A Carteira Nacional de Habilitação (CNH), por expressa previsão legal, indiscutivelmente equivale a documento de identidade. Não obstante, uma vez vencido o seu prazo de validade, seria correto continuar atribuindo-lhe tal função? Para respondermos a esse questionamento, faz-se necessária a realização de sucinta análise da legislação de regência sob um prisma sistemático, que é exatamente o objeto do presente artigo.
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB), instituído pela Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, dispõe em seu art. 159 acerca da função identificadora da CNH, senão vejamos:
Art. 159. A Carteira Nacional de Habilitação, expedida em modelo único e de acordo com as especificações do CONTRAN, atendidos os pré-requisitos estabelecidos neste Código, conterá fotografia, identificação e CPF do condutor, terá fé pública e equivalerá a documento de identidade em todo o território nacional. (grifou-se)
Percebe-se, pela redação do dispositivo legal acima transcrito, que a função precípua da CNH não é a de documento de identificação, pois ela não “é” documento de identidade, mas tão somente “equivale” ao mesmo. A sua função primária é autorizar a condução de veículo automotor, conforme o regramento de suas categorias estabelecido pelo CTB (art. 143).
Todavia, tornou-se extremamente comum a utilização da CNH como primeira opção de documento de identificação. Muitas pessoas sequer portam a Carteira de Identidade, normatizada pela Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983, quando saem de suas casas, preferindo fazer uso da CNH caso se faça necessária a comprovação da identidade nas atividades diárias. Normalmente essa opção não causaria nenhum tipo de transtorno, porém, diferentemente da Carteira de Identidade, a CNH tem prazo de validade. Assim, por vezes, a CNH vencida é o único documento de que dispomos para comprovar nossa identidade, o que pode vir a causar certos problemas.
Imagine a situação de um individuo que faz uma viagem de avião, comprovando sua identidade na ida com a CNH e, durante a viagem, ela vence, sem que esse esteja de posse de qualquer outro documento apto a comprovar a sua identidade. Caso a companhia aérea não a aceite como um documento de identificação, certamente os aborrecimentos seriam enormes. Mas, no caso exemplificado, teria a companhia aérea sólidos argumentos para recusar a CNH vencida? Ou, em qualquer outro caso em que se faça necessária a comprovação de identidade, seria lícito negar a função identificadora da CNH por ela se encontrar fora do prazo de validade?
Antes de enfrentarmos os questionamentos acima, faz-se imprescindível atentarmos para redação do § 10 do art. 159 do CTB, segundo o qual:
§ 10. A validade da Carteira Nacional de Habilitação está condicionada ao prazo de vigência do exame de aptidão física e mental. (grifou-se)
É facilmente perceptível, a partir da leitura do dispositivo acima, que não são as informações pessoais insertas na CNH, como nome, número de CPF, data de nascimento etc., que perdem a validade, pois o que caduca são os exames físicos e mentais, ou seja, o documento apenas não serve mais à demonstração da capacidade do indivíduo para conduzir veículo automotor. Como documento de identificação, mesmo com a data de validade expirada, a CNH confere mais segurança do que muitos Registros Gerais (RG), Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS) etc., eis que, via de regra, é mais recente, possibilitando a identificação do seu portador de forma mais efetiva.
Logo, se os dados nela constantes forem aptos a garantir a identidade de seu portador, como de fato devem ser, eis que, como já explanado, o que efetivamente vencem são os exames médicos, não parece haver razão para se negar fé pública à função identificadora da mesma. A CNH, mesmo quando vencida, é um documento oficial, não sendo razoável presumir que os dados pessoais nela inseridos sejam menos verdadeiros ou exatos. Apenas em razão de ela não ser mais apta a garantir o direito de conduzir veículo automotor. Aparentemente, o fim almejado de identificação é perfeitamente alcançado com a apresentação da CHN, mesmo que vencida.
Também é relevante se notar que não há nenhum comando legal expresso afastando a função identificadora da CNH uma vez vencido o seu prazo de validade. O CTB, ao dispor acerca da CNH vencida, não adentra de forma explícita nesse mérito, sendo as disposições do art. 162, inciso V, que trata da infração administrativa de conduzir veículo automotor com a CNH vencida, a sua principal referência sobre o tema:
Art. 162. Dirigir veículo:
(...)
V - com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa;
Medida administrativa - recolhimento da Carteira Nacional de Habilitação e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado;
De fato, conforme se subtrai do comando normativo supracitado, a CNH vencida há mais de trinta dias é documento imprestável para autorizar o seu portador a conduzir veículo automotor, o que nada mais é do que decorrência lógica da expiração dos exames de aptidão física e mental (§ 10 do art. 159 do CTB), sendo o indivíduo flagrado na prática desse ato penalizado com multa e, de forma cautelar, com as medidas administrativas de recolhimento da CNH e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado.
Por outro lado, não há menção à aplicação de qualquer penalidade pelo simples fato de a CNH está vencida (ou vencida há mais de trinta dias). O que se está punindo é o ato de conduzir veículo automotor sem o preenchimento dos requisitos legais, possivelmente por tal ato ser passível de colocar vidas em perigo. Dessa forma, não haverá a incidência de qualquer penalidade administrativa – ou mesmo civil ou penal – apenas pela posse e utilização de CNH vencida como documento de identificação. Destarte, contanto que não se conduza veículo automotor com a CNH vencida há mais de trinta dias, ao que tudo indica, ela pode ser mantida e utilizada como documento de identificação por prazo indefinido, assim como o RG. Não se consegue vislumbrar qualquer razão de ordem lógica ou jurídica que justifique interpretação diversa.
Alguns podem argumentar, com base na Lei nº 5.553, de 6 de dezembro de 1968, que dispõe sobre a apresentação e uso de documento de identificação pessoal, que a medida administrativa prevista no inciso V do art. 162 do CTB tornaria a CNH vencida incompatível com o tratamento que deve ser dado a documentos de identificação pessoal. Não compactuamos com esse entendimento.
Reza o art. 1º do referido Diploma Legal:
Art. 1º A nenhuma pessoa física, bem como a nenhuma pessoa jurídica, de direito público ou de direito privado, é lícito reter qualquer documento de identificação pessoal, ainda que apresentado por fotocópia autenticada ou pública-forma, inclusive comprovante de quitação com o serviço militar, título de eleitor, carteira profissional, certidão de registro de nascimento, certidão de casamento, comprovante de naturalização e carteira de identidade de estrangeiro. (grifou-se)
Inicialmente, destaca-se, novamente, que a CNH não “é” documento de identificação, mas apenas “equivale” ao mesmo. Além disso, realmente, tendo em vista a imposição legal acima transcrita, não seria lícito se reter a CNH vencida quando utilizada como documento de identificação. Por outro lado, se a CNH estivesse sendo utilizada na sua função primária, e estivesse vencida há mais de trinta dias, a sua retenção seria medida obrigatória, por expressa disposição legal.
Não há conflito entre as disposições do art. 1º da Lei nº 5.553, de 1968, e a medida administrativa prevista no inciso V do art. 162 do CTB, seja porque a CNH não é um documento de identificação propriamente dito, tão-somente equivalendo a um, seja porque, ainda que a considerássemos um documento de identificação propriamente dito, o inciso V do art. 162 do CTB teria revogado tácita e parcialmente o art. 1º da Lei nº 5.553, de 1968, para permitir a apreensão da CNH na hipótese nele consignada.
Ademais, se entendêssemos que a possibilidade de recolhimento da CNH constituiria um empecilho para considerar-lhe equivalente a documento de identificação, então nem mesmo a CNH dentro do prazo de validade teria respaldo. São vários os dispositivos do CTB que estabelecem a medida administrativa de recolhimento do documento de habilitação, a depender da infração que tenha sido praticada, por exemplo:
Art. 162. Dirigir veículo:
(...)
III - com Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir de categoria diferente da do veículo que esteja conduzindo:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (três vezes) e apreensão do veículo;
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação; (grifou-se)
Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro. (grifou-se)
Hely Lopes Meirelles ensina que o princípio da legalidade, quando direcionado à Administração Pública, condiciona o administrador público à estrita observância das disposições legais, na medida em que o mesmo deve agir em exata conformidade com a manifestação legislativa, senão vejamos:
A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.
A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inc. I do parágrafo único do art. 2º da Lei nº 9.784/99. Com isso, fica evidente que, além da autuação conforme à lei, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos.
Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”, para o administrador público significa “deve fazer assim”.[1]
Ora, se não há determinação legal expressa afastando a função identificadora da CNH vencida, não podem as autoridades administrativas recusar fé à mesma, sob pena, inclusive, no âmbito da Administração Pública Federal, de responsabilização administrativa do servidor que assim proceda, nos estritos termos do inciso II do art. 3º da Lei nº 8.027, de 12 de abril de 1990, in verbis:
Art. 3º São faltas administrativas, puníveis com a pena de advertência por escrito:
(...)
II - recusar fé a documentos públicos;
Se não deve ser negada fé à CNH vencida, no que tange à sua função identificadora, pela Administração Pública, com mais razão ainda não poderia o particular fazê-lo, tendo em vista que se tal documento é suficiente para atestar a identidade do indivíduo na esfera pública também o será na esfera particular.
Por todo o exposto, conclui-se que a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) continuará equivalendo a documento de identidade ainda que expirado o seu prazo de validade.
REFERÊNCIAS
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003;
Código de Trânsito Brasileiro. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm;
Lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/l7116.htm;
Lei nº 5.553, de 6 de dezembro de1968. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5553.htm;
Lei nº 8.027, de 12 de abril de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8027.htm.
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003. p. 86.
Procurador Federal. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Clélio de Oliveira Corrêa Lima. A Carteira Nacional de Habilitação (CNH) vencida e a sua função como documento de identificação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 set 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40893/a-carteira-nacional-de-habilitacao-cnh-vencida-e-a-sua-funcao-como-documento-de-identificacao. Acesso em: 22 nov 2024.
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