INTRODUÇÃO
São clássicos os ensinamentos jurídicos que consagram a obrigação da observância do princípio da legalidade na seara administrativa. De acordo com o princípio, previsto expressamente no artigo 37 da Constituição Federal, a atuação do gestor público não pode extravasar o quanto previsto e autorizado em lei. É uma forma mesmo de limitação da atuação do Poder Público.
Dentro do tema licitações e contratos administrativos, a Lei nº 8.666/93 traz expressa autorização para que a Administração Pública penalize empresas por inexecução total ou parcial de contratos administrativos (art. 87), ou empresa licitante que não honra o compromisso que assumiu ao vencer a licitação, ao se recusar a assinar o contrato (art. 81).
Contudo, nem todas as situações prejudiciais à Administração Pública e causadas culposamente por empresas podem ser enquadradas perfeitamente em um dos dispositivos que amparam a cominação de sanção. É o caso de particular ainda não contratado, quando não há nem mesmo licitação deflagrada.
Surge o questionamento: a inexistência de norma expressa que englobe tais circunstâncias implica a impossibilidade de atuação da Administração? O Poder Público fica tolhido de sancionar a empresa, ainda que o ente administrativo tenha sido lesado por conduta a ela atribuída?
Faz-se necessária a construção de um entendimento que resguarde o interesse público dos comportamentos muitas vezes levianos de particulares. Encontramos no abuso de direito o ponto de partida para tanto. O instituto, embora de origem civilista, já é empregado no âmbito do Direito Administrativo.
O PODER DISCIPLINAR NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
O ordenamento jurídico confere à Administração Pública diversos poderes especiais. São prerrogativas dotadas de caráter instrumental, indispensáveis para que o Poder Público aja em prol do atendimento do interesse coletivo. Podem ser considerados uma forma de manifestação da supremacia administrativa.
Dentre os diversos poderes dos quais goza a Administração Pública encontra-se o poder disciplinar. Tal poder confere ao Poder Público a faculdade/dever de punir infrações cometidas por servidores ou particulares vinculados a ele por uma relação jurídica específica. É a situação de empresa que mantém contrato administrativo com o ente público.
De acordo com a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o “Poder disciplinar é o que cabe à Administração Pública para apurar infrações e aplicar penalidades aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas á disciplina administrativa”.
Por ser caracterizado como um poder-dever, a punição do infrator não faz parte da discricionariedade do gestor público. Uma vez verificada a transgressão, a sanção deve ser aplicada, sempre observados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Em verdade, a inércia do agente pode configurar a sua responsabilização.
O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento neste sentido:
MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. DISCRICIONARIEDADE. INOCORRÊNCIA. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA AUSENTE. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ORDEM DENEGADA.
I - Tendo em vista o regime jurídico disciplinar, especialmente os princípios da dignidade da pessoa humana, culpabilidade e proporcionalidade, inexiste aspecto discricionário (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar.
II - Inexistindo discricionariedade no ato disciplinar, o controle jurisdicional é amplo e não se limita a aspectos formais.
Ordem denegada, sem prejuízo das vias ordinárias.
(MS 12927/DF; Ministro FELIX FISCHER; TERCEIRA SEÇÃO; DJ 12/02/2008)
O doutrinador Hely Lopes Meirelles assevera, nesta linha:
A aplicação da pena disciplinar tem para o superior hierárquico o caráter de um poder-dever, uma vez que a condescendência na punição é considerada crime contra a Administração Pública. Todo chefe tem o poder e o dever de punir o subordinado quando este der ensejo, ou, se lhe faltar competência para a aplicação da pena devida, fica na obrigação de levar o fato ao conhecimento da autoridade competente. É o que determina a lei penal (CP, art. 320)"
Resta claro que a empresa contratada pela Administração possui relação jurídica especial com o ente, estando, portanto,abrangida pelo poder disciplinar. Desta forma, constatada a ocorrência de infração ou inadimplemento contratual, o Poder Público detém a prerrogativa de aplicar sanção administrativa, em conformidade com o artigo 87 da Lei n 8.666/93 (“Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções...”). O mesmo acontecerá nos casos do artigo 81 da mesma lei, em que há “recusa injustificada do adjudicatário em assinar o contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente”.
A imposição de penalidade nas referidas situações está expressamente amparada pela legislação. Resta examinar os casos em que inexiste contrato administrativo firmado ou licitação em andamento, mas há um liame causal que conecta particular e Administração em uma conjuntura jurídica.A solução é encontrada através do emprego do instituto do abuso de direito.
A BOA-FÉ OBJETIVA E O ABUSO DE DIREITO
O Código Civil de 2002 destacou uma nova visão sobre a boa-fé nos contratosprivados (art. 113 e art. 422). O diploma fundamenta-se em 3 princípios básicos: a socialidade, a operabilidade e a eticidade. É na eticidade que se encontra a base da boa-fé objetiva.
Antes remontada exclusivamente à subjetividade, o que tornava demasiadamente dificultosa a sua comprovação, a boa-fé no cenário jurídico atual também se relaciona com um padrão de conduta. Impõe a obrigação de agir pautada na probidade, lealdade, de acordo com um comportamento objetivo idôneo que pode ser considerado como uma obrigação contratual. Visa-se proteger a confiança legítima depositada por uma das partes na outra, reciprocamente. A boa-fé objetiva, portanto, dispensa a intenção do agente.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvaldesclarecem:
“(...)a boa-fé objetiva é horizontal, concerne às relações internas dos contratantes. Atende ao princípio da eticidade, pois polariza e atrai a relação obrigacional ao adimplemento, deferindo aos parceiros a possibilidade de recuperar a liberdade que cederam ao início da relação obrigacional. Mediante a emanação de deveres laterais - anexos, instrumentais ou de conduta -, de cooperação, informação e proteção, os parceiros estabelecem um cenário de colaboração desde a fase pré-negocial até a etapa pós-negocial, como implicitamente decorre da atenta leitura do art. 422 do Código Civil. Dentro de sua tridimensionalidade (funções interpretativa, integrativa e corretiva), a boa-fé ainda exerce uma função de controle, modelando a autonomia privada, evitando o exercício excessivo de direitos subjetivos e potestativos, pela via do abuso do direito (...)”
A doutrina define três funções da boa fé objetiva: a função interpretativa, a integrativa e a limitativa.A função interpretativa diz respeito ao princípio da confiança. Define que a interpretação do contrato deve sempre se fundamentar no ideal de lealdade, beneficiando sempre o sentido que proteja a confiança que uma parte deposita na outra ao celebrar um contrato. A função integrativa relaciona-se com os denominados deveres anexos. Implica a compreensão de que os deveres recíprocos das partes não se limitam ao contrato principal: não se iniciam quando da assinatura propriamente dita do contrato nem se encerram quando o contrato é extinto. Envolve também os deveres de informação, de proteção e de lealdade.
Expõem Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery:
Boa-fé objetiva. Responsabilidade pré e pós contratual. As partes devem guardar a boa-fé, tanto na fase pré-contratual, das tratativas preliminares, como durante a execução do contrato e, ainda, depois de executado o contrato (pós-eficácia das obrigações). Isso decorre da cláusula geral da boa-fé objetiva, adotada expressamente pelo CC 422 [...] Portanto, estão compreendidas no CC 422 as tratativas preliminares, antecedentes do contrato, como também as obrigações derivadas do contrato, ainda que já executado. Com isso os entabulantes - ainda não contratantes - podem responder por fatos que tenham ocorrido antes da celebração e da formação do contrato (responsabilidade pré-contratual) e os ex-contratantes- O contrato já se findou pela sua execução - também respondem por fatos que decorram do contrato findo (pós-eficácia das obrigações contratuais)
Já a função limitativa impede o exercício de atos abusivos através da imposição de limites comportamentais. Está conectada ao abuso de direito.
O Código Civil prevê em seu artigo 183 o instituto do abuso de direito, ao dispor que: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
De acordo com o dispositivo supraexposto, o abuso de direito ocorre quando a parte contratante exerce um direito que, a princípio, encontra amparo no ordenamento, mas o faz de modo a extravasar os limites estabelecidos pela boa-fé, ferindo o princípio da confiança. É um atuar em desacordo com as finalidades econômicas e sociais do direito. Há, por conseguinte, a prática de um ato ilícito e violação dos direitos subjetivos da outra parte.
O abuso de direito implica a responsabilização civil objetiva da parte, isto é, não há que se falar em intenção do agente. Basta o exame objetivo da conduta perpetrada, em confronto com o princípio da boa-fé objetiva. Acarretará, portanto, a obrigação de indenizar os prejuízos causados ao outro contratante.
Os professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald esclarecem:
Não se pode deixar de reconhecer uma íntima ligação entre a teoria do abuso de direito e a boa-fé objetiva (...) porque uma das funções da boa-fé objetiva é, exatamente, limitar o exercício de direitos subjetivos (...) contratualmente estabelecidos em favor das partes, obstando um desequilíbrio negocial. Por isso, o eventual exercício de um direito contemplado em contrato, excedendo os limites éticos do negócio, poderá configurar abuso de direito.
Decorrem da boa-fé objetiva as vedações ao venire contra factumproprium, a supressio, asurrectio e atuquoque. Todos representam condutas que podem ser caracterizadas como abuso de direito. O venireacontece quando se observa um comportamento contraditório de uma pessoa que, durante um certoperíodo, agiu de determinada maneira de forma a incutir em outra pessoa a confiança de que continuaria comportando-se da mesma forma. Sua atitude cria, com isso, uma legítima expectativa que, posteriormente, vem a ser quebrada por uma conduta que não condiz com o que se esperava. Sobre o tema, aduz Nelson Nery Junior, citando Menezes Cordeiro:
"Venire contra factumproprium. A locução ‘venire contra factumproprium’ traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. ‘Venire contra factumproprium’ postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - factumproprium - é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reações afectivas que devem ser evitadas. A proibição de venire contra factumproprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra ‘pacta sunt servanda’ para a juspositividade.”
O tema foi objeto de enunciado da IV Jornada de Direito Civil:
“Enunciado 362 - Art. 422. A vedação do comportamento contraditório (venire contrafactumproprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”
A supressio e a surrectioreferem-se, respectivamente, à supressão e a aquisição de um direito pelo decurso do tempo, devido a um comportamento reiterado. Podem ser consideradas como abuso de direito por omissão. Finalmente, a tuquoque é uma forma específica de conduta contraditória. Aqui, o agente inicialmente infringe certa norma jurídica e, depois, busca obter algum benefício com base na situação por elemesmocriada.
Temos que os institutos apresentados tiveram origem no Direito Civil, mas esta constatação não impede que a aplicação seja estendida a outros ramos do Direito.
A PLENA APLICAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO ADMINISTRATIVO
Devemos repelir o entendimento fácil e automático de que, como a origem do princípio da boa-fé objetiva e do abuso de direito são originários do Direito Civil, então eles não alcançam a esfera do Direito Público. Deveras, é majoritária a opinião de que tais postulados são plenamente aplicáveis em todos os âmbitos.
O Superior Tribunal de Justiça possui orientação neste sentido:
“Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87, da Lei nº 8.666⁄93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade, adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade.”
(REsp 914087 RJ 2007/0001490-6, Relator Min. JOSÉ DELGADO, T1, DJ 03/10/2007).
Os obstáculos que às vezes são alegados se relacionam com a supremacia do interesse público, princípio que sobrepõe o interesse coletivo ao particular. Todavia, não podemos considerar razoável tal alegação, já que, em um Estado de Direito, o ente público não está autorizado a atropelar valores constitucionais sob o pretexto de estar agindo de acordo com o interesse público. Deverá, sim, atuar com o devido respeito a tais princípios.
A Lei nº 9.784/99 trata expressamente da necessidade de observação da boa-fé objetiva pela Administração Pública em processos administrativos:
“A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:(...)
IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.”
Perceba-se que, muito embora haja menção apenas à “boa-fé”, o artigo declara que o princípio deve regular a atuação do ente, ou seja, trata da boa-fé objetiva.
Na maioria das vezesosdoutrinadores se limitam a tratar da plena aplicabilidade dos institutos à atuação da Administração. A boa-fé é citada como parâmetro para estabelecer os limites do comportamento administrativo, em defesa dos direitos do administrado. Contudo, deve ser ressaltado que a boa-fé precisa alcançar também a conduta do particular que se relaciona com o ente administrativo.
A própria Lei n 9.784/99 dispõe acerca desta obrigação do particular: “Art. 4o São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo: (...) II - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé.”
Certamente o dispositivo inclui a conduta da empresa que se relaciona com a Administração no terreno das licitações e dos contratos administrativos. Surge daí a possibilidade de reprimir o comportamento do particular que age com abuso de direito, mesmo sem amparo contratual.
Por fim, cumpre destacar que a Lei de Licitações e Contratos reconhece expressamente a possibilidade de aplicação supletiva das normas de teoria geral dos contratos e direito privado aos contratos administrativos (art. 54), de forma que não é razoável cogitar o afastamento das disposições teóricas referentes aos contratos privados, como a boa-fé objetiva.
A APLICAÇÃO DE PENALIDADES A EMPRESAS SEM CONTRATO ADMINISTRATIVO
Vimos acima que uma das funções da boa-fé objetiva é a integrativa, que trata dos deveres acessórios ínsitos à relação contratual. Tais deveres são, entre outros, a manutenção da confiança depositada mutuamente e a prestação de informações indispensáveis para a boa fruição do objeto contratual.
A doutrina ressoa o entendimento de que, ao contrário do Direito Penal, o Direito Administrativo não está atrelado ao princípio de que a cada comportamento ilícito deve necessariamente estar vinculada uma sanção, sob pena de violação ao princípio da legalidade. De acordo com Hely Lopes Meireles,
Outra característica do poder disciplinar é seu discricionarismo, no sentido de que não está vinculado à prévia definição da lei sobre a infração funcional e a respectiva sanção. Não se aplica ao poder disciplinar o princípio da pena específica que domina inteiramente o Direito Criminal comum, ao afirmar a inexistência da infração penal sem prévia lei que a defina e apene: 'nullumcrimen, nullapoenasine lege', Esse princípio não vigora em matéria disciplinar. O administrador, no seu prudente critério, tendo em vista os deveres do infrator em relação ao serviço e verificando a falta, aplicará a sanção que julgar cabível, oportuna e conveniente, dentre as que estiverem enumeradas em lei ou regulamento para a generalidade das infrações administrativas.
Portanto, o fato de a lei não conectar expressamente uma conduta a uma sanção não significa, no âmbito do poder disciplinar, a absoluta impossibilidade de sua aplicação.
É certo que a Lei afirma ser nulo o contrato verbal com a Administração. Mas a própria Lei de Licitações prevê em seu artigo 81 a possibilidade de punir mesmo sem contrato formal assinado: “A recusa injustificada do adjudicatário em assinar o contrato, aceitar ou retirar o instrumento equivalente, dentro do prazo estabelecido pela Administração, caracteriza o descumprimento total da obrigação assumida, sujeitando-o às penalidades legalmente estabelecidas”. Entretanto, porque o dispositivo menciona expressamente o termo “adjudicatário”, seria possível entender que a aplicação de penalidade por recusa em assinar o contrato somente seria possível nos casos em que há procedimento licitatório regular, não se aplicando às hipóteses de contratação direta, nas quais não há, tecnicamente, um adjudicatário. A cláusula exorbitante que permite à Administração aplicar penalidades sem necessidade de recorrer ao Judiciário decorreria da existência efetiva de um contrato assinado ou, pelo menos, de procedimento licitatório que sagrou determinada empresa vencedora, quando esta empresa, mais tarde, se recusa a assinar o instrumento. Contudo, ressalte-se que o art. 81 não deixa de prever um caso de responsabilidade pré-contratual do particular, o que significa que o ordenamento reconhece a possibilidade de punir tais hipóteses.
Em suma, a leié omissa quanto às circunstâncias em que não há contrato administrativo assinado ou sequer há licitação iniciada, como no caso em que a Administração pretende firmar uma contratação direta por inexigibilidade ou dispensa. O comportamento contraditório da parte que, depois de incutir na outra a justa expectativa de que assinaria um contrato e, mais tarde, abandona as tratativas, caracteriza o chamado venire contra factumproprium, faceta do abuso de direito.
Deveras, as negociações antecedentes, a conclusão do contrato, a sua execução, assim como o momento posterior ao adimplemento, se submetem aos padrões éticos impostos pela boa-fé objetiva. As relações jurídicas devem se compatibilizar com os ditames constitucionais reguladores das relações privadas, nas quais se exigem condutas éticas e responsáveis.
Leciona MarçalJusten Filho:
“Um meio de compor o conflito é reputar que o art. 81 instituiu uma hipótese de responsabilidade pré-contratual. A proposta obriga o proponente, tal como estabelece a teoria geral dos contratos (Cód. Civil, art. 427). No direito privado, o proponente deve manter os termos de sua proposta sob pena de, na recusa, ser responsabilizável pelas perdas e danos acarretadas à outra parte.
A regra legal estabelece que, no plano do Direito Administrativo, a recusa do particular de honrar a proposta equivale ao inadimplemento do contrato, ainda que ele não esteja formalizado. A recusa do particular caracteriza inadimplemento não propriamente ao contrato, pois esse ainda não foi firmado e juridicamente inexiste. Trata-se de inadimplemento do deverimposto a todo aquele que participa de uma licitação: se a proposta for aceita pela Administração e se esta convocar o particular para a contratação, o particular tem o dever de firmar o contrato no prazo devido.”
Ainda é possível entender que, caso a empresa tenha apresentado uma proposta comercial, seu cumprimento poderá ser exigido com base no Código Civil (art. 427) ou no Código de Defesa do Consumidor (Art. 35):
(CC) Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.
(CDC) Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:
I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;
II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;
III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.
Observamos situações em que o particular, não obstante tenha criado a legítima expectativa da Administração e até mesmo apresentado proposta de preços, mais tarde vem a colocardiversos empecilhos para justificar a não assinatura do contrato, obstáculos que poderiam ser facilmente transpostos com simples retificaçõese que, portanto, não justificamas escusas da empresa. Nestas circunstâncias a Administração poderá sancioná-la por quebra da boa-fé objetiva utilizando-se das penalidades previstas no art. 87 da Lei de Licitações, atendendo, sempre, ao princípio da proporcionalidade. Ressalve-se que nos casos em que os impedimentos são decorrentes de caso fortuito ou força maior restará afastada a culpa da empresa e, consequentemente, a sanção não deverá ser aplicada.
CONCLUSÃO
Não é razoável que o comportamento do particular caracterizado como “venire contra factumproprium”, dentro de uma relação de contrato administrativo, não seja passível de penalidade administrativa somente porque a Lei de Licitações não prevê manifestamente essa possibilidade.
Encontra-se no atual ordenamento jurídico embasamento parasancionar empresas que agem com violação da boa-fé objetiva mesmo diante da inexistência de contrato administrativo formal assinado ou processo de licitação iniciado. Uma avaliação da legislação administrativa em confronto com os princípios civilistas – especialmente o postulado do abuso de direito – permitem afastar qualquer incerteza a esse respeito.
O gestor público que se depare com esta circunstância poderá aplicar as sanções dispostas no art. 87 da Lei nº 8.666/93 como forma de punir a empresa e, por que não, reprimi-la, para que que tais procedimentos prejudiciais à Administração não se tornem um padrão reiterado.
BIBLIOGRAFIA
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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade.Código Civil Anotado e legislação extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
Advogada da União. Coordenadora-Geral Substituta da Consultoria Jurídica da União no Estado do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Paula Brandão. O abuso de direito e a possibilidade de aplicação de sanções administrativas em casos de inexistência de contrato administrativo ou de licitação deflagrada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jun 2013, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/35542/o-abuso-de-direito-e-a-possibilidade-de-aplicacao-de-sancoes-administrativas-em-casos-de-inexistencia-de-contrato-administrativo-ou-de-licitacao-deflagrada. Acesso em: 22 nov 2024.
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