A despeito da consolidada jurisprudência acerca dos requisitos necessários à decretação cautelar de indisponibilidade de bens em ações de improbidade administrativa, alguns Tribunais têm-se mostrado resistentes em observá-la de forma irrestrita.
O que se tem vislumbrado, em maior ou menor grau, é a tentativa de promover um temperamento do periculum in mora presumido, com fundamento, essencialmente, no princípio da proporcionalidade, em determinados casos concretos.
O presente artigo destina-se a analisar uma dessas hipóteses, nas quais a cessação precoce da medida constritiva poderá acarretar sérios óbices à efetividade do processo.
Desenvolvimento
Conforme aduzido, nos casos em que há a presença de contundentes elementos probatórios (fumus boni juris) relacionados ao cometimento de atos de improbidade administrativa, o STJ tem firme entendimento no sentido da presunção do periculum in mora, prescindindo-se de quaisquer indícios de dilapidação patrimonial por parte dos requeridos. É o que se extrai, dentre outros inúmeros precedentes, do REsp nº 1.115.452, de relatoria do Min. Herman Benjamin, assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INDISPONIBILIDADE DOS BENS. DECRETAÇÃO. REQUISITOS. ART. 7º DA LEI 8.429/1992.
1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal no Estado do Maranhão contra a ora recorrida e outros, em virtude de suposta improbidade administrativa em operações envolvendo recursos do Fundef e do Pnae.
2. A indisponibilidade dos bens é medida de cautela que visa a assegurar a indenização aos cofres públicos, sendo necessária, para respaldá-la, a existência de fortes indícios de responsabilidade na prática de ato de improbidade que cause dano ao Erário (fumus boni iuris) .
3. Tal medida não está condicionada à comprovação de que os réus estejam dilapidando seu patrimônio, ou na iminência de fazê-lo, tendo em vista que o periculum in mora está implícito no comando legal. Precedente do STJ.
4. Recurso Especial provido.
O voto condutor, em especial, é enfático:
“O periculum in mora, por sua vez, está implícito no próprio comando do artigo 7º da Lei nº 8.429/92 – que, friso, atende à determinação contida no artigo 37, § 4º, da Constituição, segundo a qual 'os atos de improbidade importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível'.
Desse modo, a decretação de indisponibilidade dos bens não está condicionada à comprovação de que os réus estejam dilapidando-os, ou na iminência de fazê-lo. Ora, a indisponibilidade dos bens visa, justamente, a evitar que ocorra a dilapidação patrimonial. Não é razoável aguardar atos concretos direcionados à sua diminuição ou dissipação. Exigir a comprovação de que tal fato esteja ocorrendo ou prestes a ocorrer tornaria difícil a efetivação da Medida Cautelar em foco, e muitas vezes inócua”. (grifei)
Não é difícil compreender, portanto, a extrema importância da medida. Se já pairam, sobre a conduta dos réus, fundadas suspeitas de atos de improbidade, não seria lógico esperar que os mesmos, com a aproximação de um trânsito em julgado condenatório, reservassem bens suficientes para ressarcir o erário ou, espontaneamente, se desapegassem de seus patrimônios ilicitamente inflados. A tendência mais do que natural seria dilapidá-los, desviá-los.
Sem embargo, diante de determinados casos concretos, verifica-se a existência de precedentes tais quais o que segue:
“A Lei 8.429/1992 instituiu severas sanções aos responsáveis por atos ímprobos, de natureza civil, administrativa e até mesmo eleitoral, além de medidas rigorosas para a efetiva reparação do dano ao erário, dentre as quais a medida cautelar de indisponibilidade de bens, disciplinada no seu art. 7º, deste teor:
(…)
A indisponibilidade também não pode ser feita de forma genérica, universal, abrangendo todos os ativos da parte, sem proporcionalidade com a previsão de dano. Não é razoável, em princípio, que a indisponibilidade alcance a conta bancária da parte, impedindo o acesso aos ativos financeiros necessários até mesmo a sua sobrevivência e de sua família”.
“Na linha de entendimento do Tribunal, a decretação de indisponibilidade de contas-correntes e ativos financeiros, antes mesmo de uma condenação, constitui gravame muito grande, visto que seria necessária a autorização judicial para simples atos cotidianos como o pagamento de contas, a aplicação de eventuais sobras financeiras de salário, o gerenciamento de investimentos, o que impõe seja observado o princípio da razoabilidade, admitindo-se tal ocorrência somente em situações excepcionais, como na tentativa de dilapidação financeira (ou ainda patrimonial), o que não se demonstra no caso’’.(grifei)
“Ante o exposto, dou parcial provimento ao agravo de instrumento, para deferir a indisponibilidade de bens, limitada ao valor do supostoprejuízo de R$181.880,58, e à razão de 1/6 (um sexto) em relação aos bens de cada demandado, medida que deve ser implementada no juízo de origem.
Estão excluídos da constrição os valores postos em conta-corrente e/ou ativos financeiros do agravado, representativos de salário ou renda do trabalho.
(TRF 1ª Região. Agravo de Instrumento nº 0031176-46.2011.4.01.0000/BA, Rel Des. Federal Olindo Menezes.Decisão: 26/11/2013. e-DJF1: 13/02/2014)
E, no intuito de tracejar, com maior precisão, os lindes da indisponibilidade, há nota de rodapé inclusa pelo eminente relator, definindo:
ATIVO FINANCEIRO: Qualquer ativo que seja dinheiro, instrumento patrimonial de outra entidade, direito contratual de
receber dinheiro ou outro ativo financeiro de outra entidade; ou contrato que será ou que poderá vir a ser liquidado pelos
instrumentos patrimoniais (como ações) da própria entidade
Quando o aresto acima é contraposto aos paradigmas do STJ, é nítido que a menção a ativos financeiros também atrai, sem sombra de dúvida a matéria inscrita no artigo 16, e respectivos parágrafos, da Lei nº 8.429/92 (LIA):
Art. 16. Havendo fundados indícios de responsabilidade, a comissão representará ao Ministério Público ou à procuradoria do órgão para que requeira ao juízo competente a decretação do sequestro dos bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.
§ 1º O pedido de sequestro será processado de acordo com o disposto nos arts. 822 e 825 do Código de Processo Civil.
§ 2° Quando for o caso, o pedido incluirá a investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras mantidas pelo indiciado no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais.
Nesse diapasão, há de se pontuar que o parágrafo único do art. 7º da LIA, referido no julgado, dispõe:
Art. 7º - Quando o ato de improbidade causar lesão ao patrimônio público ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá a autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público, para a indisponibilidade dos bens do indiciado.
Parágrafo único. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem o integral ressarcimento do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito.
Destarte, é cediço que o parâmetro quantitativo para assegurar o integral ressarcimento ao erário será tantos bens quantos bastem a esse mister. Daí, considerando que a lei não faz ressalvas, o brocardo é eloquente: ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus.
Além da aparente ofensa aos citados dispositivos, não se deve olvidar que os mesmos devem ser interpretados sistematicamente, de onde se conclui que há autorização legal para medida ainda mais drástica: o sequestro dos bens daqueles que tenham se locupletado indevidamente ou causado prejuízos ao erário, incluindo o de contas bancárias e aplicações financeiras.
Ad argumentandum, vale ressaltar que a própria Resolução nº 524, de 28 de setembro de 2006, do Conselho da Justiça Federal, que regulamentou a utilização do sistema BACENJUD pelas Cortes Federais, em seu artigo 1º, parágrafo único, também permite o bloqueio de ativos financeiros em ações de improbidade, conforme se depreende abaixo:
Art. 1º Em se tratando de execução definitiva de título judicial ou extrajudicial, ou em ações criminais, de improbidade administrativa ou mesmo em feitos originários do Tribunal Regional Federal poderá o magistrado, via Sistema BACEN-JUD 2.0, solicitar o bloqueio/desbloqueio de contas e de ativos financeiros ou a pesquisa de informações bancárias.
Ao limitar decisão que defere a decretação de indisponibilidade, sob o fundamento de que sua amplitude seria desarrazoada, nos moldes expostos, culmina-se por condicionar à natureza dos bens o alcance da medida, dando-se azo à liberação de ativos de elevada liquidez.
E não parece que eventual restrição a investimentos “representativos de salário ou renda do trabalho” seja suficiente para conceder necessária cautelaridade a tais provimentos, uma vez que o ônus de demonstrar a natureza originária dos ativos financeiros, em regra, não é expressamente estabelecido. Se interpretada erroneamente, sem sincronia com a finalidade do instituto, ocorrerá uma indesejada liberação incondicional de valores, de modo a frustrar o comando legal.
Assim, expressamente reconhecido que tanto fumus boni juris quanto periculum in mora estão presentes, deve-se ter em mente que, na ação de improbidade administrativa busca-se, além do ressarcimento ao erário, a recomposição moral do Estado afligido pela desonestidade dos réus.
À exceção de contas-salário, (cuja caracterização deve ser ônus de quem figura no polo passivo), dúvidas não restam de que os referidos recursos não constituem, em regra, fontes de subsistência, mas reservas que os requeridos por ventura queiram manter. O suposto caráter alimentar de qualquer quantia que sobeje o essencial, imediatamente perderá tal qualidade, ex vi do seguinte precedente:
PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO. EMBARGOS DO DEVEDOR. REVISÃO. CONTRATO. POSSIBILIDADE. VERBA ALIMENTAR, DEPÓSITO EM CADERNETA DE POUPANÇA E OUTRAS APLICAÇÕES FINANCEIRAS. PENHORABILIDADE. LIMITES.
1. Admite-se a revisão de contratos, inclusive aqueles objeto de confissão de dívida, em sede de embargos à execução. Precedentes.
2. Valores caracterizados como verbas alimentares somente manterão essa condição enquanto destinadas ao sustento do devedor e sua família, ou seja, enquanto se prestarem ao atendimento das necessidades básicas do devedor e seus dependentes. Na hipótese do provento de índole salarial se mostrar, ao final do período - isto é, até o recebimento de novo provento de igual natureza - superior ao custo necessário ao sustento do titular e seus familiares, essa sobra perde o caráter alimentício e passa a ser uma reserva ou economia, tornando-se, em princípio, penhorável.
3. Valores até o limite de 40 salários mínimos, aplicados em caderneta de poupança, são impenhoráveis, nos termos do art. 649, X, do CPC, que cria uma espécie de ficção legal, fazendo presumir que o montante assume função de segurança alimentícia pessoal e familiar.
O benefício recai exclusivamente sobre a caderneta de poupança, de baixo risco e retorno, visando à proteção do pequeno investimento, voltada à garantia do titular e sua família contra imprevistos, como desemprego ou doença.
4. O art. 649, X, do CPC, não admite intepretação extensiva, de modo a abarcar outras modalidades de aplicação financeira, de maior risco e rentabilidade, que não detêm o caráter alimentício da caderneta de poupança, sendo voltados para valores mais expressivos e/ou menos comprometidos, destacados daqueles vinculados à subsistência mensal do titular e sua família. Essas aplicações visam necessidades e interesses de menor preeminência (ainda que de elevada importância), como aquisição de bens duráveis, inclusive imóveis, ou uma previdência informal (não oficial) de longo prazo. Mesmo aplicações em poupança em valor mais elevado perdem o caráter alimentício, tanto que o benefício da impenhorabilidade foi limitado a 40 salários mínimos e o próprio Fundo Garantidor de Crédito assegura proteção apenas até o limite de R$70.000,00 por pessoa.
5. Essa sistemática legal não ignora a existência de pessoas cuja remuneração possui periodicidade e valor incertos, como é o caso de autônomos e comissionados. Esses podem ter que sobreviver por vários meses com uma verba, de natureza alimentar, recebida de uma única vez, sendo justo e razoável que apliquem o dinheiro para resguardarem-se das perdas inflacionárias. Todavia, a proteção legal conferida às verbas de natureza alimentar impõe que, para manterem essa natureza, sejam aplicadas em caderneta de poupança, até o limite de 40 salários mínimos, o que permite ao titular e sua família uma subsistência digna por um prazo razoável de tempo.
6. Valores mais expressivos, superiores aos 40 salários mínimos, não foram contemplados pela impenhorabilidade fixada pelo legislador, até para que possam, efetivamente, vir a ser objeto de constrição, impedindo que o devedor abuse do benefício legal, escudando-se na proteção conferida às verbas de natureza alimentar para se esquivar do cumprimento de suas obrigações, a despeito de possuir condição financeira para tanto. O que se quis assegurar com a impenhorabilidade de verbas alimentares foi a sobrevivência digna do devedor e não a manutenção de um padrão de vida acima das suas condições, às custas do devedor.
7. Recurso especial a que se nega provimento.
(REsp 1330567/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/05/2013, DJe 27/05/2013)
Com base nesse precedente, ainda se pode deduzir que até mesmo o rol legal de impenhorabilidades (artigo 649, CPC), se utilizado como fonte de analogia para fundamentar eventuais limites à indisponibilidade de bens, deve ser interpretado restritivamente.
O suposto direito de gerenciar investimentos não pode, portanto, prevalecer sobre o interesse público de ressarcimento ao erário. Este fato, sim, violaria a razoabilidade. Caso contrário, esvaziar-se-ia a medida constritiva no que tange à existência de numerário, ficando a mesma limitada à existência de bens móveis ou imóveis, sujeitos a registro, cuja solvabilidade é notoriamente inferior à da moeda em si.
Por fim, importante anotar que a medida não implicará transferência de propriedade do dinheiro, mas a simples de se utilizá-lo temporariamente, inexistindo impacto sobre eventual rentabilidade ou potencial contabilização.
Conclusão
Diante do exposto, atendendo-se aos valores concretizados pela Constituição da República e pela Lei de Improbidade Administrativa, é salutar que se prestigie, na medida necessária ao interesse público, a força normativa da indisponibilidade de bens. A inobservância a todo esse aparato apenas terá o condão de transformá-lo em letra morta. Não é o que se deseja.
Advogado da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Lucio Alves Angelo. Improbidade Administrativa: Limites da indisponibilidade legal de bens Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39798/improbidade-administrativa-limites-da-indisponibilidade-legal-de-bens. Acesso em: 22 nov 2024.
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