1. Introdução

Tendo em vista que não são raros os questionamentos acerca da legitimidade das normas editadas pelas agências reguladoras, se buscará, de maneira breve, esclarecer que tal poder normativo não ofende o princípio da legalidade.

2. O Poder Normativo das Agências Reguladoras:

Conforme observa Barroso, “a grande dificuldade que envolve a discussão sobre o poder normativo das agências reguladoras, diz respeito ao seu convívio com o princípio da legalidade. É preciso determinar os limites dentro dos quais é legítima sua flexibilização, sem que se perca sua identidade como norma válida e eficaz”. ^[1]

Tal constatação decorre do fato de as agências reguladoras serem dotadas de amplos poderes normativos ante as leis que as organizaram. De fato, em que pese algumas atribuições conferidas permitirem o entendimento de que elas têm função apenas de produzir normas secundárias destinadas a detalhar os conceitos dispostos na lei, outras conferem poderes normativos para que elas disciplinem autonomamente determinadas questões, já que não se vislumbra, na lei instituidora da entidade, um parâmetro fixador das condições básicas a serem desenvolvidas.

Nessa senda, diante da clássica compreensão do princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988, alguns autores, como Ferreira Filho,^[2] têm entendido que as leis que conferiram esses poderes às agências reguladoras apresentam graves problemas em face do sistema constitucional brasileiro.

Segundo esse autor, as agências reguladoras gozam

de poder normativo que, na letra das leis instituidoras, é amplíssimo.[...] Da leitura dos textos legais que regulam as agências existentes depreende-se que eles envolvem, por um lado, a regulamentação das leis que regem o campo de atividades a elas atribuído, por outro, a edição de normas independentes sobre matérias não disciplinadas pela lei. Para usar a linguagem habitual, envolve ele o poder de editar atos regulamentares executivos e atos regulamentares independentes ou autônomos. [...] Quanto à edição de normas independentes, procter legem, o óbice advém do princípio da legalidade, segundo o qual ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (constituição, art 5º, II). Tais regras independentes importam, numa exegese rigorosa, em usurpação do Poder Legislativo pertencente ao Congresso Nacional. Poder indelegável, fora das hipóteses que a própria Constituição prevê (lei delegada), que não se configuram no caso. ^[3]

Trata-se de interpretação restritiva do princípio da legalidade, que não mais se sustenta nos dias atuais, de tal maneira que o próprio Ferreira Filho reconhece que, na prática, a edição de normas autônomas é “antiga, difundida e tolerada. Todos têm presente as circulares e as portarias que certos órgãos da Administração Pública usam e abusam, fazendo ‘leis’ que não raro mais interferem na vida do cidadão que as leis propriamente ditas”. ^[4]

Sob esse aspecto, vale lembrar que o culto à lei adveio dos ideais liberais, que propugnavam a proteção do indivíduo contra o Estado, sendo as leis existentes o principal instrumento de garantia desse direito de não afetação da esfera do indivíduo. Nesse ponto, Bruna ensina que tal modelo de Estado “foi forjado pela burguesia para conter o poder absoluto do monarca [...]”,^[5] de modo que se considerava que

somente a lei, ato aprovado pelos parlamentos, pudesse gerar obrigações aos particulares. Na luta contra o absolutismo, o Parlamento surge como um órgão de limitação do poder despótico do monarca, por meio do qual a burguesia somente tolera como obrigatório aquilo que tenha recebido o consentimento de seus representantes.[6]

Em face disso, portanto, é que se conferiu um caráter sagrado à lei e, conseqüentemente, ao princípio da legalidade, permitindo-se inclusive que, durante muito tempo, se perpetuassem injustiças em nome de um legalismo exacerbado.

Todavia, foi justamente esse cenário que fez com que se começasse a repensar o princípio da legalidade. Segundo Aragão,

a pedra de cal no ideal legalista do iluminismo, segundo o qual as leis (do parlamento) seriam necessariamente justas e racionais, foi a série de iniqüidades por elas veiculadas ao longo da história (nazismo, fascismo). Deu-se o que Louis Favoreu qualificou como a “dessacralização da lei”: tendo-se percebido que poderia perfeitamente “causar danos às liberdades e direitos fundamentais dos indivíduos; é, portanto necessário proteger-se também contra ela e não mais exclusivamente contra os atos do poder executivo; a lei não está mais no centro do poder executivo. ^[7]

Além disso, Moraes destaca que as idéias liberais clássicas sobre o princípio da legalidade foram atenuadas

em conseqüência do novo modelo de Estado, que exige a descentralização e que traz consigo novas exigências de celeridade, eficiência e eficácia fiscalizatória incompatíveis com o modelo anacrônico da burocracia tradicional gerada das idéias liberais de Separação de Poderes e inaplicável em face do aumento de ingerência do Poder Público na Sociedade. ^[8]

Se isso não bastasse, como observa Silva, em face da evolução do pensamento liberal, o rigor do princípio da legalidade passou a ceder espaço, em determinados casos concretos, a outros princípios de grande importância, como o da segurança jurídica, restando mitigado. Assim, consoante o autor,

há relativamente pouco tempo é que passou a considerar-se que o princípio da legalidade da Administração Pública, até então tido como incontrastável, encontrava limites na sua aplicação, precisamente porque se mostrava indispensável resguardar, em certas hipóteses, como interesse público prevalecente, a confiança dos indivíduos em que os atos do Poder Público, que lhe dizem respeito e outorgam vantagens. ^[9]

Nessa linha, a idéia de legalidade, como um sobreprincípio, foi sendo paulatinamente revista. A legislação pátria consagrou essa tendência de mitigação do referido princípio, na Lei 9.784/99 (lei que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal), que, em seu art. 54, estabeleceu a prevalecência do Princípio da Segurança Jurídica sobre o Princípio da Legalidade ante o decurso de determinado lapso temporal.

Esses aspectos evidenciam que, em que pese a lei ter sido considerada a principal fonte primária do ordenamento jurídico pátrio, e o Princípio da Legalidade, um dos pilares do modelo democrático, ele admite reformulações. Diante disso, a jurisprudência e a doutrina têm construído em torno da tradicional concepção do Princípio da Legalidade, uma nova teoria, que permite a convivência dela com outros atos normativos igualmente primários, inovando validamente a ordem jurídica.

No que diz respeito à jurisprudência, o STF já se pronunciou no sentido de que

 [...] as normas ditadas por essa lógica da mais abrangente irradiação sistêmica admitem contemporização. Comportam atenuação, exatamente para ceder espaço a valores e interesses outros que, embora de menor compleição material, são relevantes o bastante para merecer um tratamento heterodoxo. Um tratamento peculiar, despadronizado, por se traduzir numa nota de relativização àquela mais abrangente racionalidade sistêmica. ^[10]

Na doutrina, uma releitura interessante do princípio da legalidade é a que distingue a reserva da lei em absoluta e relativa. Essa distinção é bem-apresentada por Grau nos seguintes termos:

Nesta oportunidade pretendo, no exame do princípio da legalidade, cogitar exclusivamente de um dos múltiplos aspectos, nele, a reclamar atenção. Tome-se o enunciado do seu artigo 5º, II: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ora, há visível distinção entre as seguintes situações: [i] vinculação às definições da lei; [ii] vinculação às definições decorrentes – isto é, fixadas em virtude dela – de lei. No primeiro caso estamos diante da reserva da lei; no segundo, em face da "reserva da norma" [norma que pode ser tanto legal quanto regulamentar; ou regimental].Na segunda situação, ainda quando as definições em pauta se operem em atos normativos não da espécie legislativa – mas decorrentes de previsão implícita ou explícita em lei – o princípio estará sendo devidamente acatado. No caso, o princípio da legalidade expressa reserva da lei em termos relativos [= reserva da norma], razão pela qual não impede a atribuição, explícita ou implícita, ao Executivo e ao Judiciário, para, no exercício de função normativa, definir obrigação de fazer e não fazer que se imponha aos particulares – e os vincule. Voltando ao artigo 5^o II, do texto constitucional, verificamos que, nele, o princípio da legalidade é tomado em termos relativos, o que induz a conclusão de que o devido acatamento lhe estará sendo conferido quando – manifesta, explícita ou implicitamente, atribuição para tanto – ato normativo não legislativo, porém regulamentar ou regimental, definir obrigação de fazer ou não fazer alguma coisa imposta a seus destinatários.Tanto isso é verdadeiro – que o dispositivo constitucional em pauta consagra o princípio da legalidade em termos apenas relativos – que em pelo menos três oportunidades [isto é, no artigo 5^o, XXXIX, no artigo 150, I, e no parágrafo único do artigo 170] a Constituição retoma o princípio, então o adotando, porém, em termos absolutos: não haverá crime ou pena, nem tributo, nem exigência de autorização de órgão público para o exercício de atividade econômica sem lei, aqui entendida como tipo específico de ato legislativo, que os estabeleça. Não tivesse o artigo 5^o, II consagrado o princípio da legalidade em termos somente relativos e razão não haveria a justificar a sua inserção no bojo da Constituição, em termos então absolutos, nas hipóteses referidas. ^[11]

Essa distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de lei demonstra-se útil para, de forma legítima, atender às necessidades do Estado contemporâneo, caracterizado pela redução da intervenção estatal direta em certas atividades, com a conseqüente atribuição ampla de funções regulatórias. Como decorrência dessa nova função, surge a necessidade de o Estado disciplinar juridicamente situações que exigem conhecimentos técnicos especializados e que estão em constante modificação, demandando atuações estatais técnicas e ágeis do poder público. Essa demanda, no entanto, revela-se incompatível com os legisladores pátrios que não possuem os conhecimentos técnicos necessários para atendê-la e, com o lento processo legislativo brasileiro, incapaz, na maioria das vezes, de dar uma resposta rápida e eficiente para a realidade que se apresenta.

Diante desse quadro, é legítima a flexibilização do princípio da legalidade para permitir a atuação das agências reguladoras de maneira a bem desempenhar seu papel, qual seja o de regular e fiscalizar atividades.

Ademais, essa reformulação da idéia de legalidade e de sua aplicação, no que diz respeito ao reconhecimento de poderes normativos às agências reguladoras, permite a satisfação do princípio da eficiência, que tem sido entendido, nas palavras de Moraes, como “aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade[...]”.^[12]

Isso porque uma regulação imparcial e eficaz é mais facilmente atingida por entidades como as agências reguladoras, que se caracterizam pela natureza técnica de suas funções e pela sua independência em relação aos Poderes existentes, do que pelo Legislativo, que teria de atuar sem os conhecimentos necessários para tal, e vinculado a questões políticas, que são inevitavelmente parciais.

Sendo assim, em que pese respeitáveis opiniões em sentido contrário, desde que adotada a concepção de legalidade ora defendida, não há que se falar em conflito entre o poder normativo das agências reguladoras e o Princípio da Legalidade. Ambos podem conviver harmoniosamente.

3. Considerações Finais

Diante do quadro apresentado no decorrer desse trabalho, constata-se que as normas editadas pelas agências reguladoras são legítimas.

Sob esse aspecto, é importante ter-se em mente, sobretudo, que a partir do momento em que o Estado deixa de explorar diretamente a maioria das atividades de interesse coletivo, passando, porém, a ter o dever de regular essas mesmas atividades, para que elas não satisfaçam apenas os interesses dos agentes econômicos que as exploram, ganha relevância especial as agências reguladoras e o desempenho da função de elaborar normas norteadoras da atuação privada, uma vez que regular uma atividade pressupõe a normatização dessa mesma atividade, fixando principalmente limites para o seu exercício.

Destarte, a previsão no Texto Constitucional de entidades específicas, para o desempenho da função de regulação estatal, confere legitimidade e força impositiva às normas elaboradas pelas agências reguladoras.