RESUMO: Trata-se de texto em que se demonstra a possibilidade de fornecimento à autoridade policial de informações pessoais constantes da base de dados do Censo Escolar, sem que seja violado o princípio da intimidade.
PALAVRAS-CHAVE: Censo Escolar. Dados pessoais. Investigação criminal. Sigilo.
ABSTRACT: This is text that demonstrates the possibility of providing the police authority for personal information in the database of the School Census, without having violated the principle of intimacy.
KEYWORDS: School Census. Personal data. Criminal investigation. Secrecy.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Supremacia do interesse público sobre o privado; 2 Do sigilo do banco de dados do Censo Escolar; 3 Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP realiza anualmente o censo anual da educação (Censo Escolar). Em virtude disso, essa autarquia mantém em sua base de dados informações relativas aos estudantes da educação básica e da educação superior, nos termos do Decreto nº 6.425, de 2008. Os dados pessoais apurados no censo são protegidos por sigilo.
Entretanto, como se demonstrará adiante, esse sigilo não pode ser oponível a requisição de autoridade policial sobre dados relativos a pessoas que sejam alvo de investigação criminal.
Portanto, a problemática do presente texto versa sobre a impossibilidade de invocação do sigilo dos dados constantes do censo escolar relativos a pessoas investigadas por autoridade policial.
1 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO
Verifica-se estarem em confronto dois princípios constitucionais: o da privacidade e o da supremacia do interesse público, merecedores, desde logo, de uma breve exposição.
O princípio da privacidade está previsto no inc. X do art. 5º da Constituição Federal, verbis:
“Art. 5º (...)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Já o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, implícito no sistema constitucional brasileiro, significa que aquele deve prevalecer sobre o particular sempre que a paz social for colocada em risco. É pressuposto lógico do convívio social e inerente a qualquer sociedade.
Sobre o interesse público, confiram-se as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, verbis:
“Interesse público ou primário, repita-se, é o pertinente à sociedade como um todo, e só ele pode ser validamente objetivado, pois este é o interesse que a lei consagra e entrega à compita do estado como representante do corpo social. Interesse secundário é aquele que atina tão-só ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada, e que por isso mesmo pode lhe ser referido e nele encarnar-se pelo simples fato de ser pessoa, mas que só pode ser validamente perseguido pelo Estado quando coincidente com o interesse público primário.
Com efeito, por exercerem função, os sujeitos de Administração Pública têm que buscar o atendimento do interesse alheio, qual seja, o da coletividade, e não o interesse de seu próprio organismo, qua tale considerado, e muito menos o dos agentes estatais.”[1]
E, sobre a supremacia do interesse público, Diógenes Gasparini, verbis:
“No embate entre o interesse público e o particular há de prevalecer o interesse público. Esse o grande princípio informativo do Direito Público no dizer de José Cretella Júnior (Tratado, cit., v. 10, p. 39). Com efeito, nem mesmo se pode imaginar que o contrário possa acontecer, isto é, que o interesse de um ou de um grupo possa vingar sobre o interesse de todos.
(...) A aplicabilidade desse princípio, por certo, não significa o total desrespeito ao interesse privado, já que a Administração deve obediência ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito, consoante prescreve a Lei Maior da República (art. 5º, XXXVI). De sorte que os interesses patrimoniais afetados pela prevalência do interesse público devem ser indenizados cabalmente.”[2]
Na situação em análise, estão em confronto o direito dos investigados em terem seus dados constantes do Censo Escolar protegidos pelo sigilo e, de outro lado, o dever do Estado em exercer a persecução penal.
Trata-se de hipótese de aplicação da técnica de ponderação de interesses, utilizada “quando há colisão de princípios ou de direitos fundamentais, funcionando como uma alternativa à técnica tradicional de subsunção”[3].
Daniel Sarmento estabelece os parâmetros para o adequado uso dessa técnica, verbis:
“O julgador deve buscar um ponto de equilíbrio entre os interesses em jogo, que atenda aos seguintes imperativos: a) a restrição a cada um dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro; b) tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do interesse contraposto e c) o benefício logrado com a restrição a um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico.”[4]
Assim, há que se ponderar o direito constitucional da intimidade dos envolvidos com o direito à obtenção de informação de interesse coletivo ou geral. Ou seja, como se tratam de princípios em colisão, deve-se analisar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade da decisão a ser tomada.
Resolvido o conflito, afasta-se, consequentemente, a possibilidade de incidência do art. 153 do Código Penal[5] e de penalidades no âmbito administrativo-estatutário, bem como elimina a hipótese de responsabilização civil do INEP perante terceiros, que poderia se valer de ação regressiva em face do servidor.
Ressalte-se, portanto, sempre que houver conflito entre o interesse público e o interesse particular, deverá prevalecer o primeiro, tutelado pelo Estado.
Assim, conforme se demonstrará adiante, em análise das normas correlatas à situação, o fato de as informações disponíveis no banco de dados do INEP serem sigilosas, não as inibe de serem repassadas a outros entes da Administração Pública, desde, é claro, que observados os devidos cuidados relativos ao sigilo, e com o fim precípuo de resguardar a ordem pública.
Nesse sentido, confiram-se alguns precedentes jurisprudenciais, verbis:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. INAPLICABILIDADE DO ART. 514, DO CPP. SIGILO BANCÁRO. SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO. ESTELIONATO COMPROVADO. CRIME CONTINUADO. IMCOMPATIBILIDADE COM O DELITO DO ART. 288 DO CPP (QUADRILHA OU BANCO).
1. O disposto no art. 514 do CPP só se aplica a crime de responsabilidade de funcionário público, não ao estelionato, além de ser dispensável quando a denúncia é instruída com inquérito policial.
2. O direito à intimidade (sigilo bancário) não é absoluto, cedendo passo a um interesse público maior, qual seja, o do Estado de apurar e punir exemplarmente os delitos cometidos.
3. No caso, embora comprovada a participação de todos os acusados, não se pode falar em concurso material de crimes, mas em crime continuado.
4. O crime de quadrilha ou bando é incompatível com a continuação delituosa.” (Grifo nosso).
(TRF/1ª Região. ACR 96.01.30848-2, Rel. Des. Federal Eustáquio Silveira, Quarta Turma, DJ de 7.5.1998, p. 84).
“PROCESSO CIVIL. AÇÃO CAUTELAR. EXIBIÇÃO DE EXTRATOS BANCÁRIOS. INDÍCIOS DE ESCRITURAÇÃO CONTÁBIL IRREGULAR.
1. Há indícios de escrituração contábil irregular.
2. A supremacia do interesse público sobre o particular justifica a antecipação da tutela, para propiciar a apreciação célere e ampla dos possíveis atos lesivos ao Erário.
3. A exibição dos extratos bancários, na esfera judicial ou administrativa, não vulnera a intimidade do contribuinte, que continua protegida contra a indevida especulação alheia.
4. Agravo de instrumento não provido. Agravo regimental prejudicado.” (Grifo nosso).
(TRF/3ª Região. AG. 2003.03.00.046631-0, Rel. Des. Federal Fábio Prieto, Quarta Turma, DJ de 29.11.2006, p. 289).
2 DO SIGILO DO BANCO DE DADOS DO CENSO ESCOLAR
Vejamos o que dispõe o art. 4º da Lei nº 8.159, de 1991, bem como o art. 31 da Lei nº 12.527, de 2011 (Lei de Acesso à Informação), verbis:
Lei nº 8.159, de 1991
“Art. 4º Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, contidas em documentos de arquivos, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem como à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.”
Lei nº 12.527, de 2011
Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.
§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:
I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e
II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.
§ 2º Aquele que obtiver acesso às informações de que trata este artigo será responsabilizado por seu uso indevido.
§ 3º O consentimento referido no inciso II do § 1º não será exigido quando as informações forem necessárias:
I - à prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente para o tratamento médico;
II - à realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem;
III - ao cumprimento de ordem judicial;
IV - à defesa de direitos humanos; ou
V - à proteção do interesse público e geral preponderante.
§ 4º A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.
§ 5º Regulamento disporá sobre os procedimentos para tratamento de informação pessoal. (Grifos nossos).
Desse modo, infere-se a possibilidade dos dados pessoais de indivíduos investigados, e constantes da base de dados do Censo Escolar sob guarda do INEP, serem disponibilizados a órgão de segurança pública incumbido da correspondente investigação criminal.
No entanto, por serem essas informações de cunho sigiloso, todos os procedimentos inerentes ao seu fornecimento devem ser cercados de precauções para que a proteção dos dados seja garantida, sob pena de responsabilidade civil, penal e administrativa.
Além disso, é importante advertir ao destinatário das informações que o seu sigilo deverá igualmente ser preservado, nos termos da Lei de Acesso à Informação.
Por outro lado, o posicionamento esposado não contraria a restrição consagrada no art. 6º do Decreto nº 6.425, de 2008, que dispõe sobre o censo nacional da educação, verbis:
“Art. 6º Ficam assegurados o sigilo e a proteção de dados pessoais apurados no censo da educação, vedada a sua utilização para fins estranhos aos previstos na legislação educacional aplicável.”
A vedação de utilização de dados pessoais apurados no censo da educação para fins diversos dos previstos na legislação educacional aplicável tem como destinatário os órgãos e agentes encarregados da realização do mencionado censo.
Assim, a limitação imposta deve ser interpretada sistematicamente com as demais normas integrantes do ordenamento jurídico pátrio, não podendo contrariar o princípio da supremacia do interesse público.
Além disso, a disponibilização dos dados pessoais, tais como endereços, telefones e nomes das instituições de ensino superior em que estudam as pessoas investigadas, não fere, salvo melhor juízo, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada dos investigados.
Tais informações poderiam ser muito bem alcançadas de outras formas sem que se colocasse em risco o direito à privacidade das pessoas objeto de investigação. Portanto, o sigilo dos dados de cunho pessoal não será prejudicado ao serem disponibilizados à autoridade policial, objetivando a instrução específica de investigação criminal, desde que a característica de sigilo permaneça respeitada.
E, ainda que, eventualmente, ocorresse violação ao direito à privacidade, seria pela necessidade de dar espaço à supremacia do interesse público.
3 CONCLUSÃO
Diante do exposto, pode-se concluir que:
a) O fato de as informações disponíveis no banco de dados do INEP serem sigilosas, não as inibe de serem repassadas a outros entes da Administração Pública, desde, é claro, que observados os devidos cuidados relativos ao sigilo, e com o fim precípuo de resguardar a ordem pública;
b) É possível que os dados pessoais de indivíduos investigados, e constantes da base de dados do Censo Escolar sob guarda do INEP, sejam disponibilizados a órgão de segurança pública incumbido da correspondente investigação criminal.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Código Penal. Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em 19 de dezembro de 2013.
_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988, Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 19 de dezembro de 2013.
_______. Decreto nº 6.425, de 4 de abril de 2008. Dispõe sobre o censo anual da educação. Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/Decreto/D6425.htm>. Acesso em 19 de dezembro de 2013.
_______. Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm>. Acesso em 19 de dezembro de 2013.
_______. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Diário Oficial da União – Brasília, DF. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>. Acesso em 19 de dezembro de 2013.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 13ª ed. rev. e atual – São Paulo: Saraiva, 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Malheiros, 2008.
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Malheiros, 2008, p. 99.
[2] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 13ª ed. rev. e atual – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 20.
[3] Silva Neto, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 97. Técnica de subsunção – o enunciado normativo é a premissa maior; os fatos, a premissa menor; a consequência será a aplicação da norma ao caso concreto.
[4] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 144-145.
[5] Divulgação de segredo
Art. 153 - Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º Somente se procede mediante representação. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 1º-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2º Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Procurador Federal em Brasília/DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINTO, Leandro de Carvalho. Inoponibilidade de sigilo à autoridade policial de dados pessoais constantes do banco de dados do censo escolar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 dez 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37914/inoponibilidade-de-sigilo-a-autoridade-policial-de-dados-pessoais-constantes-do-banco-de-dados-do-censo-escolar. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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