucional brasileira – refere-se à Emenda Constitucional n. 1/69 – formas de participação do Estado na atividade econômica (serviços público de definição constitucional, monopólios e explorações competitivas, em suplemento à iniciativa privada) e formas de ação do Estado sobre a atividade econômica (ações visando à direção de toda a economia e ações visando à intervenção na atividade econômica privada). Em regra, todavia, classificam-se não as formas de atuação estatal em relação ao processo econômico, mas sim as formas de intervenção do estado no domínio econômico (v. meu Elementos de Direito Econômico, cit., pp. 63-64)”. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13ª ed., São Paulo: MALHEIROS, 2008. págs. 146.
[19] Curso de direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, pág. 620.
[20] Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: ATLAS, 2002, pág. 99.
[21] Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. pág. 314.
[22] Curso de Direito Administrativo. São Paulo: SARAIVA, 2005. pág. 482.
[23] Filho, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 23ª ed., Rio de Janeiro: LUMEN JURIS, 2010. Pág. 348.
[24] Em face da atual disciplina conferida pela Carta Magna em vigor, com a convergência dos institutos, a doutrina utiliza da expressão dos investimentos necessários, para definir o cabimento de um ou de outro; a concessão é para os casos de exigência de maior vulto de investimentos.
[25] Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo: ATLAS, 2002. Pág. 99.
[26] Diniz, Maria Helena. Compêndio de Introdução á Ciência do Direito. 8ª ed., São Paulo: SARAIVA, 1995. Pág. 433.
[27] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF).
[28] Direito das concessões de serviço público. Inteligência da Lei 8.987/1995(Parte Geral). São Paulo: MALHEIROS, 2010. págs. 20/21.
[29] Curso de Direito Administrativo. São Paulo: SARAIVA, 2005. pág. 43.
[30] Comentário contextual à Constituição. 8ª ed., São Paulo: MALHEIROS, 2012. pág. 272.
[31] Curso de Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: MALHEIROS, 2004, pág. 622.
[32] A constituição de 1946 foi substituída pela de 1967. Antes disso, porém, em razão das sucessivas emendas, que se seguiram ao Golpe Militar de 1964, respondem pela completa descaracterização daquela Carta.
[33] Art. 151. A lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias de serviços públicos federais, estaduais e municipais.
Parágrafo único – será determinada a fiscalização e a revisão de tarifas dos serviços explorados por concessão, a fim de que os lucros dos concessionários, não excedendo a justa remuneração do capital, lhes permitam atender as necessidades de melhoramentos e expansão desses serviços. Aplicar-se-á a lei às concessões feitas no regime anterior, de tarifas estipuladas para todo o tempo de duração do contrato.
[34] Sobre esse particular, nem a doutrina nem a jurisprudência discrepa dessa conclusão, pois o contrato de arrendamento portuário (Inciso I, art. 4º, caput, da Lei nº 8.630) encerra não só o direito de uso de um bem público pelo particular (concessão de direito real de uso), mas também confere o direito de exploração de determinada atividade qualificada como serviço público federal (concessão de serviço público).
[35] Relação de fornecedor/usuário, regida pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90.
[36] Sobre o poder normativo das agências reguladoras, Maria Sylvia Zanella di Pietro assevera que “a elas está sendo dado o poder de ditar normas com a mesma força de lei e com base em parâmetros, conceitos indeterminados, standards nela contidos”. Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo: ATLAS, 2002. Pág. 406.
[37] Art. 65. Cada modalidade de serviço será destinada à prestação:
I - exclusivamente no regime público;
II - exclusivamente no regime privado; ou
III - concomitantemente nos regimes público e privado.
§ 1° Não serão deixadas à exploração apenas em regime privado as modalidades de serviço de interesse coletivo que, sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres de universalização.
§ 2° A exclusividade ou concomitância a que se refere o caput poderá ocorrer em âmbito nacional, regional, local ou em áreas determinadas.
Art. 66. Quando um serviço for, ao mesmo tempo, explorado nos regimes público e privado, serão adotadas medidas que impeçam a inviabilidade econômica de sua prestação no regime público.
Art. 67. Não comportarão prestação no regime público os serviços de telecomunicações de interesse restrito.
[38] Curso de Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: MALHEIROS, 2004. pág. 638/9.
[39] Privatização no Brasil e o novo exercício de funções públicas por particulares. Serviço público à brasileira? In. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. V. 27, Porto Alegre, 2003. Págs. 209-237.
[40] Concessão de serviço público no regime da Lei nº 8.987/95. São Paulo: MALHEIROS, 1998. pág. 140.
[41] Exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres como serviço público federal (art. 21, XII “f”, CF/88).
[42] Vasconcellos, Carlos. VALOR ECONÔMICO. São Paulo. 26/10/2012, Seção Suplementos.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ). Com pós-graduação em Direito Processual Civil pela UNISUL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Carlos Afonso Rodrigues. Da natureza jurídica da operação portuária no âmbito dos terminais portuários de uso privativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2012, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/32866/da-natureza-juridica-da-operacao-portuaria-no-ambito-dos-terminais-portuarios-de-uso-privativo. Acesso em: 26 nov 2024.
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