RESUMO: O presente artigo aborda os fundamentos do poder disciplinar na relação de emprego, sua limitação frente aos direitos fundamentais e a impossibilidade de admissão generalizada da penalidade multa nos contratos de trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Relação de emprego. Poder disciplinar. Limitações. Espécies de penalidades. Multa. Princípio da intangibilidade salarial.
INTRODUÇÃO:
O poder disciplinar, ao lado do poder diretivo, do poder regulamentar e do poder fiscalizatório, é manifestação do poder empregatício ou hierárquico, que confere ao empregador certas prerrogativas com vistas ao gerenciamento e controle da atividade empresarial.A grande maioria da doutrina fundamenta a existência do poder empregatício e, consequentemente, do poder disciplinar, na relação contratual firmada entre o empregador e o empregado.
Como todo poder, o poder disciplinar não é absoluto, sofrendo limitações, principalmente, diante dos direitos fundamentais dos trabalhadores, que visam, em última análise, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do inciso III do artigo 1º da Constituição Federal.
Registre-se, por oportuno, a tendência de democratização do poder empregatício, efeito do paradigma do Estado Democrático de Direito, que no poder disciplinar se exterioriza na participação dos sindicatos (ou outro grupo de representação dos trabalhadores) no rito processual de aplicação da penalidade, malgrado tal prática seja incipiente do Brasil. Além de condicionar a aplicabilidade do poder disciplinar, os limites advindos dos direitos fundamentais constitucionais determinam as modalidades de pena que são juridicamente válidas dentro do ordenamento jurídico.
DESENVOLVIMENTO:
Quanto às modalidades de pena, a doutrina e a jurisprudência admitem a advertência, a suspensão e a dispensa por justa causa. As duas últimas modalidades são expressamente previstas na CLT, em seus artigos 474 e 482, respectivamente. A advertência, embora não tenha previsão expressa no texto consolidado, é admitida porquanto se trata de espécie mais branda, servindo ao princípio da gradação das penas, inerente ao exercício do poder disciplinar. Em adendo, registra-se a previsão de aplicação de advertência na atual Lei dos Portos (Lei nº 12.815/2013).
No que respeita à multa punitiva, ela é proscrita no ordenamento jurídico laboral, à exceção de sua aplicação aos atletas profissionais de futebol, diante de expressa previsão em lei específica. O fundamento jurídico para a proibição da aplicação da penalidade de multa é a intangibilidade salarial. Neste sentido, é a doutrina de Maurício Godinho Delgado, in verbis:
“Finalmente, há uma figura punitiva singular, a multa. De maneira geral, a pena pecuniária e vedada no Direito do Trabalho, por afrontar os princípios da intangibilidade e irredutibilidade salariais, agredindo, ainda, a regra disposta no art. 462 da CLT.
Contudo, a legislação referente ao contrato do atleta profissional de futebol autoriza, por exceção, a referida penalidade pecuniária, desde que não ultrapasse 40% do salario mensal do futebolista. Registre-se que a penalidade em exame, fixada pelo art. 15, § 1s, da Lei n. 6.354, de 1976, não se mostra incompatível, como visto, com o novo diploma legal instituidor de normas gerais sobre o desporto (Lei n. 9.615, de 24-3.1998, regulada pelo Decreto n. 2.574, de 29.4.1998). E que a nova legislação regulamentadora refere-se a estipulação de clausula penal “para as hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral” do contrato (art. 28, caput, Lei n. 9.615/98). Além disso, a Lei n. 9.615 preservou a vigência do preceito punitivo da velha Lei n. 6.354/76, isto é, seu art. 15, § 1º, acima mencionado (“DisposiçõesTransitórias” da Lei n. 9.615/98, arts. 91 e 96).
Afora essa isolada exceção, não se acata a multa como meio punitivo no ramo juslaboral brasileiro”.
Com efeito, o contrato de trabalho visa primordialmente que, em troca da disponibilização de sua força de trabalho, o trabalhador tenha acesso aos bens materiais, por meio do salário. Decerto, dentro do sistema capitalista de produção, é através da remuneração que o trabalhador usufrui outros direitos fundamentais básicos, como se infere, inclusive, do disposto no inciso IV do artigo 7º da CF, que informa que o salário mínimo deve ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
Visando, portanto, a preservação da dignidade do trabalhador e de sua família, o salário é objeto de tutela jurídica especial, sendo salvaguardada a sua irredutibilidade e intangibilidade salarial. No concerne especificamente à intangibilidade salarial, o artigo 8º da Convenção nº 95 da OIT, que versa sobre a proteção ao salário, aduz que “descontos em salários não serão autorizados, senão sobre condições e limites prescritos pela legislação nacional ou fixados por convenção coletiva ou sentença arbitral”.
A Constituição da República consagra ser direito fundamental do trabalhador, no inciso X do artigo 7º, a proteção do salário na forma da lei, constituindo crime a sua retenção dolosa. A CLT, por seu turno, no artigo 462, prescreve que ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivo de lei ou convenção/acordo coletivo, bem como em caso de dano causado por empregado, se esta possibilidade for previamente acordada, ou em caso de dolo.
CONCLUSÃO:
Neste sentido, conclui-se pela invalidade da norma regulamentar que prevê a aplicação da penalidade de multa, uma vez que afronta o princípio da intangibilidade salarial que se fundamenta no caráter alimentar do salário e na preservação da dignidade do trabalhador. Com efeito, conquanto o poder disciplinar se baseie na autonomia da vontade, por meio da relação contratual travada entre empregado e empregador, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais determina que certas espécies de penalidades – como a multa pecuniária –, salvo exceções pontuais, sejam vedadas pelo ordenamento jurídico.
REFERÊNCIA:
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 11ª Edição. São Paulo: LTR, 2012.
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