RESUMO:  O objetivo da presente monografia é realizar uma análise constitucional do instituto jurídico da desapropriação indireta, que pode ser definido como sendo a usurpação de um bem privado pelo Estado, que se dá em desconformidade com as normas desapropriatórias. O estudo pretende examinar, especialmente, se a resposta dada pela nossa jurisprudência a esse problema, consistente em assegurar, com base nos ditames do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41, indenização por perdas e danos ao particular, mas sem a devolução do bem expropriado, atende, ou não, aos princípios da Lei Maior. Uma vez apresentados, nos dois primeiros capítulos da pesquisa, os conceitos básicos do tema em debate, tais como as noções acerca do direito administrativo, da intervenção do Estado na propriedade e das espécies desapropriatórias, será travada, no terceiro capítulo, uma discussão sobre o direito fundamental de propriedade e a vulnerabilidade que o artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41 fatalmente lhe impõe. Logo após, suscitar-se-á a ideia de que é interessante, a partir dos termos do referido dispositivo de lei, estabelecer uma concordância prática (ou harmonização) entre as normas constitucionais que asseguram, de um lado, o direito de propriedade do particular e aquelas que, de outro, garantem a intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos eventualmente atrelados ao bem desapropriado, bem como asseguram a economicidade e a eficiência da gestão pública. No intuito de alcançar essa harmonização, far-se-á uma sugestão: firmar uma interpretação bastante restrita dos dizeres do citado artigo 35, de maneira que, quando da ocorrência de casos de desapropriação indireta, garanta-se a convivência dos bens jurídicos constitucionais listados acima.

Palavras-chave: Direitos Administrativo e Constitucional. Desapropriação indireta. Artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41. Direito de propriedade versus intangibilidade da obra e serviço públicos, economicidade e eficiência. Concordância prática ou harmonização.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO. 1.1 O Direito Administrativo e a intervenção do Estado na propriedade. 1.2 Desapropriação: noções básicas. 1.3 Competências no processo desapropriatório. 1.4 Espécies de desapropriação. 1.5 Ritos da desapropriação. 2. A DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. 2.1 Desapropriação indireta: conceito. 2.2 Fundamento legal da desapropriação indireta. 23 2.3 A desapropriação indireta como fato cotidiano: tópica jurisprudencial. 2.3.1 Desapropriação indireta versus limitação administrativa. 2.3.2 Prazo prescricional na desapropriação indireta. 28 2.4 Entendimento dos Tribunais Superiores e da doutrina pátria sobre a aplicabilidade do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41. 3. O ARTIGO 35 DO DECRETO-LEI N. 3.365/41 À LUZ DA CONS-TITUIÇÃO FEDERAL. 31 3.1 O direito de propriedade em xeque. 3.2 Concordância prática entre as normas constitucionais que asseguram o direito de propriedade e aquelas que garantem a intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos, a economicidade e a eficiência. 3.3 A interpretação conforme sem redução de texto do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41. 3.4 A desapropriação indireta como realização da teoria do fato consumado. 3.5 Análise crítica do instituto da desapropriação indireta no ordenamento jurídico brasileiro. 36 40 41 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. 

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem a pretensão de realizar uma análise doutrinária do instituto jurídico da desapropriação indireta, que, em pouquíssimas palavras, pode ser definido como sendo a usurpação de um bem privado pelo Estado, que se dá em desconformidade com as normas desapropriatórias.

Isto é, o estudo pretende examinar, através de critérios hermenêuticos consagrados, a desapropriação indireta à luz da Constituição Federal, investigando, especialmente, se a resposta dada pela nossa jurisprudência a esse problema, qual seja, de assegurar, com base nos ditames do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41, indenização por perdas e danos ao particular, mas sem a devolução do bem expropriado, atende, ou não, aos princípios da Lei Maior.

Antes, porém, cumpre, no capítulo inaugural, fazer uma breve introdução ao Direito Administrativo, ramo do Direito no qual se insere o tema propriamente dito da pesquisa, bem como é de rigor situar a matéria estudada como sendo, ao lado das servidões, limitações, requisições etc., uma das modalidades de intervenção do Estado na propriedade.

Ainda no primeiro capítulo, o instituto da desapropriação será apresentado. Seu conceito e natureza jurídica, além dos fundamentos legais, espécies e ritos processuais serão descritos com alguma ligeireza, no intuito de, sem esgotar o assunto ou trazer inovações, preparar o leitor para o debate que seguirá.

No segundo capítulo, adentra-se no tema específico da desapropriação indireta. Primeiramente, serão colacionadas algumas noções doutrinárias sobre essa forma expropriatória, assim como serão feitas considerações introdutórias sobre o dispositivo legal que dá ensejo à celeuma discutida neste estudo, a saber, o artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41. Em seguida, será bastante útil comentar um pouco sobre a desapropriação indireta na vida cotidiana das pessoas, abordando, com brevidade, hipóteses de ocorrência e casos práticos alçados aos Tribunais, notadamente, às Cortes Superiores.

Feitas as considerações liminares, é no terceiro capítulo que se deseja, fazendo uso do método de pesquisa dedutivo, solucionar a questão sub examine.

De início, será travada uma discussão sobre o direito fundamental de propriedade e a vulnerabilidade que o artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41 fatalmente lhe impõe, haja vista que impede, em casos de desapropriação irregular, a devolução do bem ao expropriado, o qual deve resignar-se com mera indenização compensatória.

Logo após, suscitar-se-á a ideia de que é interessante, a partir dos termos do referido dispositivo de lei, estabelecer uma concordância prática (ou “harmonização”) entre as normas constitucionais que asseguram, de um lado, o direito de propriedade do particular e aquelas que, de outro, garantem a intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos eventualmente atrelados ao bem desapropriado, bem como asseguram a economicidade e a eficiência da gestão pública.

No intuito de alcançar essa harmonização, far-se-á uma sugestão: firmar uma interpretação restrita dos dizeres do multicitado artigo 35, de maneira que, quando da ocorrência de casos de desapropriação indireta, garanta-se a força normativa e a convivência dos bens jurídicos constitucionais listados acima, que respaldam tanto os direitos fundamentais do indivíduo quanto os mais legítimos interesses da coletividade.

Ainda no corpo do terceiro capítulo, abrir-se-á subtópico específico para debater, sobretudo, a posição e as consequências da desapropriação indireta no ordenamento jurídico brasileiro, dentro do qual serão ventiladas, além de outras questões, medidas legais e judiciais que podem diminuir a incidência de casos de desapropriação indireta no país. Em sequência, seguem as considerações finais e referências bibliográficas.

1. O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO

1.1 O Direito Administrativo e a intervenção do Estado na propriedade

O Direito, no dizer do professor José Flóscolo da Nóbrega, é um sistema normativo que se estrutura em torno de um interesse básico, qual seja, a necessidade de segurança e ordem na vida social[1]. Na definição informal de Rubens Limongi França, é, simplesmente, “o conjunto das normas sociais coercitivas, que regem a questão do meu e do seu” [2].

Para que fosse bem estudado e compreendido, o Direito, consoante vetusta tradição inaugurada pelos romanos, acabou por ser dividido em diferentes áreas de interesse.

Primeiramente, fez-se uma grande divisão entre Direito público e privado – conforme lição de Miguel Reale, a acepção atual de Direito público cuida, sobretudo, do interesse geral e das relações de subordinação entre o Estado e os súditos, ao passo que o Direito privado refere-se, principalmente, a interesses particulares e enseja relações de coordenação entre as pessoas[3]. Tempos depois, os juristas, sob a influência dos métodos cartesianos e do cientificismo de Auguste Comte, empreenderam outros tantos retalhos no Direito, separando essa esfera de saber em distintos ramos, de modo que, dentro do semicírculo do Direito público, se divisasse, dentre outros, o Direito Administrativo.

O Direito Administrativo, ainda no escólio de Reale, tem como objeto principal:

o sistema de princípios e regras relativos à realização de serviços públicos, destinados à satisfação de um interesse que, de maneira direta e prevalecente, é do próprio Estado, em razão, porém, da sociedade ou do bem comum.[4]

Ocorre que, mais do que se ocupar da realização dos serviços públicos – entendidos estes como sendo uma atividade prestada pelo Estado e por seus delegados com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas[5] – o Direito Administrativo debruça-se, por inteiro, sobre uma das funções do Estado: a administrativa. Esta função se materializa não só pela prestação de serviços públicos, mas também através do exercício do poder de polícia e da atuação do Estado no domínio econômico, tudo em consonância com dois princípios estruturantes que regem o Direito Administrativo, quais sejam, a supremacia e a indisponibilidade do interesse público.

No que se refere às demais funções do Estado – política, jurisdicional e legislativa – sabe-se que são objeto de estudo mais pormenorizado de outras disciplinas jurídicas, tais como a Teoria Geral do Direito, o Direito Constitucional, o Direito Processual etc., e, também, de outros campos de conhecimento extrajurídicos, a exemplo da Filosofia, da Ciência Política, dentre outros.

Ainda em relação ao objeto do Direito Administrativo, é de rigor comentar, especificamente, para os fins do presente trabalho, acerca da intervenção do Estado na propriedade, que, como dito, consiste numa das formas de expressão da função administrativa. A referida intervenção consiste, segundo José dos Santos Carvalho Filho, numa atividade estatal qualquer que, com lastro em lei, pretende ajustar a propriedade ao seu fim social[6]. Trata-se, de certa maneira, tanto de uma forma peculiar de expressão do poder de polícia inerente à Administração, quanto de uma modalidade de atuação estatal no domínio econômico.

Outrossim, ao tempo em que se apresenta como uma das expressões da função administrativa – item de estudo, portanto, do Direito Administrativo –, o tema da intervenção do Estado na propriedade é também objeto de análise de outros ramos do Direito, tais como, o Direito Constitucional e o Direito Econômico. O Direito Constitucional debruça-se sobre as diretrizes principiológicas estabelecidas pela Carta Magna para fins de interferência do Poder Público na propriedade privada. Já o Direito Econômico investiga as formas de atuação estatal no meio social e suas implicações para os direitos fundamentais dos agentes econômicos[7].

Historicamente, o tema da intervenção do Estado na propriedade dá azo a grave controvérsia, visto que, a depender da ideologia econômica defendida, pode-se questionar qual seria a medida ideal de interferência dos órgãos públicos na esfera de vida privada das pessoas.

Para os defensores do Estado liberal puro, assim como fora concebido pelo escocês Adam Smith, o Poder Público deve atuar o mínimo possível na vida cotidiana dos cidadãos, de sorte que sua presença seja sentida apenas na garantia da segurança interna, na defesa das fronteiras – para assegurar a soberania do Estado face aos outros países – e no respeito aos contratos e à propriedade privada. A ideia é interferir pouco, para não impedir que o mercado, a partir do gênio e do instinto dos empreendedores, exerça sua autorregulação[8]. A característica prevalecente é a atuação estatal negativa, é a declaração de direitos e liberdades individuais. A máxima é “deixai fazer, deixai passar”.

Já, no extremo oposto, para os partidários do Estado social (socialista ou não), a concepção defendida é a de um Estado provedor, pró-ativo, cujos tentáculos estendem-se sobre praticamente todas as atividades humanas. Aqui, o Poder Público chama a si a responsabilidade pela assistência e previdência social, educação e saúde dos súditos. Sua característica marcante é a atuação positiva na busca da igualdade material entre aqueles que lhe estão submetidos[9]. Sua máxima é a do Estado máximo.

O que importa é que, num ou noutro extremo ideológico, ou ainda em qualquer outro ponto situado entre os dois pólos, numa espécie de Estado misto, é inevitável constatar que algum grau de intervenção estatal na propriedade privada deve haver para que o Poder Público exerça, minimamente que seja, suas funções básicas. Caso contrário, o Estado estaria manietado e não poderia impor aos particulares o poder de império (ius imperii) que lhe é ínsito – que, aliás, é a própria expressão de sua soberania –, e suas relações não seriam marcadas pela verticalidade que lhes caracteriza.

Pois bem. Assumindo a intervenção do Estado na propriedade como uma realidade inerente às sociedades modernas organizadas, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro nos dias atuais, a começar pela sua Carta Maior, seguida pela caudalosa legislação infraconstitucional, estabelece inúmeras modalidades de intervenção. No campo administrativo, cabe citar o tombamento, a requisição, a ocupação temporária, as limitações administrativas, a servidão administrativa e a mais controversa dessas modalidades: a desapropriação.

Todas essas modalidades de intervenção citadas, à exceção do instituto jurídico da desapropriação, são formas interventivas restritivas, isto é, impõem restrições à utilização da propriedade privada, sem usurpá-la do particular. A desapropriação, por outro lado, consiste numa modalidade supressiva, que, como o nome mesmo indica, acaba por extrair o bem do patrimônio do seu dono[10].

Cada uma das modalidades possui um regramento jurídico e um grau de interveniência próprios e, ademais, atendem a um interesse peculiar da Administração pública. Sem embargo da importância do estudo doutrinário das demais, o certo é que, dentre as espécies interventivas, a desapropriação merece especial atenção nesta pesquisa.

1.2 Desapropriação: noções básicas

A desapropriação[11] consiste na mais dramática forma de intervenção do Estado na propriedade. Isso porque, a partir dela, o particular perde, em definitivo, o domínio que tinha sobre a coisa desapropriada. Etimologicamente, a palavra “desapropriar” indica o ato de retirar a propriedade de alguém. Trata-se da retirada de um bem da esfera patrimonial de uma pessoa que se dá de maneira unilateral, à revelia de sua vontade, com o intuito de atender apenas o interesse do Estado (que, em última análise, materializa o interesse público).

A partir dos dispositivos normativos da Constituição Federal de 1988 que abordam a temática da desapropriação, José Carlos de Moraes Salles estabelece definição positiva e exauriente deste instituto jurídico de direito público, como sendo aquele:

(...) que se consubstancia em procedimento pelo qual o Poder Público (União, Estados-membros, Territórios, Distrito Federal e Municípios), as autarquias ou as entidades delegadas autorizadas por lei ou contrato, ocorrendo caso de necessidade ou de utilidade pública, ou, ainda, de interesse social, retiram determinado bem de pessoa física ou jurídica, mediante justa indenização, que, em regra, será prévia e em dinheiro, podendo ser paga, entretanto, em títulos da dívida pública ou da dívida agrária, com cláusula de preservação do seu valor real, nos casos de inadequado aproveitamento do solo urbano ou de Reforma Agrária, observados os prazos de resgate estabelecidos nas normas constitucionais respectivas.[12]

De forma mais sintética, José dos Santos Carvalho Filho conceitua, doutrinariamente, a desapropriação com os seguintes termos:

Desapropriação é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização.[13]

Como visto nas definições colacionadas, a desapropriação consiste não somente na retirada de um bem de determinada pessoa, mas, de forma mais acurada, em todo o procedimento que culmina com esse fato administrativo, entendida a expressão “procedimento” como sendo um conjunto de atos concatenados e adrede ordenados para atingirem um objetivo comum – no caso da desapropriação, o objetivo é a transferência do bem para o acervo patrimonial do Estado-expropriante. Assim, a desapropriação, quase que invariavelmente, segue um rígido trâmite para que seja concluída, que se inicia com a declaração expropriatória e atravessa outras tantas fases, tais como a avaliação do bem, a indenização do particular, a imissão na posse etc.

É relevante ainda afirmar, com espeque na doutrina majoritária, que o instituto da desapropriação, assim como todas as outras espécies de intervenção estatal na propriedade, fundamenta-se na máxima (atualmente cristalizada no princípio administrativo da supremacia do interesse público) de que o interesse público deve prevalecer diante do interesse particular. Nesse ponto, por todos os estudiosos da matéria, vale lembrar os dizeres de Pontes de Miranda, para quem “o fundamento da expropriação está em que, havendo conflito entre o interesse público e o interesse privado, que se não previu em lei, se há de atender àquele, dando-se satisfação a esse, indiretamente” [14].

Dessa maneira, ao atender ao interesse público, a desapropriação sem dúvida fragiliza o direito fundamental à propriedade a todos assegurado pela Lei Maior, no caput de seu artigo 5º. Nada obstante, essa fragilização dá-se com amparo na mesma Constituição – especificamente no artigo 5º, XXIV, alem de outros dispositivos – e apenas em episódios determinados e devidamente justificados, sempre visando atingir ao bem comum. Por essa razão é que, quando bem executada, dentro dos rigores da legislação, a desapropriação não infirma o ordenamento jurídico; ao revés, ela materializa a justiça social e se conforma aos mais nobres postulados da Constituição da República.

A Carta de 1988, no dispositivo retrocitado, determina que a desapropriação pode ocorrer “por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”. Isto é, a desapropriação somente está de acordo com os ditames da Lei Maior quando observa os tais pressupostos. A uma, a intervenção deve estar respaldada em necessidade/interesse público ou em interesse social; a duas, deve ter como contrapartida o justo ressarcimento em espécie ao dono do bem, adimplido antes de concluído o procedimento, ressalvadas específicas hipóteses encartadas no próprio texto constitucional que serão comentadas mais adiante.

Quanto ao fundamento normativo da desapropriação no ordenamento jurídico brasileiro, vale citar o art. 24, XXIV, da Carta da República, além do artigo 243 e dos Capítulos II e III do Título VII do mesmo diploma, que tratam, dentro do tema afeito à ordem econômica e financeira, das políticas urbana, agrícola e fundiária e da reforma agrária (artigos 182 a 191).

Em relação à legislação infraconstitucional, há vários diplomas que abordam, ainda que episodicamente, aspectos da desapropriação. Mas, as espécies normativas mais importantes são o Decreto-lei n 3.365/41, também chamado de lei geral expropriatória, que trata da desapropriação por interesse público, e a Lei n. 4.132/62, que define os casos de desapropriação por interesse social e dispõe acerca de sua aplicação. Citem-se, ainda, a Lei n. 8.629/93 e a Lei Complementar n. 76/93, que disciplinam a desapropriação para fins de reforma agrária; o Decreto-Lei n. 1.075/70, que se refere à desapropriação em prédios residenciais urbanos; e a Lei n. 8.257/91, que aborda questões processuais da desapropriação confiscatória.

1.3 Competências no processo desapropriatório

No que diz respeito à competência relativa à matéria da desapropriação, é oportuno fazer uma diferenciação quanto às competências legislativa, declaratória e executória.[15]

A competência para legislar sobre desapropriação é privativa da União, salvo as seguintes hipóteses: i) edição de lei complementar, que autorize os Estados a legislar sobre questões específicas relacionadas à matéria; e ii) inexistência de lei federal dispondo sobre normas gerais acerca do tema, podendo, nesse caso, os Estados exercerem a competência legislativa plena, para atender as suas peculiaridades, até que sobrevenha lei federal, que suspende a eficácia da norma estadual no que lhe for contrário. Tudo nos termos dos artigos 22, II, 22, parágrafo único, e 24, §§3º e 4º, da Constituição Federal em vigor.

De outro lado, a competência declaratória, isto é, a competência para declarar a necessidade/utilidade pública ou interesse social de um bem com fins de desapropriá-lo, pode ser feita, genericamente, pelo Presidente da República, Governador, Prefeito ou Interventor – por este, caso a entidade administrativa estadual ou municipal esteja sob intervenção, respectivamente, federal ou estadual. A declaração é realizada, formalmente, mediante decreto, já que esta é a espécie de ato administrativo de utilização típica dos Chefes do Poder Executivo.

Todavia, a declaração pode dar-se, ainda, através de ato do próprio Poder Legislativo. E, também, por parte do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes - DNIT e Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, ambas autarquias federais, em hipóteses específicas relacionadas ao seu respectivo campo de atuação. A determinação específica de cada competência declaratória encontra-se no Decreto-lei n. 3.365/41, artigos 6º e 8º; na Lei 10.233/2001, artigo 82, inciso IX; e, também, na Lei 9.074/95, artigo 10.

Já a competência executória, ou seja, a competência para levar à frente todo o procedimento de desapropriação – inicialmente na esfera administrativa e, depois, se for o caso, por meio de ação judicial, culminando com a tomada do bem –, está adstrita à União, aos Estados, Municípios e Territórios, mas não somente a esses entes, visto que o artigo 3º do Decreto-lei n. 3.365/41 determina, in verbis, que “os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções delegadas de poder público poderão promover desapropriações mediante autorização expressa, constante de lei ou contrato”.

Enfim, registre-se que, regra geral, todos os bens podem sofrer desapropriação, sejam eles móveis ou imóveis, tangíveis ou não, conforme o artigo 2º da lei geral expropriatória, ressalvadas situações especiais, como é o caso da impossibilidade de um ente federativo desapropriar bens de outro ente que não lhe seja “hierarquicamente inferior” ou, melhor dizendo, que não seja submetido a sua área de atuação – assim, em se tratando de bens públicos, só o que pode acontecer é a União desapropriar bens dos Estados e estes desapropriarem bens de seus respectivos Municípios; jamais a ordem inversa[16].

Em acréscimo, saliente-se que, exatamente porque constitui ato coercitivo operado pelo Estado que se propõe a realizar o bem comum, a desapropriação se enquadra nas formas originárias de aquisição da propriedade. Afinal, a consumação da transferência do bem se dá sem necessidade de concordância da parte expropriada.

1.4 Espécies de desapropriação

Da análise das fontes normativas que compõem nossa ordem jurídica, especialmente a Constituição da República, divisam-se diferentes tipos de desapropriação, todos com objetivos, requisitos e ritos próprios

O artigo 5º, XXIV, da Constituição Federal estabelece os pressupostos básicos da desapropriação, ao permitir a intervenção estatal apenas quando ocorrerem casos de “necessidade ou utilidade pública”, ou, ainda, “de interesse social”. A partir desses requisitos, é possível distinguir as formas gerais de desapropriação, isto é, as modalidades expropriatórias cujos fundamentos são extraídos diretamente desse comando normativo. De outros dispositivos constitucionais específicos, por sua vez, extraem-se, imediatamente, as formas especiais de desapropriação.[17]

Adotando-se o sobressalente entendimento de Eurico Sodré sobre a exegese do citado artigo 5º, XXIV, para quem os conceitos de “necessidade e utilidade pública se equiparam quando se trata de desapropriar, podendo, por isto, ser consideradas como sinônimos”[18], é possível distinguir duas formas gerais de desapropriação: a desapropriação por utilidade pública e a desapropriação por interesse social.

 A desapropriação por utilidade pública, cujo fundamento legal encontra-se nos Decretos-lei n. 3.365/41 e n. 1.075/70, consiste na forma mais tradicional de desapropriação, sendo ensejada por motivos vários, sejam eles de (i) segurança nacional, (ii) defesa do Estado, (iii) socorro público em caso de calamidade, (iv) salubridade pública, (v) criação e melhoramento de centros de população, (vi) aproveitamento industrial das minas, jazidas minerais, águas e da energia hidráulica, (vii) exploração/conservação dos serviços públicos, (viii) funcionamento dos meios de transporte coletivo, ou, ainda, outras tantas situações enumeradas pela lei geral expropriatória em seu artigo 5º.

De outra forma, a desapropriação por interesse social encontra amparo infraconstitucional na Lei n. 4.132/62 e é decretada para “promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social” (artigo 1º, in verbis), podendo acontecer em diversas situações concretas, para fins de (i) estabelecimento e manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola, (ii) construção de casas populares, (iii) proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de águas, (iv) utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características, sejam apropriadas ao desenvolvimento de atividades turísticas, etc., conforme o artigo 2º da referida lei.

Além dessas espécies gerais, há três formas especiais de desapropriação: a desapropriação rural, a desapropriação urbanística sancionatória e a desapropriação confiscatória, cujos fundamentos normativos, como dito, são extraídos imediatamente de outros dispositivos constitucionais, diversos do mencionado artigo 5º, XXIV, da Carta Fundamental.

A desapropriação rural possui fundamento constitucional inserido no artigo 184 da Constituição da República, sendo ainda disciplinada pela Lei n. 8.629/93 e pela Lei Complementar n. 76/93. Sua finalidade é a promoção da reforma agrária. Trata-se, na realidade, de uma subespécie de desapropriação por interesse social[19] – perfeitamente subsumível às hipóteses do artigo 2º da Lei 4.132/62 –, porquanto se destine a atenuar desigualdades econômicas, recaindo sempre em imóveis rurais que não atendam a sua função social rural

A respeito, entendem-se as propriedades cumpridoras de sua função social rural como sendo aquelas que, pela dicção do artigo 186, I a IV, da Constituição Federal, (i) dispõem de aproveitamento racional e adequado; (ii) utilizam adequadamente os recursos naturais disponíveis e preservam o meio ambiente; (iii) são palco de relações de trabalho regulares; e (iv) favorecem tanto ao bem estar do proprietário quanto dos trabalhadores[20]. Por oportuno, destaque-se que a Constituição declara, em seu artigo 185, que, em qualquer hipótese, são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária a pequena e média propriedade rural (desde que o dono não possua outra), bem como a propriedade produtiva.

A desapropriação urbanística sancionatória encontra amparo no artigo 182, §4º, III, da Carta de Direitos, dispositivo este regulado pela Lei n. 10.257/01, autodenominada de Estatuto das Cidades. Essa espécie interventiva tem como objetivo adequar determinado imóvel urbano ao Plano Diretor da sua localidade, consistindo numa sanção imposta, como ultima ratio, ao proprietário renitente, que se recusa a atender aos reclames da Administração municipal, cujo interesse é conformar o bem privado à sua função social urbana.[21]

A desapropriação confiscatória, enfim, está prevista no artigo 243 da Constituição Federal, sendo disciplinada pela Lei n. 8.257/91. Trata-se de uma espécie expropriatória não indenizável, que recai sobre imóveis onde se descobre o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas[22].

Consoante o entender de Kiyoshi Harada, trata-se de:

(...) uma desapropriação-sanção. No caso, a propriedade, além de não cumprir a função social, que integra a própria estrutura do direito de propriedade, como vimos, está sendo utilizada de forma nociva à sociedade. Tamanha a gravidade da infração, decorrente desse tipo de disfunção social da propriedade, que o legislador constituinte, não satisfeito com a tipificação criminal, impôs ao proprietário a perda dessa propriedade, sem direito a qualquer indenização. [23] 

Paralelamente à sanção penal naturalmente aplicável à pessoa responsável pela cultura ilícita, a Constituição da República determina que a Administração Pública deve desapropriar  a referida propriedade imobiliária – trata-se de um confisco, a bem da verdade – e nela realizar o assentamento de colonos, os quais promoverão, ali, o plantio e a colheita de gêneros alimentícios e medicamentosos.

1.5 Ritos da Desapropriação

A depender da espécie de desapropriação estudada – e das peculiaridades do caso concreto, tais como a urgência para a tomada da posse do bem –, os ritos a serem observados pelo ente expropriante para a consumação do procedimento interventivo podem variar bastante. Em sendo assim, o trâmite da desapropriação por interesse público, encartado no Decreto-lei n. 3.365/41, por ser a forma mais corriqueira de desapropriação e por se aplicar às demais espécies supletivamente, será debatido com mais detalhes no presente estudo.

Antes de mais nada, diga-se que é possível, consoante o magistério de José dos Santos Carvalho Filho, dividir a desapropriação em duas grandes fases: a declaratória e a executória[24].

A fase declaratória tem início quando a Administração Pública manifesta seu interesse em desapropriar o bem. Esse ato volitivo, como dito alhures, materializa-se através da declaração expropriatória, que, normalmente, é formalizada mediante decreto do Chefe do Poder Executivo. Trata-se de um ato administrativo que, em seu bojo, deve abrigar um conteúdo mínimo, qual seja: a exata descrição dos bens a serem desapropriados e a finalidade concreta da desapropriação – feita a ressalva de que outros estudiosos, tais como Maria Sylvia Zanella di Pietro, entendem que há também a necessidade de que se detalhe, no decreto, o fundamento legal do ato expropriatório.[25]

Como bem ensina Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, da fase declaratória, que é o ponto de partida do procedimento expropriatório, “decorrem efeitos explícitos e implícitos” [26], os quais José dos Santos Carvalho Filho elenca com objetividade, sendo eles:

(...) 1) permissão às autoridades competentes no sentido de penetrar no prédio objeto da declaração, sendo possível o recurso à força policial no caso de resistência; 2) início da contagem do prazo para ocorrência da caducidade do ato; 3) indicação do estado em que se encontra o bem objeto da declaração para efeito de fixar a futura indenização.[27]

Noutra senda, a fase executória consiste no momento procedimental em que o Poder Público age, efetivamente, para lograr a transferência do bem para o seu patrimônio, podendo essa fase ser iniciada tão logo seja feita a declaração expropriatória. Interessante notar, a respeito, que a referida consumação do processo de desapropriação pode ocorrer de forma administrativa, também chamada de “amigável”, ou através da via judicial.

Ela dá-se de forma administrativa quando o proprietário do bem concorda com o preço oferecido pela Administração e ambas as partes registram, solenemente, o negócio jurídico – observe-se que, nesta hipótese, consuma-se, na prática, uma espécie de ajuste de compra e venda, já que o acordo guarda um mínimo de bilateralidade.

De outra maneira, a fase executória segue a via judicial quando não se perfaz acordo entre o ente expropriante e o dono do bem. Pois bem. A partir daí, a desapropriação passa a seguir trâmite próprio que se desenrola em juízo, conforme os artigos 11 e seguintes da lei geral expropriatória.

Tomando como base a referida norma, sabe-se que incumbe ao expropriante ajuizar ação de desapropriação em face do proprietário do bem objeto da refrega. Na petição inicial da demanda, deve o postulante indicar qual a sua oferta de preço, bem como juntar a planta ou descrição do bem.

Por outro lado, ao contestar a ação, o requerido deve restringir sua fundamentação a eventuais vícios do processo, isto é, a questões preliminares, e, no mérito da causa, deve ele discutir somente o preço oferecido pela parte adversa, haja vista que a abordagem de qualquer outra matéria somente é admitida, pela legislação vigente, mediante ação direta e autônoma, eventualmente ajuizada pelo particular-expropriado.

Iniciada a demanda, a causa tramitará perante o foro cível competente até ulterior sentença, que, após a regular produção de provas – dentre as quais, a confecção de laudo pericial –, solucionará a contenda e estabelecerá a indenização devida no caso.

Ocorre, no entanto, que, em determinadas situações, o ente expropriante pode subverter o ritual processualístico e pugnar pela imissão provisória na posse do bem, desde que alegue urgência – requisito, aliás, quase que insondável para o Poder Judiciário, porquanto esteja relacionado à discricionariedade do gestor – e deposite o valor do bem, aferido por meio dos vetustos critérios elencados pelo artigo 15, §1º, do Decreto-lei n. 3.365/41, que, embora tenham sido, atualmente, reafirmados pela Suprema Corte, por meio da súmula n. 652, são muito criticados por setores da doutrina especializada, que entendem justa a indenização fixada pelo critério de mercado apenas[28].

Atendidos esses pressupostos, o ente expropriante passa a ter direito subjetivo à imissão provisória na posse, conforme se extrai do caput do artigo 15 do decreto-lei mencionado acima, a partir da interpretação de José dos Santos Carvalho Filho[29].

Interessante destacar, nesse ponto, que o artigo 33, §2º, da lei geral declara que, imitido o expropriante na posse do bem, é facultado ao expropriado levantar até 80% (oitenta por cento) da importância depositada, independentemente de concordar com o preço pago, desde que comprove a condição de proprietário do bem e a quitação de suas dívidas fiscais até a data da imissão na posse, bem como demonstre ter publicado editais para noticiar terceiros acerca do ocorrido.

Caso não haja a imissão provisória, a indenização somente é paga ao expropriado por ocasião de sentença passível de ser executada, provisória ou definitivamente, pelo Estado, visto que, nesses casos, para tomar a posse do bem, o Poder Público deve, antes, depositar judicialmente o valor indenizatório arbitrado pelo magistrado.

Eis, em síntese, o rito da desapropriação por utilidade pública.

Na desapropriação rural, disciplinada pelos artigos 184, 185 e 186 da Constituição Federal e pela Lei Complementar n. 88/96, há alguns aspectos distintos.

Primeiramente, no que diz com a competência desapropriatória, esta é apenas da União – podendo ser delegada ao INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, autarquia federal responsável pelo desenvolvimento da política agrícola e fundiária nacional.

Quanto aos bens desapropriáveis, há outra distinção: nessa espécie expropriatória somente são passíveis de intervenção os imóveis rurais que não cumpram sua função social, e os parâmetros para se definir essa compatibilidade estão traçados no artigo 186, I a IV, da Constituição Federal, tendo já sido comentados no subtópico acima. Outrossim, no que toca à indenização na desapropriação para fins rurais, sabe-se que o pagamento é feito, a posteriori, mediante títulos da dívida agrária (TDAs), cujo resgate é feito no prazo de até 20 (vinte) anos, a partir do segundo ano após emitido.

Em relação ao trâmite administrativo e judicial, há outras tantas diferenças, tais como a lista dos documentos necessários para a instrução da petição inicial da ação de desapropriação e os prazos para a realização dos respectivos atos processuais.

Para finalizar, é de se comentar, ainda, que a desapropriação confiscatória submete-se a procedimento especial estatuído pela Lei n. 8.257/91. Isso se dá pelo fato de que possui motivo e finalidade bastante peculiares, na medida em que essa modalidade expropriatória reveste-se de caráter sancionátório, atribuível ao cultivo ilegal de plantas psicotrópicas por proprietários de glebas de quaisquer das regiões do país.

Assim, dentre todas as diferenças do rito geral, cumpre registrar, sobretudo, que na desapropriação confiscatória: (i) o proprietário do imóvel não faz jus a qualquer indenização; e (ii) o Poder Público não emite decreto expropriatório para iniciar o procedimento. Destaque-se, ainda, que a competência para promover a intervenção, nesses casos, segundo a doutrina prevalecente, é exclusiva da União, como ensina Kiyoshi Harada[30].

2.   A DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA

2.1 Desapropriação indireta: conceito

Feitas as considerações acima sobre os aspectos mais elementares do instituto jurídico da desapropriação, tais como seu conceito doutrinário, suas espécies e seu rito administrativo-judicial, cumpre, neste e no próximo capítulo, adentrar o tema central da presente pesquisa, a saber, o estudo da desapropriação indireta no ordenamento jurídico brasileiro.

A assim chamada desapropriação indireta – também conhecida por “inversa”, “irregular” ou “de fato” [31] – pode ser definida como sendo uma desapropriação, de qualquer espécie, que ocorre sem que o Poder Público expropriante tenha observado as normas constitucionais e/ou legais adequadas a seu perfazimento. Trata-se de uma nomenclatura convencionalmente atribuída pela doutrina e jurisprudência pátria àqueles casos em que a desapropriação de determinado bem materializa-se de fato, sem que se tenha, todavia, respeitado o devido processo estipulado pelas normas jurídicas positivadas.

Na conceituação de Celso Antônio Bandeira de Mello, entende-se a desapropriação indireta como:

(...) a designação dada ao abusivo e irregular apossamento do imóvel particular pelo Poder Público, com sua consequente integração no patrimônio público, sem obediência às formalidades e cautelas do procedimento expropriatório.[32]

Na mesma linha, José Carlos Moraes Salles ensina que:

A desapropriação indireta é uma expropriação que se realiza às avessas, sem observância do devido processo legal. Chamam-na, também, de desapossamento ou apossamento administrativo (v. RT 273/343, 443/236 e 455/162), pelo simples fato de que o Poder Público, inexistindo acordo ou processo judicial adequado, se apossa do bem particular, sem consentimento de seu proprietário. Transfere, pois, a este último os ônus da desapropriação, obrigando-o a ir a juízo para reclamar a indenização a que faz jus.[33]

Francisco Carlos Duarte, a seu turno, conceitua a desapropriação indireta nos seguintes termos:

A desapropriação indireta, também chamada de desapropriação irregular ou de fato, dá-se com a incorporação ao domínio público de qualquer bem de propriedade privada, sem a observância do devido processo legal. Podemos afirmar que tal instituto cria uma situação anormal, irregular, pois acaba ofendendo as normas legais relativas à desapropriação. Isto, porém, não exime o Estado, nem protege o Poder Público, quanto à indenização por perdas e danos sofridos pelo proprietário.[34]

Carlos Alberto Dabus Maluf complementa as definições acima, ao declarar que:

Os expropriantes, muitas vezes, mesmo sem decreto de utilidade pública, se imitem na posse de um imóvel para construir uma estrada, abrir uma rua, avenida, etc. Assim eles se apossam ilegalmente da propriedade privada. Em outras palavras, cometem um ato ilícito. Praticam um verdadeiro esbulho possessório. (...) Esse apossamento ficou consagrado pela jurisprudência como ‘desapropriação indireta’ (...).[35]

Enfim, é interessante comentar que Kiyoshi Harada, diferentemente dos doutrinadores citados, define a desapropriação indireta como “um mero instrumento processual para forçar o Poder Público a indenizar o ato ilícito, representado pelo desapossamento da propriedade particular, sem o devido processo legal” [36].

Oportunamente, pedimos vênia para discordar da opinião de Harada, uma vez que endossamos o coro da doutrina majoritária, a qual ensina que uma determinada ação de indenização, que tem como causa de pedir a ocorrência de uma desapropriação indireta, consiste numa realidade distinta da desapropriação indireta propriamente dita, sendo esta, na verdade, um fato administrativo, e não um tipo de ação judicial.

2.2 Fundamento legal da desapropriação indireta

O interesse pelo tema em análise surgiu a partir da vivência cotidiana dos julgadores, na medida em que, muito embora se tenha declarado, por meio das cartas constitucionais modernas, a todos, indistintamente, o direito fundamental de propriedade, os magistrados costumam se deparar com demandas judiciais apresentadas por particulares que se dizem lesados pelo Estado-expropriador, o qual, através de seus prepostos, não raras vezes desrespeita, nalgum ponto, o trâmite estabelecido legalmente para a consumação da desapropriação ou, de maneira mais crua, simplesmente se apossa de bens privados sem qualquer solenidade[37].

Diante disso, a legislação infraconstitucional brasileira, desde meados do século passado, tratou de disciplinar, ainda que incipientemente, os efeitos que adviriam de situações como as mencionadas acima, a fim de trazer maior segurança jurídica ao tema e impor balizas à atuação jurisdicional, que não pode, em matéria tão relevante, guiar-se puramente por equidade. Esse disciplinamento encontra-se condensado num único dispositivo normativo, a saber: o artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41.

O artigo 35 declara, ipsis litteris, sobre o tema, que:

Art. 35.  Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.

Numa interpretação perfunctória dos dizeres do dispositivo de lei – que serão destrinchados com minudência mais adiante, com a análise, inclusive, de sua constitucionalidade –, vê-se que a norma determina que, em casos tais como os ora estudados, nos quais se descortine uma atuação irregular do Poder Público, que enseje nulidade do processo desapropriatório, ainda assim, não se deve desfazer a desapropriação já consumada. Diz a lei, expressamente, que os bens “incorporados à Fazenda Pública” não podem ser “objeto de reivindicação”.

Dessa feita, o bem subtraído se perde definitivamente para o Leviatã, sem que possa o antigo proprietário dispor de poder de sequela ou de prerrogativas reivindicatórias sobre a coisa litigiosa: cabe-lhe tão somente a indenização por perdas e danos.

2.3 A desapropriação indireta como fato cotidiano: tópica jurisprudencial

Crescente a quantidade de processos a versar sobre a desapropriação indireta, o tema passou a galgar as instâncias judiciais superiores com habitualidade, de tal sorte que se formou, nos Tribunais pátrios, jurisprudência razoavelmente consolidada acerca de seus aspectos mais relevantes. A propósito, os casos de desapropriação indireta submetidos, historicamente, às Casas de Justiça denotam que essa prática irregular ocorreu amiúde e em diversas circunstâncias.

Muitas vezes, o Estado realizou o apossamento administrativo na construção de estradas de rodagem (STF, AI 71112 AgR)[38], atividade que exige enorme esforço desapropriatório, por atingir muitos imóveis espraiados por grandes áreas, o que, decerto, contribui para a existência de arbitrariedades e irregularidades. Outras vezes, a desapropriação indireta aconteceu porque o Poder Público utilizou terrenos particulares como aterro sanitário (STJ, REsp 1060924 / RJ)[39] ou neles construiu pistas de pouso para a aviação militar (STJ, REsp 871141 / RR)[40], além de outras tantas hipóteses.

Em todos esses casos, o dono do bem usurpado sentiu-se prejudicado pelo apossamento irregular levado a cabo pelo Estado e procurou, de mão própria, levar o malfeito às barras da Justiça na condição de autor da demanda, seja através de ações possessórias, no intuito de sustar o ato ilícito governamental e obter o bem de volta, caso ainda não incorporado ao patrimônio público, ou, então, se a incorporação já se consumara, através de ação de indenização, a fim de obter ressarcimento em pecúnia pela expropriação sofrida.

A propósito, é de se assentar que a jurisprudência tem enaltecido o princípio da economia processual nessa matéria, ao aduzir que, em casos de ajuizamento inadequado, por parte do expropriado, de uma das duas ações referidas acima – ação possessória ao invés de ação indenizatória, ou o contrário –, é perfeitamente possível que a ação apresentada seja convertida naquela que seja mais adequada à espécie, de maneira a não impor ao requerente o encargo desarrazoado de ajuizar nova demanda. Nesse sentido, vejam-se os julgados RE 102698/PE[41] e EDcl no REsp 1060924/RJ[42], respectivamente proclamados pela Suprema Corte e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Outras tantas questões específicas sobre a desapropriação indireta vêm sendo debatidas nos Tribunais e adquirindo posicionamento pretoriano consolidado. Dentre elas, cumpre apresentar duas discussões principais, sejam elas: a uma, a diferenciação entre a desapropriação indireta e a limitação administrativa; a duas, o prazo prescricional para ajuizamento da ação de indenização em virtude da desapropriação indireta.

2.3.1. Desapropriação indireta versus limitação administrativa

Interessante questão bastante debatida nas Casas de Justiça consiste em estabelecer um parâmetro diferenciador entre casos de “limitação administrativa” [43] e de desapropriação indireta, posto que acorrem à Justiça muitos pleitos indenizatórios que relatam, como causa de pedir, situações aparentemente fronteiriças entre esses dois institutos jurídicos. Dessa maneira, a hígida identificação e correta discriminação entre a desapropriação indireta e a limitação administrativa se mostra necessária para que as lides recebam tratamento adequado.

É comum que se suscitem demandas que tratam da imposição, pelo Estado, de faixas de terra non aedificandi numa determinada propriedade em razão, por exemplo, da abertura ou alargamento de avenidas nas proximidades. Ou, que se levantem celeumas sobre a criação de reservas ambientais numa área específica, afetando o direito de construir de um particular cujo imóvel ali esteja situado. Ou, ainda, que se pleiteie indenização em juízo por conta da construção, pelo Poder Público, de uma base aérea, que transformou todo o perímetro residencial em área de segurança e de resguardo obrigatório, depreciando os imóveis na região, em virtude tanto da limitação ao direito de construir que lhes fora imposta quanto pelo aumento do ruído na localidade.

Nas hipóteses acima, vê-se que, de fato, houve uma atuação estatal que interferiu no direito de propriedade dos súditos, mas sem que tenha ocorrido o apossamento administrativo de bens. Ou seja: a interveniência do Poder Público se deu sem a tomada, material e positiva, da posse dos imóveis em questão. Simplesmente, através de declarações genéricas e abstratas – em alguns casos restritas a uma pequena parte da comunidade –, o Estado limitou a disposição dos bens pelos particulares.

Logo, tem lugar aqui o instituto da limitação administrativa, que, diferentemente da desapropriação indireta, não enseja, em regra, indenização, salvo se concorrerem duas circunstâncias fáticas: a limitação administrativa (i) acarretar o esvaziamento econômico do bem; e, ainda, (ii) ocorrer posteriormente à aquisição do referido bem pelo particular. Nesse sentido depõe a iterativa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – veja-se, ilustrativamente, o teor do AgRg no REsp 769.405/SP[44].

2.3.2 Prazo prescricional na desapropriação indireta

Enfim, outro tópico candente na vida forense que diz respeito à desapropriação indireta se refere à consumação do prazo prescricional da pretensão indenizatória pelo apossamento administrativo.

No escólio de antiquíssima jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o período para ingressar com a ação de indenização por desapropriação indireta é de 20 (vinte) anos, contados da data da usurpação do bem pelo Poder Público – esse entendimento, inclusive, encontra-se consolidado na Súmula n. 119 do STJ[45].

Esse prazo se explica porque, na desapropriação indireta, tem-se prescrição aquisitiva – diferentemente das ações cíveis reparatórias comuns, que se submetem a prescrição extintiva, a qual, consoante o artigo 206, §3º, V, do Código Civil, ocorre em 03 (três) anos[46]. A dita prescrição aquisitiva ocorre com o perfazimento da usucapião em favor do Estado-expropriante, sendo, portanto, o prazo de ajuizamento da ação indenizatória o mesmo prazo de uma ação reivindicatória. A prescrição na matéria em estudo possui esse jaez especial, em virtude do caráter “real” da ação de indenização por desapropriação indireta; afinal, embora o Estado tenha se apossado irregularmente do bem, o direito de propriedade da res litigiosae permanece sendo do particular-expropriado até que sua indenização lhe seja paga ao final da demanda[47].

Ocorre, porém, que, atualmente, embora o Supremo Tribunal Federal não tenha se manifestado especificamente sobre o tema, muitos doutrinadores, dentre eles José dos Santos Carvalho Filho[48] e José Carlos de Moraes Salles[49], entendem que o prazo prescricional foi reduzido de 20 (vinte) para 15 (quinze) anos, por conta da entrada em vigor, em janeiro de 2003, do novo Código Civil, que, em seu artigo 1.238, caput, estabelece o tal prazo para as hipóteses de usucapião extraordinário – que antes era de 20 (vinte) anos.

Acerca da redução do prazo prescricional, entendemos que assiste razão aos doutrinadores mencionados, visto que a mudança legislativa ao tempo em que atinge, diretamente, as ações reivindicatórias, atinge, também, de maneira reflexa, a ação de indenização por desapropriação indireta, em virtude do seu decantado caráter real.

2.4 Entendimento dos Tribunais Superiores e da doutrina pátria sobre a aplicabilidade do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41

Como             dito, as Cortes de Justiça têm se deparado constantemente com problemas relacionados à desapropriação indireta, a começar pela discussão acerca da aplicabilidade do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41 aos casos de apossamento administrativo, uma vez que existe controvérsia sobre sua recepção, ou não, pela Constituição Federal ora vigente.

Conforme o entendimento dos Tribunais Superiores pátrios, notadamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, o referido dispositivo legal atende aos ditames constitucionais e, portanto, é useiramente aplicado aos casos concretos que lhes chegam – aliás, como bem indicam as distintas situações jurisprudenciais comentadas nos subtópicos acima.

À guisa de ilustração, veja-se o julgado abaixo proferido pela Suprema Corte, que procede à aplicação do artigo 35 a determinado caso concreto, assumindo assim, ao menos episódica e tacitamente, sua constitucionalidade:

Recurso extraordinário. Desapropriação indireta. Prescrição. Enquanto o expropriado não perde o direito de propriedade por efeito do usucapiao do expropriante, vale o princípio constitucional sobre o direito de propriedade e o direito a indenização, cabendo a ação de desapropriação indireta. O prazo, para esta ação, e o da ação reivindicatória. Confere-se a ação de desapropriação indireta o caráter de ação reivindicatória, que se resolve em perdas e danos, diante da impossibilidade de o imóvel voltar a posse do autor, em face do caráter irreversivel da afetação pública que lhe deu a Administração Pública. Subsistindo o título de propriedade do autor, dai resulta sua pretensão a indenização, pela ocupação indevida do imóvel, por parte do Poder Público, com vistas a realização de obra pública. Hipótese em que não ocorreu prescrição, Recurso extraordinário não conhecido.[50]

No que se refere ao tratamento doutrinário dado ao tema da desapropriação indireta, nota-se que a grande maioria dos estudiosos, à exceção de algumas poucas vozes dissonantes, embora lamentem e esconjurem a ocorrência de desapropriações irregulares, entendem que é justa a solução dada pela legislação e jurisprudência para o problema, qual seja, a resolução do litígio em perdas e danos, quando da incorporação do bem à Fazenda Pública, sem que o expropriado faça jus à devolução do bem em evidência.

Dessa maneira, acompanhando a doutrina dominante, Teori Albino Zavascki declara que:

(...) olhada sob o prisma do interesse público e da destinação social do bem, pode-se legitimar constitucionalmente a solução judicial. Não teria sentido algum, com efeito, em nome do direito de propriedade, comprometer a obra pública já realizada e já incorporada a uma destinação comunitária. Aqui, o princípio da função social, tomada no sentido amplo, deve ser privilegiado em face do estrito interesse particular do proprietário. A solução adotada, que se traduz pela conversão da prestação específica (restituição do bem) em prestação alternativa de perdas e danos, representa, assim, criação pretoriana de regra para dirimir a colisão, no caso verificada, entre o princípio do direito de propriedade e o da função social. Privilegia-se o segundo, mas sem comprometer inteiramente o primeiro, cuja satisfação in natura é substituída pela obrigação de indenizar. [51]

José dos Santos Carvalho Filho trilha a mesma senda:

Embora não se revista de toda a legitimidade que seria de se esperar, em se considerando a figura do Poder Público, o certo é que o fato consumado em favor deste acarreta inviabilidade de reversão à situação anterior. Suponha-se, como exemplo, que a União se aproprie de várias áreas e instale diretamente um aeroporto ou um abrigo para treinamento de militares. Concluídas essas realizações, os bens, certa ou erradamente, passaram à categoria de bens públicos, vale dizer, foram incorporados definitivamente ao patrimônio federal. Como reverter tal situação, levando em conta que esses bens se destinam a uma atividade de interesse público? Como ficou despojado de seu direito de reaver o bem desapropriado, ao ex-proprietário só resta agir da forma como a lei previu, ou seja, terá que se conformar com a substituição de seu direito de reivindicar pelo de postular indenização em face das perdas e danos causados pelo expropriante.[52]

Da mesma forma, Celso Antônio Bandeira de Mello aduz que “(...) ocorrida esta (a desapropriação indireta), cabe ao lesado recurso às vias judiciais para ser plenamente indenizado, do mesmo modo que o seria caso o Estado houvesse procedido regularmente” [53].

Representando as pouquíssimas vozes dissonantes, Carlos Ayres de Britto e José Sérgio Monte Alegre entendem, diversamente, que a Constituição Federal foi eloquente ao declarar a intangibilidade do direito de propriedade, ressalvadas, apenas, as hipóteses em que ela própria, Constituição, declara as restrições e a forma como devem ser impostas, de sorte que, se o Estado não seguiu os seus ditames ao proceder uma desapropriação, esta atitude irregular não pode ser acobertada pelo ordenamento jurídico[54].

Portanto, numa palavra, é possível concluir, com os doutrinadores prevalecentes, que a solução arbitrada pela lei, ainda que não seja sinônimo de pacificação social e reverência aos direitos fundamentais, resolve o litígio sem agredir a vigente Constituição Federal.

Sabendo disso, cumpre, no capítulo que segue, examinar os dizeres do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41 à luz dos preceitos da Carta Magna, com vistas a determinar se a resposta legal, doutrinária e jurisprudencial que se têm dado aos casos de desapropriação indireta, de fato, são as mais adequadas.

3.      O ARTIGO 35 DO DECRETO-LEI Nº 3.365/41 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

3.1.   O direito de propriedade em xeque

Para proceder à análise constitucional do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41, é fundamental entender que a aplicação literal desse dispositivo, tal como se apresenta, implica o sacrifício do direito fundamental de propriedade de um particular. Isso porque a lei determina que bens incorporados pelo Estado não podem ser reivindicados pelo expropriado, o qual deverá resignar-se com indenização por perdas e danos. Não interessa a nulidade ocorrida no âmbito do processo desapropriatório. A rigor, não interessa sequer se houve alguma espécie de processo, ou se, simples assim, o Poder Público tomou para si o bem sem dar qualquer satisfação. No dizer da lei, bem usurpado é bem perdido: não há escapatória.

Ocorre, todavia, que o direito de propriedade tem guarida constitucional e, mais que isso, é alçado ao status de cláusula pétrea de nosso sistema jurídico pelo artigo 60, §4º, IV, da Carta Magna. Afinal, consta do rol de direitos individuais do artigo 5º, conforme referências feitas tanto no caput quanto no inciso XXII deste dispositivo legal. Trata-se, como ensina André Ramos Tavares, de um “direito subjetivo de exploração de um bem, que todos os demais integrantes da sociedade devem respeitar” [55].

Assim, a proteção dada pela Constituição Federal ao direito de propriedade consiste numa proteção mesma da dignidade da pessoa humana, na medida em que o sentimento de domínio que o homem tem face às coisas da natureza é parte inerente de sua cultura. Embora alguns advoguem a tese de que a propriedade privada é criação relativamente moderna, germe do capitalismo atual, no nosso humilde entender, algum grau de individualismo na relação com objetos é indissociável da natureza humana, desde o princípio de sua trajetória.

Por essa razão, sentar a exegese de uma norma infraconstitucional que pretenda, ainda que episodicamente, infirmar direito tão relevante em nossa ordem jurídica é tarefa delicada.

Primeiramente, é interessante ponderar que a intenção do referido artigo 35, ao menoscabar a dimensão jurídica do direito de propriedade, era afirmar outros valores igualmente nobres e elevados, e igualmente amparados pelo sistema constitucional vigente, sendo eles, sobretudo, a intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos, a economicidade e a eficiência.

A intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos é um princípio de direito administrativo que, na verdade, é corolário da “supremacia do interesse público sobre o interesse privado”, macroprincípio estruturante de todo os ramos do Direito Público, o qual, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, é “verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público” e “(...) proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último”[56]. Trata-se de cláusula sobejamente reconhecida pelos estudiosos como princípio implícito de nossa Carta de Direitos, em que pesem as severas críticas formuladas, nos últimos tempos, por segmento minoritário da doutrina, capitaneado por Humberto Ávila, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm e outros, para quem a supremacia do interesse público não constitui um verdadeiro princípio jurídico[57].

Assim, o dispositivo legal em análise busca concretizar o princípio da intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos, uma vez que impede a reivindicação de um bem incorporado ao Poder Público exatamente por supor que fora tomado para dar chão a obra de interesse público[58], no caso de bem imóvel, ou, então, para servir de instrumento à concreção de determinado serviço público.

Outrossim, o artigo materializa a economicidade e a eficiência que devem, por expressa determinação constitucional, nortear os atos da Administração Pública, como bem se percebe dos artigos 70, 37 e 74, II, todos da Lei Maior.

A pretensão de economicidade – é dizer, de moderação na utilização de recursos – está evidente nos dizeres do artigo 35 pelo fato de que permitir ao particular a reivindicação de um bem que poderá, imediatamente depois de devolvido, ser novamente desapropriado, desta vez conforme as normas constitucionais e legais, parece, à primeira vista, significar apenas desperdício de tempo e de dinheiro para o Poder Público[59]. A noção de eficiência, entendida, consoante Gustavo Vettorato, como a “utilização dos melhores meios” para atingir a “satisfação das necessidades coletivas”, a seu turno, também fora privilegiada pelo dispositivo legal em estudo, na medida em que a solução legalmente proposta visa a fazer com que os esforços desapropriatórios empreendidos pela Administração sejam mantidos, gerem resultados práticos e, de algum modo, beneficiem a coletividade[60].  

Pois bem. A partir daí, é de se perguntar: será plenamente justificada a pretensão da norma legal em estudo, qual seja, de se lançar contra o direito de propriedade, a fim de dar suporte a esses outros valores?

3.2.   Concordância prática entre as normas constitucionais que asseguram o direito de propriedade e aquelas que garantem a intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos, a economicidade e a eficiência

No caso em deslinde, percebe-se, naturalmente, que se está diante de um conflito. Os dizeres da norma estudada suscitam a existência de um choque entre valores constitucionalmente protegidos. E “resolver” o problema posto somente é possível através da utilização dos modernos princípios hermenêuticos constitucionais, especialmente do princípio da concordância prática ou harmonização e da técnica exegética de ponderação de interesses.

Consoante ensinamento de José Joaquim Gomes Canotilho, sabe-se que:

O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens.[61]

Aqui, igualmente, há um conflito entre um direito fundamental (direito de propriedade) e três bens jurídicos constitucionalmente protegidos (intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos, economicidade e eficiência). Em sendo assim, cumpre valer-se dos ensinamentos de Emerson Garcia, para assentar que, em casos tais, o operador do Direito deve caminhar no sentido da “identificação do princípio preeminente ou na constatação de que princípios concorrentes devem sofrer retrações no seu domínio de incidência de modo a coexistirem e, harmonicamente, regularem a situação concreta” [62].

No mesmo sentido aponta Luís Roberto Barroso, quando, ao tratar da técnica de ponderação de interesses, dispõe que:

“Em suma, consiste ela numa técnica de decisão jurídica, aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente. A insuficiência se deve ao fato de existirem normas de mesma hierarquia indicando soluções diferenciadas. (...) De forma simplificada, é possível descrever a ponderação como um processo em três etapas, descritas a seguir. Na primeira etapa, cabe ao intérprete detectar no sistema as normas relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas. (...) Na segunda etapa, cabe examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos. (...) É na terceira etapa que a ponderação irá singularizar-se, em oposição à subsunção. (...) Pois bem: nessa fase dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo das normas que deve preponderar no caso. Em seguida, será preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais”.[63]

É dizer, há de se procurar estabelecer um cotejo – fazendo uso sempre da proporcionalidade e da razoabilidade – entre esses bens jurídicos diversos, de maneira que se extraia, diante do caso concreto, quais as diretrizes axiológicas prevalecentes. Trata-se de uma solução prática, aplicada, pragmática; que serve não para gerar teses abstratas e deduções, mas sim para pôr termo ao episódio específico sobre o qual se debruça, já que se sabe que não existe hierarquia entre os bens jurídicos em conflito. Desse modo, os bens que tiveram seu campo de atuação restringido num caso podem, noutra circunstância, impor, sobranceiros, seus ditames, estando tudo a depender das vicissitudes da situação sub examine.

Dessa maneira, alcança-se uma primeira conclusão no que se refere à exegese do multicitado artigo 35: em razão da ausência de hierarquia entre os bens constitucionais em conflito, não é toda desapropriação irregular que será resolvida em perdas e danos, afinal, em alguns casos de apossamento, será mais justo que se assegure ao particular o seu direito de propriedade, a despeito dos interesses da Administração. Mas, nesse ponto, não parece haver controvérsia, visto que a própria norma legal assenta, in claris, que os bens expropriados que não poderão ser objeto de reivindicação são aqueles, e só aqueles, que já foram “incorporados à Fazenda Pública”. 

E é exatamente essa expressão utilizada pelo legislador que indica que a solução dada ao problema somente pode ser obtida caso a caso, por meio da utilização da harmonização e ponderação de interesses. Isso porque a adjetivação “incorporados”, dada pela lei aos bens insuscetíveis de reivindicação, não possui significado jurídico pré-determinado, haja vista que nem as leis, nem a jurisprudência, nem a doutrina utilizam a alcunha de “incorporados” para indicar certa categoria de bens.

Trata-se não só de um autêntico conceito jurídico indeterminado, mas de um termo obscuro, sobre o qual não se realizaram estudos doutrinários específicos, que determinassem seu significado e alcance. Desse modo, cabe aos operadores do Direito, nos dias atuais, essa árdua tarefa, que é feita de forma tátil, sem parâmetros – e casuisticamente.

3.3 A interpretação conforme sem redução de texto do artigo 35 do Decreto-lei nº. 3.365/41

Até aqui, chegou-se à conclusão de que os efeitos preconizados pelo artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41 devem ser aplicados em determinadas situações, noutras não, a depender dos bens jurídicos prevalecentes diante das peculiaridades do caso.

Sistematizando esse entendimento, é possível, então, estabelecer, senão respostas cabais, algumas diretrizes úteis para analisar a constitucionalidade do referido dispositivo de lei.

A nosso ver, o artigo 35 consiste num dispositivo que foi sim recepcionado pelo sistema constitucional vigente, desde que se interprete e aplique a expressão “incorporados”, utilizada pelo legislador, com algumas condicionantes. Ou seja, desde que se lhe submeta a uma interpretação conforme sem redução de texto, que, consoante Alexandre de Moraes, significa que “no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento” [64].

No tema, Gilmar Mendes acrescenta ainda que:

Consoante postulado do direito americano incorporado à doutrina constitucional brasileira, deve o juiz, na dúvida, reconhecer a constitucionalidade da lei. Também no caso de duas interpretações possíveis de uma lei, há de se preferir aquela que se revela compatível com a Constituição. Na doutrina menciona-se, frequentemente, a frase de Cooley: ‘the court, if possible, must give the statute such a construction as will enable it to have effect’.[65]

 As mencionadas condicionantes a serem utilizadas na exegese do artigo 35 são nada além de requisitos simultâneos que devem estar presentes numa determinada situação fática para que se impeça o retorno do bem ao particular expropriado. Os requisitos são os seguintes: i) o apossamento irregular do bem pelo Poder Público; ii) a afetação do bem; iii) a ocorrência de prejuízos à coletividade com a desafetação do bem; iv) e a inércia do expropriado no momento da desapropriação.

Os dois primeiros pressupostos vêm sendo listados na recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – em nosso entender, com bastante acerto –, desde o julgamento do REsp n. 442774/SP em junho de 2005[66]. Acrescentamos a eles o terceiro e o quarto requisitos.

É fundamental que ocorra o apossamento irregular do bem pelo Poder Público para que se tenha a desapropriação indireta. Primeiramente, deve haver um apossamento material, isto é, o expropriante deve, realmente, tomar posse do bem em questão; se isso não ocorrer, pode estar-se diante de uma limitação administrativa, como nos casos de criação de reserva florestal mediante simples decreto do Chefe do Poder Executivo (que pode, inclusive, ensejar indenização, como já dito alhures), ou de outras espécies de intervenção estatal na propriedade, mas não diante de uma desapropriação indireta[67]. Ainda, esse apossamento deve ser, por óbvio, irregular, ou seja, deve ocorrer em desconformidade com o devido processo legal, sob pena de não haver o que reclamar em juízo. Outrossim, a desapropriação deve ter sido levada a cabo pela Administração Pública, e não por particulares; caso contrário, seria somente um caso de esbulho possessório ou usucapião.

O segundo requisito consiste na afetação do bem, isto é, na destinação pública dada ao bem pelo ente expropriante. Quer dizer, caso o bem desapropriado não tenha ainda sido empregado numa determinada atividade publica, ou seja, não esteja atendendo à necessidade/utilidade pública ou ao interesse social (pressupostos desapropriatórios aos quais faz referência o artigo 5º, XXIV, da Constituição), é plenamente possível que o proprietário faça uso dos interditos possessórios para reavê-lo, especialmente se o esbulho tiver acontecido há pouco tempo[68].

O terceiro requisito apontado, a inviabilizar a reivindicação do bem, é a ocorrência de prejuízos à coletividade com a sua desafetação. Assim, se o bem já recebeu destinação pública, mas a inversão dessa circunstância não se mostra efetivamente danosa aos interesses do Estado – e, em última análise, da coletividade –, não parece razoável que a demanda seja resolvida por meio de indenização de perdas e danos, mas sim por meio da tutela específica.

Por fim, o quarto e último requisito é a inércia do expropriado no momento da desapropriação. Não basta que o bem tenha sido tomado irregularmente pelo Poder Público, além de destinado a atividade pública e, ainda, que sua desafetação gere prejuízos à coletividade. É necessário também, no nosso entender, o perfazimento de outro requisito concomitante: o proprietário deve ter descuidado, minimamente, de seu dever de guarda do bem para que não possa exigi-lo de volta. Caso contrário, cometer-se-ia grave injustiça contra o particular que, embora diligente na defesa de seus interesses, teve seu móvel/imóvel submetido às referidas restrições fáticas, por conta da negligência ou má-fé de um gestor público.

Exemplificativamente, é possível imaginar diversas hipóteses em que semelhante situação pode vir a ocorrer, como no caso de a União, na ânsia de concluir determinada rodovia, invadir, aterrar e asfaltar irregularmente uma propriedade privada no intervalo de poucos dias (ou horas), sem que o expropriado tenha tido tempo sequer de constituir advogado e elaborar petição ao juízo competente. Tem-se aí consumados todos os três primeiros requisitos citados acima. Será que em tal conjuntura, caso o particular aja com presteza, insurgindo-se, em tempo razoável, contra o ato ilícito, a reivindicação do imóvel deve ser obstada? Em nosso entender, não. É mister que se assegure, in casu, o direito de propriedade, a despeito de todos os outros bens tutelados constitucionalmente, tais como a intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos, a economicidade e a eficiência.

Interessante notar acerca deste requisito (inércia do expropriado no momento da desapropriação), que sua caracterização deve ser feita casuisticamente, dada a inexistência de padrões legais para tanto, de modo que se leve mais em consideração a atitude tomada pelo particular no instante em que tem ciência do apossamento administrativo do que, propriamente, o tempo despendido para ingressar em juízo. Assim, por exemplo, é possível concluir que, se restar comprovado dos autos que o particular não atuara com brevidade para sustar a desapropriação indireta, a sua inércia caracteriza-se no caso concreto, ainda que ele, expropriado, não tenha demorado vários meses para provocar a Justiça.

Portanto, insista-se: a constitucionalidade do artigo 35 está diretamente atrelada ao significado atribuído à expressão legal “incorporados”. Em nosso entender, um bem somente encontra-se incorporado à Fazenda Pública quando: (i) sofreu apossamento irregular do Poder Público; (ii) recebeu destinação pública; (iii) não pode, atualmente, ser desafetado sem prejuízos à coletividade; (iv) e, por fim, seu proprietário, o expropriado, quedou-se inerte face à atuação estatal.

Feitas essas ressalvas, a presumida constitucionalidade (ou, mais tecnicamente, “recepção constitucional”) da norma legal estudada, que advém de sua condição mesma de lei válida e vigente[69], confirma-se em definitivo, a partir da interpretação conforme sem redução de texto dada aos dizeres do referido dispositivo.

Em arremate, é interessante ainda relatar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, além dos dois primeiros requisitos comentados acima, tem suscitado um outro pressuposto, qual seja, a chamada “irreversibilidade”, que consiste, no dizer do Ministro Teori Albino Zavascki, relator do já citado REsp 442774/SP, na “impossibilidade material da outorga da tutela específica ao proprietário”.

Concessa venia, na sistematização ora apresentada, cremos que não se mostra adequada a inserção do mencionado requisito da “irreversibilidade”, porquanto esta seja uma hipótese que, sozinha, acarreta a resolução da contenda em perdas e danos, não tendo que ver, em absoluto, com a exegese do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41.

Não se trata de um requisito que, associado a outros, impede a reivindicação do bem pelo expropriado por indicar a sua “incorporação” ao patrimônio público, mas sim numa situação fática que impede a tutela específica pretendida pelo particular, como ocorre, por exemplo, na hipótese de a Administração desapropriar irregularmente um terreno à beira-mar que, tempos depois, acaba por ser consumido pelo inesperado avanço das águas. Nessa situação, a reivindicação do bem ao expropriado não ocorrerá, cedendo lugar à indenização por perdas e danos, uma vez que a restituição é impossível de ser realizada – e não porque o imóvel fora “incorporado” à Fazenda Pública.

Dessa maneira, entende-se, para fins do presente estudo, que os quatro requisitos elencados acima são adequados e bastantes para indicar a correta exegese do artigo de lei examinado.

3.4 A desapropriação indireta como realização da teoria do fato consumado

A linha de raciocínio desenvolvida neste estudo desagua na ideia de que a resolução da ação de desapropriação indireta em indenização por perdas e danos deve ocorrer como uma forma sui generis de realização da “teoria do fato consumado”.

A propósito, nas palavras de Odim Brandão Ferreira, fato consumado pode ser conceituado como sendo:

“o tópico jurisprudencial pretensamente a serviço da equidade por meio do qual o Judiciário, em sentença, ratifica a liminar autorizadora da prática de ato ilícito, apenas porque, no momento de apreciar o mérito da causa, o detentor do provimento cautelar ilegal já desenvolveu, de fato, a atividade que lhe interessava”.[70]

Essa teoria, já consagrada pela jurisprudência nacional em diversas situações distintas, pode, singelamente, ser traduzida como uma aplicação prática do princípio da segurança jurídica.

Significa assegurar a permanência das situações jurídicas já estabilizadas no tempo, vez que a interferência externa nesses casos, embora bem intencionada e com o propósito de reafirmar o estado de legalidade, acaba por gerar mais atritos do que pacificação social.

E, em que pese a constatação de que a ilicitude ora estudada – qual seja, a desapropriação indireta – não seja praticada com arrimo em decisão liminar emitida pelo Estado-juiz, nos termos da definição de Odim Brandão Ferreira, mas sim através de ato auto-executável perpetrado pelo Estado-Administração, o fato é que, na essência, a teoria é perfeitamente aplicável à situação em análise, na medida em que, tanto aqui quanto lá, a reparação de um “malfeito” praticado por prepostos do Estado é preterida face à necessidade de se assegurar a permanência de situações consolidadas.

Apenas quando o bem estiver devidamente incorporado ao Poder Público – repise-se: com o perfazimento de todas as quatro circunstâncias exigidas para tanto –, é que a aplicação do artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41 ao caso concreto mostra-se adequada. Nesses casos, consuma-se em favor do Estado um fato jurídico administrativo que impede o desprendimento do bem, que o torna intangível: a incorporação.[71]

3.5. Análise crítica do instituto da desapropriação indireta no ordenamento jurídico brasileiro

O fenômeno social da desapropriação indireta, infelizmente, é fato corriqueiro na vida dos brasileiros. É uma ilicitude com a qual as pessoas habituaram-se a conviver, de tal modo que gestores públicos mal intencionados, ou simplesmente descomprometidos com a legalidade, sentem-se, hoje, até estimulados a violar o direito de propriedade dos particulares.

Aliás, não só a indiferença da população estimula a ocorrência de casos de desapropriação indireta. Somado a esse fator, é de se registrar que não se tem notícia de administradores punidos pelo cometimento de atos ímprobos ou criminosos relacionados a desapropriações irregulares, muito embora se saiba, da boca do povo, de muitas arbitrariedades cometidas nessa seara.

Ademais, não existe, legal nem jurisprudencialmente, penalidade pecuniária específica a ser paga pela Administração Pública em razão da expropriação indireta[72]. Ou seja, por incrível que pareça, o quantum da indenização paga pelo apossamento irregular é o mesmo adimplido por ocasião de uma desapropriação regular. Inclusive, há a agravante de que, na desapropriação indireta, a indenização só é paga ao final de demanda ajuizada pelo expropriado, mediante precatórios, enquanto que, na desapropriação por utilidade pública feita conforme as normas de Direito, o normal é o particular receber a maior parte da indenização – 80% (oitenta por cento) do valor depositado, conforme o artigo 33, §2º, do Decreto-lei n. 3.365/41 – bem antes da sentença final, quando da imissão provisória do Estado na posse do bem ou pelo ensejo da execução provisória.

Quer dizer, a convergência desses fatores estruturais alimenta um caldo de cultura bastante danoso à sociedade, que não desestimula, ao revés, incita a multiplicação de casos de desapropriação indireta.

E alguns gestores públicos aproveitam-se dessa situação para realizar desapropriações sem observar as balizas legais, no intuito de alcançar as mais distintas finalidades, tais como: acelerar a conclusão de obras que não raramente possuem viés eleitoreiro; postergar o pagamento da indenização ao proprietário que, na desapropriação indireta, só ocorre mediante precatório, com o trânsito em julgado da respectiva ação judicial; realizar uma obra sem dotação orçamentária e recursos necessários; ou, então, prejudicar algum desafeto.

A respeito, sempre oportunas as palavras de José Carlos Moraes Salles sobre o tema:

Infelizmente, a desapropriação indireta, que deveria ser expediente excepcionalmente utilizado pela Administração, nos casos de apossamento de bens particulares por equívoco do Poder Público com o consequente emprego em obra pública, vai se transformando em procedimento corriqueiro, diuturna e conscientemente empregado. Torna-se mais fácil invadir a propriedade particular para só depois de muitos anos indenizar.[73]

Embora não seja pretensão deste estudo, é possível, a partir do diagnóstico já feito, apontar medidas que, se não impeçam, resultem numa diminuição dos casos de desapropriação indireta, para que se restrinjam somente a erros isolados da Administração e deixem de ser instrumento nas mãos de maus gestores.

Para tanto, no nosso entender, duas medidas são básicas. A uma, cumpre ao legislador tornar a desapropriação indireta mais onerosa para o Poder Público do que a desapropriação regular, seja através da imposição de uma multa específica ou pela criação de mecanismos mais céleres de pagamento da indenização nos casos do apossamento irregular. A duas, faz-se necessário que, nos casos de desapropriação indireta que indiquem atentado contra os princípios da Administração Pública, os órgãos fiscalizadores, sobretudo o Ministério Público, tenham postura mais enérgica no sentido de acionar os agentes públicos responsáveis pelo evidente ato de improbidade.[74]

E, claro, é importante que se endosse um conceito bastante restrito de “incorporação” da coisa expropriada ao patrimônio público, como o defendido na presente pesquisa, de maneira que a reivindicação do bem pelo particular seja, sempre que possível, atendida – na esteira, aliás, das recentes reformas do Código de Processo Civil pátrio que privilegiam, em absoluto, a tutela específica em detrimento da indenização por perdas e danos.[75]

Por fim, quanto à situação do proprietário expropriado cujo bem fora subtraído definitivamente, é fundamental que os pretores tenham aguda sensibilidade ao arbitrarem quantia que contemple reparação pelas perdas e danos sofridos pelo particular. A ressalva tem lugar porque se vê, amiúde, a imposição de indenizações tímidas que refletem apenas o valor do bem perdido, condenações estas atribuíveis à mentalidade cartorial de julgadores que não vislumbram, em casos flagrantes de arbitrariedade estatal, o dano moral suportado pelo expropriado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo o que se comentou, é possível sintetizar as ideias apresentadas, a partir de algumas conclusões alcançadas ao longo deste estudo.

Antes de tudo, é de se constatar que a desapropriação indireta, sendo um ato ilícito, consiste num fenômeno sociológico de todo indesejado, que deve ser afastado da prática dos nossos governos. As desapropriações devem ocorrer nos estritos termos das normas positivadas e, caso fujam de seus ditames, o ordenamento jurídico deve dispor de mecanismos enérgicos para coibi-las.

No que se refere à solução dada pelo artigo 35 do Decreto-lei n. 3.365/41 aos casos de desapropriação indireta, firmou-se entendimento no sentido de que se trata de uma norma que fora recepcionada pela Constituição Federal de 1988, desde que submetida a uma interpretação conforme sem redução de texto, que proceda a uma análise restrita da expressão legal “incorporados”.

Assim, um bem somente deve ser dado como incorporado à Fazenda Pública, quando presentes quatro requisitos específicos, isto é, quando: (i) sofreu apossamento irregular do Poder Público; (ii) recebeu destinação pública, ou seja, encontra-se afetado; (iii) não pode, atualmente, ser desafetado sem prejuízos à coletividade; (iv) e, por fim, seu proprietário, o expropriado, quedou-se inerte face à ilícitude perpetrada pelo Estado.

Nesses casos, mostra-se justificado que o direito de propriedade do particular tenha sua área de alcance restringida em face de outros valores igualmente nobres e elevados, e igualmente amparados pelo sistema constitucional vigente, sendo eles, sobretudo, a intangibilidade da obra e/ou do serviço públicos, a economicidade e a eficiência.

Contudo, é fundamental destacar que esse cotejo entre os bens jurídicos constitucionais tutelados deve ser feito episodicamente – caso a caso –, por meio do consagrado princípio da concordância prática ou harmonização e da técnica interpretativa da ponderação de interesses, de modo a determinar quais valores devem prevalecer na situação específica em análise.

Feito esse trabalho exegético, constata-se que a resolução da ação de desapropriação indireta em indenização por perdas e danos deve ocorrer como uma espécie sui generis da teoria do fato consumado, visto que essa tutela meramente ressarcitória somente ocorre quando se mostra mais útil, e justo, assegurar a permanência das situações jurídicas já estabilizadas no tempo do que modificá-las, vez que a interferência externa nesses casos, embora bem intencionada e até com o propósito de reafirmar o estado de legalidade, acaba por gerar mais atritos do que pacificação social.

Finalmente, conclui-se a pesquisa exortando os poderes públicos constituídos a tomarem medidas concretas, a fim de diminuir os casos de ocorrência de desapropriação irregular em nossa sociedade.

Para tanto, deve o legislador tornar a desapropriação indireta mais onerosa para a Administração Pública do que a desapropriação regular. Outrossim, é importante que os órgãos fiscalizadores, sobretudo o Ministério Público, adotem postura mais enérgica no sentido de acionar os agentes públicos responsáveis por atos de improbidade cometidos no curso de desapropriações. Ainda, é importante que se endosse um conceito restrito de “incorporação” do bem expropriado à Fazenda Pública, como o defendido neste estudo, de maneira que o pedido reivindicatório feito pelo particular seja, sempre que oportuno, devidamente atendido.

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