No apagar das luzes do ano de 2016, foi publicada a Lei Complementar n. 157 que, dentre outras disposições de natureza eminentemente financeiro-tributária, alterou a Lei Federal n. 8.429/92. A LIA, como é comumente chamada a Lei Federal n. 8.429/92, passou a contar com um novo artigo (10-A), um novo inciso (inciso IV do artigo 12), e um novo parágrafo (§13 do artigo 17).
Apesar de conter relevante previsão que impõe a observância aos limites legais na concessão, aplicação ou manutenção de benefícios financeiros ou tributários, o artigo 10-A da Lei de Improbidade Administrativa e suas repercussões – principalmente o inciso IV do artigo 12 – causou um verdadeiro desarranjo na organização lógica da lei, conforme se analisará.
1) Ato de improbidade que causa prejuízo ao erário, ou não?
A primeira questão relativa ao novo ato de improbidade administrativa confeccionado a partir da Lei Complementar n. 157 de 2016 se relaciona à sua localização espacial / geográfica na LIA.
Comumente se afirmava que os atos de improbidade eram aqueles previstos na Lei Federal n. 8.429/92[1] que causavam enriquecimento ilícito (art. 9º), prejuízo ao erário (art. 10) ou afrontavam aos princípios da Administração Pública (art. 11). Com a criação legislativa, porém, um novo ato de improbidade administrativa foi inserido na lei, sem respeitar a lógica acima.
A inclusão proporcionada pela Lei Complementar n. 157 de 2016 culminou na criação da Seção II-A e na inserção do artigo 10-A na LIA, o que traz aspectos de nítido relacionamento entre a nova modalidade e os atos já tipificados como causadores de prejuízo ao erário (art. 10). Não se enxergam razões suficientes, contudo, para a não inclusão do novo dispositivo no já existente artigo 10 da Lei de Improbidade.
É bem possível se vislumbrar algumas ingerências da nova modalidade ora debatida em outras características dos atos de improbidade administrativa previstos nos artigos 9º e 11 da LIA; mas trata-se de exercer tarefa árdua o tentar encontrar alguma justificativa que realmente explique a não inclusão do ato do artigo 10-A como hipótese de ato de improbidade que causa prejuízo ao erário.
Ora. Não se exige um grande esforço para entender que qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que previsto em lei implicará prejuízo ao erário; para além do possível enriquecimento ilícito (art. 9º) e da óbvia afronta aos princípios da Administração Pública (artigo 11 como cláusula de reserva). De fato, seja por equívoco do Legislador ou em razão de um obscuro intento, carece de explicação factível o deslocamento do tipo para fora do artigo 10 da LIA.
Pois bem. A par da mera disposição geográfica que colocou a nova previsão de ato de improbidade em artigo separado dos anteriores (arts. 9º, 10 e 11), o artigo 10-A também precisa ser analisado quanto ao seu elemento subjetivo, a fim de se entender se a hipótese configura ou não “ato de improbidade que causa prejuízo ao erário” (art. 10).
É cediço que “improbidade é o ato de má-administração marcado pela desonestidade de quem o pratica”[2], de modo que a prática do ato de improbidade administrativa exige, inafastavelmente, a presença do dolo pelo seu sujeito ativo. O Superior Tribunal de Justiça possui amplíssima jurisprudência a esse respeito:
A má-fé, consoante cediço, é premissa do ato ilegal e ímprobo e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-intenção do administrador. [...] Destarte, o elemento subjetivo é essencial à caracterização da improbidade administrativa. (STJ, REsp 1.164.947/DF, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, Publicado em 9/9/2010).
A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. (STJ, AgRg no REsp 975540 / SP, Primeira Turma, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Publicação em 28/11/2011).
A caracterização do ato de improbidade por ofensa a princípios da administração pública exige a demonstração do dolo lato sensu ou genérico. (STJ, AgRg no AREsp 301378/MG, Segunda Turma, Relatora Ministra Eliana Calmon, Julgamento em 6/8/2013, Publicação em 14/8/2013).
Interessa notar, porém, que o caput do artigo 10 da LIA prevê a possibilidade da culpa como elemento subjetivo do ato de improbidade que cause prejuízo ao erário. E tal previsão inexiste no atual artigo 10-A da LIA.
Parcela majoritária da doutrina explica, acerca da previsão do artigo 10, que “não se pode responsabilizar um agente público com fundamento apenas na culpa simples, exigindo-se o dolo ou, ao menos, a culpa grave (ou quase dolosa) na conduta omissiva ou comissiva que suscite dano ao erário”[3]. Aliás, “a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos arts. 9º e 11 da Lei nº 8.429/1992, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do art. 10”[4]:
A improbidade é uma ilegalidade qualificada pelo intuito malsão do agente, atuando sob impulsos eivados de desonestidade, malícia, dolo ou culpa grave. 2. Dessa atuação malsã do agente, ademais, deve resultar (i) o enriquecimento ilícito próprio ou alheio (art. 9o . da Lei 8.429 /92), (ii) a ocorrência de prejuízo ao Erário (art. 10 da Lei 8.429 /92) ou (iii) a infringência aos princípios nucleares da Administração Pública (arts. 37 da Constituição e 11 da Lei 8.429 /92). (STJ, AgRg no AREsp 83233/RS, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, Publicação em 3/6/2014).
Inquire-se: Haveria a previsão implícita da culpa como elemento subjetivo do novo ato ímprobo, uma vez que a hipótese é típica dos casos de improbidade que causam prejuízo ao erário? Aparentemente não.
O aspecto suis generis da nova modalidade de ato de improbidade faz com que a regra geral seja aplicada, de modo que apenas pode ser caracterizada a atitude ímproba a partir da aferição da má-fé do agente público.
Veja-se, portanto, que o locus do artigo 10-A em seção própria acarreta não apenas uma incoerência na disposição espacial da Lei Federal n. 8.429/92, mas também implica tratamento diferenciado à hipótese. Com efeito, apesar do caso ser tipicamente afeto ao artigo 10 da LIA – ato que causa prejuízo ao erário –, a sua punição apenas poderá ser perpetrada se o agente público tiver agido dolosamente, não sendo possível a configuração do ato como ímprobo se constatada negligência, imprudência ou imperícia ainda que em suas figuras extremadas (culpa grave).
O que se tem, portanto, é um ato de improbidade administrativa novo e distinto, com características próprias e localização espacial diferenciada, sujeito à análise do elemento subjetivo nos contornos gerais (em que se exige apenas o dolo), não obstante poderia ser enquadrado como típico ato de improbidade que cause prejuízo ao erário.
2) A sanção suis generis do novo ato de improbidade administrativa.
Em decorrência da inserção da nova modalidade de ato de improbidade, que, apesar de vinculado, não figura propriamente no rol dos atos que causam prejuízo ao erário, o Legislador optou por introduzir mais um inciso no artigo 12 da LIA:
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: [...]
IV - na hipótese prevista no art. 10-A, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 5 (cinco) a 8 (oito) anos e multa civil de até 3 (três) vezes o valor do benefício financeiro ou tributário concedido.
Há uma assimetria facilmente percebida entre os três primeiros incisos e o novo inciso IV do artigo 12, como constatado pela dicção normativa.
Primeiramente, a novel disposição deixa de impor o dever de ressarcimento integral ao erário. A ausência é escusável se se partir do pressuposto de que “não obstante a Lei de Improbidade Administrativa ter inserido o ressarcimento ao erário no capítulo reservado às penas, têm-se entendido que o ressarcimento possui uma função compensatória / indenizatória, e não uma função punitiva”[5]. De fato, tal entendimento até poderia justificar a ausência da previsão de ressarcimento ao erário no mencionado inciso.
Por outra vertente, porém, a inexistência de previsão da “proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário” por determinado prazo pode ser aparentemente fundamentada, mas, na verdade, deveria ser indispensável.
É que já está pacífico que a LIA é aplicável não apenas aos agentes públicos, mas também às pessoas (naturais e jurídicas) que de algum modo induzam ou concorram para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficiem sob qualquer forma direta ou indireta (art. 3º da Lei Federal n. 8.429/92). Desse modo, a incompletude do inciso IV impõe o ônus punitivo apenas ao agente público que desrespeite o artigo 8º-A, caput e §1º, da Lei Complementar n. 116, sem prever qualquer consequência (quanto a novas contratações ou recebimentos de benefícios fiscais) àqueles que com o agente público concorrerem para a prática do ato ímprobo.
A previsão normativa, portanto, é incompleta e mescla os demais incisos do artigo 12, de maneira que põe em xeque a ausência de inclusão da nova modalidade de improbidade prevista no artigo 10-A no bojo do já existente artigo 10 da LIA; o que culminaria na aplicação das sanções dispostas no seu artigo 12, inciso II[6].
3) A desnecessária inclusão do parágrafo 13, no artigo 17 da LIA.
Para além do já exposto, o artigo 17 também sofreu alteração, de modo que passou a ter o §13, ipsis litteris:
Art. 17 - §13. Para os efeitos deste artigo, também se considera pessoa jurídica interessada o ente tributante que figurar no polo ativo da obrigação tributária de que tratam o § 4º do art. 3º e o art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
É desnecessária, contudo, a previsão. Antes, porém, de justificar a dispensabilidade do §13, um destaque apenas a título elucidativo a de ser feito: o art. 3º, §4º da Lei Complementar n. 116 foi vetado pela Presidência da República, de modo que resta inaplicável tal referência. Por outro lado, o artigo 8º-A da Lei Complementar n. 116/03 trata das competências do Município e do Distrito Federal quanto às alíquotas do ISS/ISSQN; ou seja, o novo dispositivo da LIA simplesmente estatui que os Municípios e o Distrito Federal podem figurar no polo ativo da ação ordinária que visa combater o ato de improbidade administrativa.
Em síntese, portanto, o artigo replica a competência dos Municípios e Distrito Federal enquanto entes tributantes, para a propositura da ação ordinária de improbidade. Ocorre que tal competência já existia, posto ser indiscutível a inclusão de tais pessoas jurídicas de direito público interno no conceito de “pessoa jurídica interessada” do art. 17, caput, da Lei Federal n. 8.429/92.
Nesse sentido, e consoante entendimento pacífico do STJ[7], Pazzaglini Filho já afirmava que a titularidade ativa da ação “pertence simultaneamente ao Ministério Público e às pessoas jurídicas elencadas no artigo 1º da LIA, quando os autores de atos de improbidade administrativa estejam vinculados permanentemente ou temporariamente àquelas e os praticarem prevalecendo-se dessa situação funcional”[8]. No mesmo esteio, Waldo Fazzio Junior:
[...] as pessoas jurídicas de direito público interno (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) são, ao mesmo tempo, pacientes de atos de im- probidade administrativa e legitimados, em concorrência disjuntiva, com o Ministério Público, para promover a ação destinada à aplicação das sanções da Lei n. 8.429/92. Também o são os entes que constituem a administração indireta.[9]
Visível, pois, que a previsão do artigo 17, §13 da LIA é redundante e desnecessária, o que caracteriza, mais uma vez, o tratamento suis generis que foi dispensado às inserções oriundas da Lei Complementar n. 157 na Lei Federal n. 8.429/92.
4) O que podemos concluir, então?
O advento do novo ato de improbidade administrativa, em si, condiz com o rumo ora traçado pelo país no que tange aos limites dos gastos e ao contingenciamento dos valores obtidos de modo derivado pelos cofres públicos. Entretanto, a maneira aparentemente impensada em que foram inseridos os dispositivos legais acabou por ocasionar uma desorganização na própria ratio da Lei Federal n. 8.429/92, o que implica a devida atenção aos usuários e a necessária cautela aos operadores (magistrados, advogados e membros do Ministério Público) da Lei de Improbidade Administrativa.[10]
[1] Não se olvida que existem hipóteses extras de improbidade administrativa, não previstas na LIA, mas na Lei nº 10.257/2001 – Estatuto das Cidades –, que em seu artigo 52 prevê a possibilidade de o prefeito ser incurso nas penas da Lei Federal n. 8.429/92, pela prática de algumas ações ou omissões relativas à ordem urbanística. Haveria, portanto, e nos termos de José dos Santos Carvalho Filho, uma quarta categoria de atos de improbidade (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26.ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 1083).
[2] MARRARA, Thiago. O conteúdo do princípio da moralidade. In: MARRARA, Thiago. Princípios de Direito Administrativo: legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São Paulo: Atlas, 2012, p. 168.
[3] COSTA, Renato Saeger Magalhães. A culpa como elemento subjetivo do ato de improbidade administrativa. BDM – Boletim de Direito Municipal, São Paulo: NDJ, ano 31, n. 11, p. 854-864, nov. 2015.
[4] STJ, AIA n. 30/AM, Rel. Min. Tori Albino Zavasck, Corte Especial, DJ 28/09/2011.
[5] COSTA, Renato Saeger Magalhães. A imprescindibilidade da má-fé para a configuração dos atos de improbidade administrativa. Revista Digital de Direito Administrativo, Brasil, v. 1, n. 2, p. 490-505, 2014. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/77906/83932>.
[6] A diferença entre as sanções, em suma, e para além dos desfalques ora apontados, se refere ao valor da multa que, para o novo ato de improbidade administrativa, foi arbitrada em 3 vezes o valor do benefício financeiro ou tributário recebido.
[7] STJ, REsp 1070067 RN, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJ 04/10/2010.
[8] PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudência atualizadas. 3.ed, São Paulo: Atlas, 2006. p. 205.
[9] FAZZIO JUNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa. São Paulo: Atlas, 2007, p. 234.
[10] É válido assinalar que a nova tipificação de ato de improbidade administrativa apenas produzirá efeitos, nos termos da Lei Complementar n. 157 de 2016, após o decurso de 1 (um) ano contado a partir da publicação do dispositivo legal. Em suma, a novel disposição está em vigor, mas não produzirá efeitos até que sobrevenha o prazo estipulado na mencionada Lei Complementar.
Advogado na área de Direito Administrativo-Econômico em Urbano Vitalino Advogados. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp e Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Renato Saeger Magalhães. Novo ato de improbidade administrativa previsto no art. 10-a da Lei n. 8.429/92: críticas e análises iniciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 fev 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49289/novo-ato-de-improbidade-administrativa-previsto-no-art-10-a-da-lei-n-8-429-92-criticas-e-analises-iniciais. Acesso em: 22 nov 2024.
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