Nos termos da Constituição Federal, art. 37, XXI, a contratação de obras, serviços, as compras e alienações realizadas pela Administração Pública deverão, em regra, ocorrer por meio de licitação pública. Assim dispõe o referido dispositivo:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
Nessa linha, a licitação pública é processo seletivo, mediante o qual a Administração Pública oferece igualdade de oportunidade a todos os que com ela queiram contratar, preservando a eqüidade no trato do interesse público, tudo a fim de cotejar propostas para escolher uma ou algumas delas que lhe sejam a mais vantajosa. No entanto, existem hipóteses em que a licitação formal seria impossível ou frustraria a própria consecução do interesse público. O procedimento licitatório normal conduziria ao sacrifício do interesse público e não asseguraria a contratação mais vantajosa.
Um dos pressupostos da licitação é o tratamento isonômico, que deve ser assegurado pelo Estado, a todos os interessados que atuam no mercado e atendam as condições exigidas para a contratação. Entretanto, conforme acima exposto, existem situações em que o interesse público – pautado em razões de ordem técnica ou/e jurídica – demanda para a Administração, conforme previsão legal, uma contratação direta. Esta forma de contratação poderia representar violação ao principio da isonomia, mas o interesse público justifica o tratamento diferenciado dado pelo legislador nesses casos, inclusive, com respaldo no acima citado dispositivo constitucional.
Portanto, para assegurar o interesse público existem situações mencionadas em lei, e de caráter excepcional, em que se admite a contratação sem licitação, a nominada contratação direta. Essa forma direta de contratação não significa inaplicação dos princípios básicos que orientam a atuação administrativa, pois o administrador está obrigado a seguir um procedimento administrativo determinado, destinado a assegurar a prevalência dos princípios jurídicos fundamentais.
Assim, a contratação direta se submete a um procedimento administrativo, ou seja, a ausência de licitação não equivale à contratação informal, realizada com quem a Administração bem entender, sem a devida instrução e motivação que demonstrem a sua legalidade. Nas etapas internas iniciais, a atividade administrativa será idêntica, seja ou não a futura contratação antecedida de licitação. Não é raro que esse procedimento prévio à contratação se exteriorize como uma concorrência simplificada.
A dispensa de licitação, assim como a inexigibilidade, é hipótese de contratação direta pela Administração Pública e se configura nas hipóteses em que a licitação é possível, há viabilidade de competição, mas realizá-la importaria em sacrifício ou prejuízo desmedido ao interesse público. Portanto, visando o legislador resguardar o interesse público, permitiu à Administração Pública a dispensa de licitação nas hipóteses previstas em lei. Assim, o agente administrativo poderá dispensar a licitação e realizar a contratação direta nos casos expressamente autorizados por lei.
Dentre as possibilidades de dispensa de licitação em razão do objeto, o legislador tornou dispensável a realização de licitação para a aquisição de componentes ou peças de reposição que assegurem a garantia técnica do produto adquirido. Nesses termos estabelece o inciso XVII do artigo 24, da Lei n. 8.666/93, in verbis:
Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
“XVII – para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira, necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável para a vigência da garantia;” (Grifamos)
A lista presente no art. 24 da multicitada lei de licitações é exaustiva, as situações ali previstas que legitimam a contratação direta sem licitação não podem ser ampliadas pelo Administrador[1]. Segundo o Profº Lucas Furtado da Rocha; “Trata-se de lista fechada que não admite que, a pretexto de interpretações extensivas ou analogias, venham a ser criadas hipóteses não autorizadas pelo legislador[2].”
Com esteio no princípio da legalidade, temos que a dispensa de licitação deve ser empreendida conforme as hipóteses prescritas em lei, nos seus estritos termos. Sendo assim, a dispensa em tela somente poderá ocorrer quando a aquisição do componente ou peça original for indispensável para a vigência da garantia do produto. Ou seja, se a garantia técnica do produto não estiver vinculada a aquisição da peça através do fornecedor original ou exista mais de um fornecedor original, não será hipótese de contratação direta com fulcro no inciso XVII do artigo 24, da Lei n. 8.666/93.
A respeito do referido dispositivo, interessante destacar os comentários do Professor Marçal Justen Filho[3], conforme abaixo transcrito:
“No caso do inc. XVII, a Administração Pública efetiva a compra direta de componentes ou peças, vinculadas a equipamentos anteriormente adquiridos. São operações acessórias, não só no sentido de os objetos adquiridos não terem utilidade autônoma como também no de que está pressuposto um contrato anterior. Mas as contratações diretas apenas estarão autorizadas quando forem condição imposta pelo fornecedor para manter a garantia ao equipamento anteriormente fornecido. Essa exigência, obviamente, somente poderá ser respeitada quando expressamente constante da proposta originariamente formulada pelo fornecedor, por ocasião da aquisição do equipamento principal.
(...).
A empresa que subordina uma contratação à realização de outra infringe o postulado da concorrência leal[4]. Há modalidade de abuso de poder econômico (em sentido amplo). Somente é viável a exigência do fornecedor quando as peças “originais” apresentem alguma qualidade especial, que se relacione direta e causalmente com o funcionamento eficiente do equipamento. Ou seja, é válida a restrição imposta pelo fabricante quando a utilização de peças ou componentes de outra origem produzir desgaste ou algum tipo de prejuízo ao equipamento. Enfim, o fabricante estaria legitimado a recusar a garantia quando o defeito tivesse sido produzido pela utilização de peças inadequadas, defeituosas ou incompatíveis com o equipamento. Apenas nesses casos é que a exigência de aquisição de peças e componentes originais apresenta fundamento adequado, compatível com o ordenamento jurídico.”
Nesse sentido seguem as lições de Joel de Menezes Niebuhr[5]. Senão vejamos:
“Essa hipótese de dispensa é destinada à aquisição de componentes ou peças de vinculadas à garantia técnica. Ou seja, se a Administração adquire a peça com terceiros, perde a garantia do produto. No entanto, essa situação precisa ser ponderada, dado que qualquer fornecedor, para estabelecer ao seu favor reserva de mercado, poderia passar a condicionar a garantia técnica à compra de seus componentes e peças.” (grifo nosso)
Os fornecedores são obrigados a assegurar prazo de garantia dos produtos fornecidos e para isso exigem que o contratante utilizem peças de reposições originais. Entretanto, essa exigência deve estar fundamentada em razões de ordem técnica, devidamente demonstradas, sob pena de configurar-se indevida e passível de repreensão por parte do Estado. Por essa razão, deverá Administração Pública quando da aquisição direta de peças e componentes com fundamento no multicidado dispositivo legal, observar a indispensabilidade da aquisição para a vigência da garantia e a sua razoabilidade técnica.
Ressalvamos, todavia, em que pese a previsão de contratação direta com fundamento no inciso XVII do artigo 24 da Lei n. 8.666/63 versar sobre dispensa de licitação, em nosso entendimento, esta se configura, de fato, em hipótese de inexigibilidade de licitação e não de dispensa. A aquisição nesses casos somente poderá ocorrer por meio de um fornecedor exclusivo, havendo, assim, inviabilidade de competição, o que caracteriza hipótese de inexigibilidade de licitação nos termos do art. 25 da Lei de Licitações e Contratos. Senão vejamos:
“Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:” (destacamos)
Deste modo, sempre que inviável a competição, sucede inexigibilidade de licitação pública. Nesses termos seguem os ensinamentos do Professor Jorge Ulisses Jacoby[6]:
“O estudo da inexigibilidade de licitação repousa numa premissa fundamental: a de que é inviável a competição, seja porque só um agente é capaz de realizá-la nos termos pretendidos, seja porque só existe um objeto que satisfaça o interesse da Administração. Daí porque não se compreende que alguns autores e julgados coloquem lado a lado dois conjunto de idéias antagônicos, quando firmam o entendimento de que há singularidade, que o agente é notório especialista, mas que mesmo existindo mais de um agente capaz de realizá-lo a licitação é inexigível, abandonando exatamente o requisito fundamental do instituto, constante do caput do art. 25, da Lei 8.666/93”. (Grifo nosso)
Por fim, considerando os argumentos acima expostos, entendemos que o cenário estabelecido para a dispensa na aquisição de peças e componentes de fornecedor exclusivo, com a finalidade de assegurar a garantia técnica do produto configura-se, mais acertadamente, em inexigibilidade de licitação, em face da inviabilidade de competição.
[1] Nesse sentido, vide Decisões – TCU – 820/97 – Plenário, DOU, 12 dez. 1997; 473/95 – Plenário, DOU de 2.10.95
[2] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Licitações e Contratos Administrativos, Editora Fórum, Belo Horizonte 2007, pg. 71.
[3]JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos,10ª Edição, pg. 258.
[4] “As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: ... XXIII – subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem;” (art. 20 da Lei nº 8.884).
[5] NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e Inexigibilidade de Licitação Pública, Dialética, São Paulo 2003, pg. 307.
[6] Contratação Direta Sem Licitação”, 3ª ed. Brasília Jurídica, 1997, pág. 326:
Procurador Federal. Especialista em Direito Sanitário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Maxiliano D'avila Cândido de. Dispensa de licitação para aquisição de componentes ou peças para manutenção da garantia técnica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 nov 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37125/dispensa-de-licitacao-para-aquisicao-de-componentes-ou-pecas-para-manutencao-da-garantia-tecnica. Acesso em: 22 nov 2024.
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