LEVI MACHADO DE GÓIS[1]
(coautor)
ROGÉRIO SARAIVA XEREZ[2]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo tem como escopo fazer uma análise acerca da participação do juiz na decretação da prisão preventiva, mais especificamente quanto à sua atuação ex officio, diante das previsões do nosso ordenamento jurídico, especialmente frente às alterações trazidas recentemente pelo denominado pacote anticrime. Dessa forma, discorrem-se acerca dos sistemas processuais penais, suas características, bem como a ligação de cada sistema com Estados autoritários ou democráticos. Abordou-se também a supremacia da Constituição Federal no ordenamento jurídico brasileiro e o sistema processual penal pelo qual opta a carta magna. Por fim, tratou-se mais detalhadamente da prisão preventiva, em especial a possibilidade de sua decretação de oficio pela autoridade judicial frente a nosso ordenamento jurídico e suas alterações trazidas pela lei n. 13.964/2019. Após análise da Constituição Federal e as recentes alterações legislativas no processo penal brasileiro, constatou-se a impossibilidade da decretação daquela medida cautelar restritiva de liberdade de ofício pela autoridade judicial. O estudo desenvolveu-se por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial e análise da legislação.
Palavras-chave: Sistemas Processuais Penais. Prisão Preventiva. Decretação de Ofício.
Sumário: 1 Introdução. 2 Sistemas Processuais Penais. 2.1 Sistema Acusatório. 2.2 Sistema Inquisitório. 2.3 Sistema Misto. 3 Supremacia da Constituição e Sistema Brasileiro. 4 Decretação da Prisão Preventiva. 4.1 Fundamentos da Prisão Preventiva. 4.2 Condições de Admissibilidade. 4.3 Motivada e Fundamentada. 4.4 Medida Revogável. 4.5 Decretação de Ofício. 5 Conclusão. 6 Referências
1 INTRODUÇÃO
O instituto da prisão preventiva, presente no ordenamento jurídico brasileiro, com disposições específicas nos arts 311 a 316 do Código de Processo Penal, é uma medida de natureza cautelar, portanto, decretada antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Como nesse estágio o acusado está amparado pela presunção de inocência, ela deve preencher os requisitos legalmente previstos, além de estar devidamente motivada e fundamentada para que possa ser decretada.
Por significar restrição à liberdade, deve haver o fundado receio, estritamente amparado em ditames legais, de que o acusado em liberdade venha a praticar novas infrações ou de alguma forma prejudique o andamento da investigação policial ou do processo penal, além da prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, conforme preceitua o art. 312 do Código de Processo Penal.
Por essa razão, necessária se faz a análise detalhada dos requisitos que autorizam sua decretação e as condições de admissibilidade. Nessa teia, se reveste de importância a análise dos sistemas processuais penais, distinguindo-os entre si e destacando qual condiz com os ditames estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.
Procura-se evidenciar a relevância da alteração promovida na redação do art. 311 do Código de Processo Penal, pela lei 13.964/2019 (pacote anticrime), em face da anterior redação dada pela lei 12.403/2011, ao não mais permitir que a prisão preventiva pudesse ser decretada de ofício pelo magistrado.
Assim sendo, partindo da análise do instituto, bem como dos preceitos constitucionais e da condição de excepcionalidade da medida, o presente estudo tem por objetivo abordar acerca da discussão quanto à constitucionalidade da nova disposição do art. 311 do Código de Processo Penal, no que concerne à decretação da prisão preventiva de ofício, utilizando-se, para tanto, de pesquisas bibliográficas e análise jurisprudencial acerca do tema disposto.
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
É impossível analisar as discussões que giram em torno da prisão preventiva de ofício sem realizar um levantamento sobre os sistemas processuais penais. Nas palavras de Rangel (2010, p.742) o sistema processual penal é um “conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto.”
Observa-se, que a estrutura processual penal de um Estado é o termômetro que irá determinar se este é um país democrático ou autoritário em relação à sua Constituição. Sendo assim, percebe-se que o sistema processual penal adotado por um Estado, está ligado à forma política em que está embebido.
É bem verdade que se o Estado no caso concreto é embebido de autoritarismo, consequentemente irá reverberar no seu sistema processual penal adotado, a atenção à legalidade processual será frágil, caracterizada por uma maior discricionariedade pelo operador do direito.
Diante dessas observações, tratar-se-á separadamente dos sistemas inquisitórios, acusatório e misto, devido às próprias peculiaridades de cada um dos institutos.
2.1 SISTEMA ACUSATÓRIO
Leciona Lopes Júnior (2020) que o sistema acusatório, cronologicamente, prevaleceu até meados do século XII, sendo substituído paulatinamente pelo modelo inquisitório que predominou com plenitude até o final do século XVIII, momento em que os movimentos políticos e sociais levaram novamente a uma mudança de sistema processual penal.
No mesmo sentido, Lima (2019) ensina que o sistema acusatório esteve em vigência em quase toda a Antiguidade grega e romana, assim também na Idade Média, nos domínios do direito germano. Outrossim, a partir do século XIII entra em declínio, quando passa a prevalecer o sistema inquisitivo.
Para Ferrajoli (2008, p. 518), “as principais características do sistema acusatório são a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, a publicidade e a oralidade do julgamento”. Sendo assim, constata-se que esse sistema prima pela imparcialidade do juiz, visto que ele deixa de ser parte na persecução penal.
Vale ressaltar que, esse sistema tem como características principais, a existência da separação das funções de acusar, defender e julgar, ou seja, esses ofícios são exercidos por órgãos distintos.
Ademais, esse sistema processual contempla a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência, a oralidade, e a publicidade dos atos processuais, entre outros institutos processuais que corroboram para a imparcialidade do julgador, que, segundo Lopes Júnior (2018) é o princípio supremo do processo penal.
No tocante à função do magistrado, este deve assumir a figura de expectador, ou seja, um terceiro alheio à atividade investigativa e ser passivo em relação à coleta de provas. Nesse sentido, caso o juiz detenha a função de investigador, a imparcialidade restará inegavelmente prejudicada e por evidente, não se pode pensar num sistema acusatório desconectado com o princípio supremo da imparcialidade.
Em suma, nesse sistema existe a máxima de que para que o acusado tenha uma defesa plena, é necessário a observância de determinadas garantias processuais, a título de exemplo, deve ao acusado ser garantido o acesso à toda matéria que a ele esteja sendo imputada, para que possa exercer plenamente o contraditório, bem como ter ciência das consequências de suas decisões no decorrer dos atos processuais, ademais razão do corolário da presunção de inocência, jamais ser a outorgado a ele o ônus da prova (ZILLI, 2003).
2.2 SISTEMA INQUISITÓRIO
O sistema inquisitório é caracterizado por ser um modelo histórico. Em meados do século XII, este sistema foi paulatinamente substituindo o sistema acusatório. No século XIII, foi criado o Tribunal da inquisição, cujo objetivo era reprimir a heresia e todas as condutas contrárias aos mandamentos da igreja católica. (LIMA, 2019)
Nesse sistema, o réu ao invés de ser tratado como um sujeito de direitos, é um tratado como um mero objeto da persecução penal. Em se tratando de convencimento do julgador e apreciação das provas, prevalece o instituto do livre convencimento do magistrado, ou seja, o juiz não precisa fundamentar suas decisões.
Para Aury Lopes Júnior:
É da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu. (LOPES JÙNIOR; 2018, p. 42)
De forma contrária ao acusatório, uma das peculiaridades mais impactante do sistema inquisitório é a de concentrar num mesmo órgão a função de acusar, defender e julgar.
Além disso, é caracterizado pela preponderância da sigilosidade, bem como pela inexistência do contraditório e ampla defesa, deixando com o juiz a função de produzir as provas e não com às partes.
No mesmo sentido, vale citar o entendimento de Jacinto Coutinho:
Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu; e conhece, sem embargo de sua fonte, a igreja, é diabólico na sua estrutura (o que demonstra estar ela, por vezes e ironicamente, povoada por agentes do inferno!), persistindo por mais de 700 anos. Não seria assim em vão: veio com uma finalidade específica e, porque serve – e continuará servindo, se não acordarmos -, mantém-se hígido. (COUTINHO; 2001, p.18).
Ao longo do tempo o sistema inquisitório foi sendo desacreditado, justamente em razão da dicotomia em acreditar que uma mesma pessoa pudesse exercer funções claramente opostas em uma persecução processual penal, qual seja, a de investigar, acusar, defender e julgar.
2.3 SISTEMA MISTO
Em meados do século XIII o sistema inquisitorial passou a sofrer modificações com a influência napoleônica, que instituiu o chamado sistema misto. Esse instituto trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão do sistema acusatório e inquisitório, surgindo com o Code d’ Instruction Criminelle francês, de 1808. Sendo esse o motivo de também ser denominado sistema francês (LIMA, 2019).
Esse sistema é denominado misto devido a ideia de que o processo é dividido em duas fases, a primeira fase inquisitória e a segunda acusatória. A fase inquisitória elencada nesse sistema seria o inquérito, (fase pré-processual) e a fase acusatória seria o processo propriamente dito, dotado de publicidade, ampla defesa, contraditório e com isso igualdade entre as partes.
Esse sistema é bastante criticado pela doutrina. O professor Aury Lopes Jr (2020, p. 64) afirma que “dizer que um sistema é ´misto` é não dizer quase nada sobre ele, pois misto todos são”, sendo assim, observa-se que essa é uma classificação genérica, visto que é uma característica embebida nos outros sistemas.
Nesse sentido, leciona Lima (2019, p. 43):
E chamado de sistema misto porquanto o processo se desdobra em duas fases distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Nesta, objetiva-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade.
Nessa vereda, na fase inquisitória predomina a forma inquisitiva, e na fase processual propriamente dita, possibilitaria a preponderância da forma acusatória. Entretanto, para Lopes Júnior (2018), esse entendimento é reducionista e genérico, pelo fato de que todos os sistemas são mistos.
Ademais, para Lopes Júnior (2020, p. 62) “de nada serve a separação inicial das funções se depois se permite que o juiz tenha iniciativa probatória, determine de ofício a coleta de provas”.
Assim, haja vista a inexistência de um sistema misto, o professor Aury Lopes Jr (2020, p. 61), leciona que “é crucial analisar qual o núcleo fundante para definir o predomínio da estrutura inquisitória ou acusatória, ou seja, se o princípio informador é o inquisitivo (gestão da prova nas mãos do juiz) ou acusatório, (gestão das provas nas mãos das partes)”.
Diante do exposto, tendo em vista a inexistência de um sistema misto, para poder distinguir se um sistema é acusatório ou inquisitório, se faz necessário a análise do seu núcleo fundante, leia-se, saber quem detém a gestão das provas.
3 SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E SISTEMA BRASILEIRO
Inicialmente vale destacar, que é na Europa, em especial após a primeira Guerra Mundial, em 1920, que a supremacia da Constituição, o Estado Constitucional e a criação de tribunais constitucionais surgiram e se firmaram. (TAVARES, 2020).
É sabido que a Constituição Federal é um conjunto de normas fundamentais e supremas, que podem ser escritas ou não e este regramento é responsável pela organização jurídica e política do Estado.
Leciona Tavares (2020, p. 179) que o “Direito Constitucional vocaciona-se à estruturação do Poder, fornecendo-lhe os contornos de atuação e limites de sua atividade, tendo sido, desde o final do século XX, o berço natural da positivação dos direitos humanos”. Logo, a Carta Política de um país é o regramento basilar para toda a ordem jurídica vigente, sendo considerada uma fonte originária do Estado de Direito.
Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro também tem na constituição sua norma fundamental. Assim, em nosso ordenamento a norma só possui validade caso tenha compatibilidade com a constituição Federal de 1988.
Preleciona Valerio de Oliveira Mazzuoli (2009, p. 108) que: “lei formalmente vigente é aquela elaborada pelo Parlamento, de acordo com as regras do processo legislativo estabelecidas pela Constituição, que já tem condições de estar em vigor; lei válida é a lei vigente compatível com o texto constitucional”.
Além do mais, para uma norma infraconstitucional ter validade no ordenamento jurídico brasileiro é necessário que esta tenha compatibilidade formal e material com a Constituição Federal de 1988. Existem diversos mecanismos que podem ser usados para verificar se uma determinada norma tem compatibilidade com a Carta Política de 1988 ou não, que é denominado de controle de constitucionalidade, que pode ser na forma concentrada e na forma difusa.
Ensina Lenza (2016) que o controle de constitucionalidade se consubstancia pela característica essencial da nossa Constituição que é a rigidez, ou seja, para a Magna carta ser alterada exige-se um processo mais solene, mas árduo. Para o mesmo autor o controle de constitucionalidade é a concretização do princípio da supremacia da constituição sobre todas as outras normas.
A supremacia da Constituição significa o dever de subordinação, compatibilidade e vinculação plena de todos os Poderes do Estado a suas normas, dada a hierarquia desse regramento ao ordenamento jurídico.
Essa hierarquia normativa inegavelmente é um pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a Constituição Federal o topo da pirâmide (no sentido hierárquico) do sistema normativo, é nessa norma suprema que o legislador ordinário terá como parâmetro de produção de leis infraconstitucionais, compatibilizando-se à aquela, sua forma e conteúdo.
Cezar Roberto Bitencourt ao lecionar sobre o tema afirma que “para a vigência e validade da produção jurídica normativa interna é necessária a sua compatibilidade com o texto constitucional, sob pena de configurar vício de inconstitucionalidade”. (BITENCOURT, 2018, p. 603).
A nossa carta política foi promulgada (democraticamente) entrando em vigência em 1988, esta é a norma suprema, ou seja, todas as outras leis devem tê-la como parâmetro, não podendo nenhuma lei ou norma confrontá-la. Vale ressaltar, que a Constituição Federal cria limites aos criadores (poder legislativo) e aos aplicadores da lei e define direitos e deveres a todo os cidadãos.
Neste sentido, afirma Siqueira Júnior que:
A supremacia da Constituição é uma característica que decorre da sua própria essência, na medida em que é a norma que institui, organiza e harmoniza o próprio sistema jurídico e estabelece a competência das pessoas políticas, disciplinando o poder estatal. O fato de a Constituição ser o fundamento de validade e unidade do sistema jurídico já a dota de superioridade (SIQUEIRA JR, 2012, p. 106).
Em relação ao dever de compatibilidade das normas infraconstitucionais, a título de exemplo, o Código de Processo Civil, de forma expressa, estabelece em seu artigo primeiro que todas as regras procedimentais nele elencadas serão aplicáveis com observância à Constituição Federal de 1988.
Logo, apesar de o código de Processo Penal não estabelecer expressamente esse dever de compatibilização, este também deve ter como parâmetro os ditames estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, Siqueira Júnior (2012, p. 144), leciona que:
“Da supremacia constitucional surge à necessidade da compatibilidade das normas jurídicas inferiores com a Constituição. O pressuposto de validade da norma de hierarquia inferior é a compatibilidade ou consonância com a Constituição”.
Em que pese à evidência de que o Código de Processo Penal possui características de um sistema inquisitivo, a Constituição Federal de 1988 inegavelmente prima pelo sistema processual acusatório, uma vez que não concentra em um mesmo órgão as funções de acusar, julgar e defender.
Assim, vale citar como exemplo o princípio da Inércia, que assegura que a ação penal só será iniciada após o juiz ser provocado, seja pelo Ministério Público ou pelo próprio ofendido, a depender da natureza da ação penal.
Ademais, em razão do princípio supremo da imparcialidade, ensina Lopes Júnior (2020, p.70) que:
A imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória.
Vale mencionar entendimento jurisprudencial sobre o tema:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - RECURDO DEFENSIVO - LATROCÍNIO TENTADO - ALEGAÇÕES FINAIS MINISTERIAIS - PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE ROUBO MAJORADO TENTADO - SISTEMA ACUSATÓRIO - VINCULAÇÃO DO JULGADOR - OBRIGATORIEDADE - ISENÇÃO DAS CUSTAS PROCESSUAIS - NÃO CABIMENTO - EFEITO DA CONDENAÇÃO - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. O sistema acusatório adotado pela Constituição da República vincula o julgador ao pedido ministerial de desclassificação do delito de latrocínio tentado para o de roubo majorado tentado. O pagamento das custas processuais é um dos efeitos da condenação penal, consoante art. 804, do Código de Processo Penal. Conforme orientação pacífica do Superior Tribunal de Justiça, a apreciação da isenção deve ser reservada ao Juízo da Execução, diante da possibilidade de alteração após a condenação.
(TJ-MG - APR: 10514080338437001 MG, Relator: Alexandre Victor de Carvalho, Data de Julgamento: 11/06/2019, Data de Publicação: 17/06/2019)
Logo, pelo fato do processo penal vigente conter alguns artigos e dispositivos que vão de encontro com as garantias processuais penais estabelecidas na Carta Magna de 1988, sua aplicabilidade deverá ser condiciona à compatibilidade com a norma suprema, ou seja, se faz necessária uma filtragem constitucional, tendo como objetivo a concretização do sistema acusatório.
Pondo fim em qualquer divergência sobre a temática, vale citar a inclusão pela Lei nº 13.964, de 2019 do art. 3-A, in verbis: “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”
Em suma, atualmente pode-se afirmar que o processo penal brasileiro além de constitucionalmente acusatório, com a alteração trazida pele lei 13.964/2019, é também expressamente legal (art. 3º-A do CPP).
4 DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA
Visto que a Constituição Federal traz expressamente em seu texto a presunção de inocência, a regra é que só se considera alguém culpado após o trânsito em julgado da sentença, porém, nesse ínterim podem ocorrer eventos que prejudiquem o normal desenvolvimento do processo.
Dessa forma, se justifica assim a adoção de medidas cautelares, que, nas palavras de Lopes Júnior (2018, p. 583) “buscam garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de penar. São medidas destinadas à tutela do processo”.
Entre as quais, destacam-se a prisão em flagrante, também chamada de precautelar, a prisão temporária, prisão domiciliar e a prisão preventiva, e ainda medidas cautelares diversas da prisão, todas visando proporcionar segurança ao processo penal, para que este possa ter seu regular desenvolvimento.
A prisão preventiva, no ordenamento jurídico brasileiro, representa uma medida de natureza cautelar, com previsão expressa no Código de Processo Penal, em seus arts 311 a 316. Trata-se de uma prisão cautelar, ou seja, decretada antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Nesse estágio, o réu goza da presunção de inocência, explicitamente prevista em nossa carta magna, em seu art. 5º, LVII, tratando-se, dessa forma, de medida considerada excepcional, pois não há aqui a culpabilidade comprovada do réu mas sim uma medida que no caso concreto se torna necessária devido à sua periculosidade e como esta pode influenciar no processo.
A esse respeito, muito bem se posiciona Lima (2019, p. 48), quando afirma que
Por força do dever de tratamento, qualquer que seja a modalidade de prisão cautelar, não se pode admitir que a medida seja usada como meio de inconstitucional antecipação executória da própria sanção penal, pois tal instrumento de tutela cautelar penal somente se legitima se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do indiciado ou do acusado.
O citado posicionamento corrobora a natureza de excepcionalidade da medida, justamente por se viver em um Estado pautado na condição de inocência do réu. Portanto, ao se tratar de prisão preventiva, é necessário destacar que se trata de prisão onde não há pena, diferente da prisão penal, que se dá após a sentença.
Observa-se claramente o estado de ultima ratio da prisão preventiva quando, no art. 282, § 4º, do Código de Processo Penal, o legislador se utiliza da expressão “em último caso”, ao se referir à sua decretação quando houver o descumprimento de qualquer das obrigações impostas.
Foi necessário que o instituto se moldasse com o passar do tempo até se encontrar na forma como está disposto atualmente, visto o Código de Processo Penal brasileiro ter sido criado em 1941, portanto, inspirado fortemente em ideais totalitários, e, portanto, muitas de suas disposições não se compatibilizarem com a Constituição de 1988, pautada sob o princípio maior da dignidade da pessoa humana.
Com a reforma da lei 12.403/2011, passou o art. 319 do CPP a estabelecer medidas cautelares diversas da prisão, reforçando mais uma vez o seu caráter de excepcionalidade, e mais recentemente, com a lei n. 13.964/2019, que alterou, dentre outros, o art. 311 do CPP, no sentido de não mais possibilitar a decretação da prisão preventiva de ofício, outro importante passo se considerarmos um processo penal humanitário.
Ocorre que houve uma banalização na aplicação da prisão preventiva no Brasil, e para que isso não ocorra, a lei disciplina a necessidade da demonstração da necessidade e adequação da medida, sendo a mesma ilegal se não forem observados tais requisitos (RANGEL, 2014). É importante para que se evite arbitrariedades na sua aplicação, pois, como já afirmado, trata-se de prisão cautelar e não de prisão penal.
4.1 FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
Segundo disposição do art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva poderá ser decretada visando a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou ainda para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
Sua decretação se condiciona com a presença do fumus comissi delicti, baseado na prova de existência do crime e indício suficiente de autoria. É portanto indispensável, nesse sentido, de acordo com as palavras de Lima (2019, p. 989) que “o juiz verifique que a conduta supostamente praticada pelo agente é típica, ilícita e culpável, apontando as provas em que se apoia sua convicção”. Também do periculum libertatis, quando o estado de liberdade do imputado gera fundado receio no que se refere ao normal desenvolvimento do processo.
Quanto à garantia da ordem pública, há aqui um conceito demasiadamente vago e impreciso sobre o que seria de fato no caso concreto. Em sua crítica à imprecisão do conceito, Lopes Júnior (2018, p. 637) afirma que “é recorrente a definição de risco para a ordem pública como sinônimo de ‘clamor público’, de crime que gera um abalo social, uma comoção na comunidade, que perturba a sua ‘tranquilidade’”.
Quanto ao requisito, Lima (2019, p. 992) sustenta que “com base na garantia da ordem pública, faz-se um juízo de periculosidade (e não de culpabilidade), que, em caso positivo, demonstra a necessidade de sua retirada cautelar do convívio social”. Seria, portanto, o receio de que o agente viesse a reiterar sua conduta.
No que se refere à ordem econômica, esse requisito foi inserido no Código de Processo Penal em virtude da lei nº 8.884/1994 (lei antitruste), com a finalidade de disciplinar condutas que afetem a ordem econômica. Ao se referir sobre o requisito, Rangel (2014, p. 808), afirma que a norma “quis permitir a prisão do autor do fato-crime que perturbasse o livre exercício de qualquer atividade econômica, com abuso de poder econômico, visando à dominação dos mercados, a eliminação de concorrência e o aumento arbitrário dos lucros”.
Sobre a conveniência da instrução criminal, Lopes Júnior (2018) salienta que a liberdade do acusado, no caso concreto, põe em risco o normal desenvolvimento do processo, como a coleta de provas, destruição de documentos, ameaça a testemunhas, vítimas ou peritos. Portanto, se faz conveniente para a instrução criminal que seja decretada a prisão preventiva do acusado.
Fundamenta-se a decretação da prisão preventiva ainda para assegurar a aplicação da lei penal, com o objetivo de evitar, por exemplo, que o acusado fuja, com o objetivo de impossibilitar a aplicação pena imposta. Neste sentido, deve haver o fundado receio de que o acusado fuja, e não apenas presunção.
Diante dos fundamentos supracitados, é imperioso destacar que em todos eles deve ser demonstrado o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, trazendo a redação do § 2º do art. 312 do Código de Processo Penal que a decisão deve ser motivada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.
4.2 CONDIÇÕES DE ADMISSIBILIDADE
Cumpre salientar que para além dos requisitos já analisados do art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva apenas poderá ser decretada em caso de crime doloso, o que já evidencia, por tanto, a impossibilidade de sua aplicação quando se tratar de crime culposo.
Deve ser observado também para sua decretação as disposições constantes do art. 313 do Código de Processo Penal, conforme análise a seguir.
Preleciona o inciso I do art. 313 do Código de Processo Penal que será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos. A esse respeito, muito bem destaca Lopes Júnior (2018, p. 641) que “nos crimes dolosos cuja pena máxima é superior a 4 anos e exista fumus commissi delicti e periculum libertatis, poderão ser utilizadas as medidas cautelares diversas ou, se inadequadas ou insuficientes, a prisão preventiva”.
Mais uma vez aqui destaca-se o seu caráter de excepcionalidade, visto que a legislação traz hipóteses de medidas cautelares diversas da prisão. Frisa-se ainda que o disposto no art. 313 deve sempre estar em consonância com o estabelecido no art. 312 do Código de Processo Penal, de modo que mesmo que esteja dentro do limite de pena estabelecido aqui, deve haver concomitantemente a presença do fumus commissi delicti e do periculum libertatis.
Disciplina o inciso II do mesmo artigo que será admitida sua decretação quando se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. O referido inciso trata da reincidência em crime doloso como critério para a decretação da prisão preventiva.
Destaca ainda o inciso III, que diz ser condição se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Há de se destacar o contexto doméstico e familiar em que ocorre a violência. A respeito desse inciso, Rangel (2014, p. 822) tece críticas quando afirma que:
A duas, que o art. 313 deve ser interpretado de forma sistemática, ou seja, caberá prisão preventiva se for crime doloso com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro anos), como dito acima. Logo, o crime de lesão corporal de natureza leve descrito no art. 129, caput e seu § 9º, do CP não admite prisão preventiva
Aqui, Paulo Rangel destaca que mesmo que ao final do processo por lesão corporal leve o réu fosse condenado, o mesmo não seria preso em decorrência da pena, que é de três meses a três anos, não sendo, portanto, admissível a prisão preventiva.
Afirma o § 1º do art. 313 do Código de Processo Penal que também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.
Mais uma vez, cumpre destacar que a análise deve se compatibilizar com os demais dispositivos, ou seja, para que esta prisão seja decretada, é necessário a presença do fumus commissi delicti bem como do periculum libertatis.
Importante se faz a disposição do § 2º, incluído pela lei 13.964/2019, que aduz não ser admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia, pois, como já mencionado, trata-se de medida cautelar, jamais podendo ser utilizada como antecipação de pena ou presunção de culpabilidade.
Afirma ainda o art. 314 do Código de Processo Penal que a prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Código Penal.
Assim sendo, se o agente tiver praticado o fato em condições que excluem a ilicitude, quais sejam, em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal ou em exercício regular de direito, pois não há sentido em decretar a prisão preventiva se a própria conduta se enquadra em uma excludente de ilicitude.
4.3 MOTIVADA E FUNDAMENTADA
Disciplina o art. 315, caput, do Código de Processo Penal que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada. Aqui se concentra um importe princípio constitucional, fundamental em um Estado democrático, que é o da motivação das decisões judiciais (CRFB/88, art. 93, IX).
Portanto, ao decretar a prisão preventiva, o juiz deve motivar e fundamentar a sua decisão, com o objetivo de evitar arbitrariedades, algo inaceitável em um processo penal pautado em princípios constitucionais. Ao discorrer sobre o tema, Rangel (2014) entende que o juiz não deve apenas copiar o que a lei diz, mas sim demonstrar, nos autos do processo, de acordo com o caso concreto, onde está, por exemplo, a necessidade de garantia da ordem pública que justifique a prisão do acusado.
Para Nucci (2012, p. 334), “o fornecimento de motivos, fundamentando uma decisão, indica o vínculo indispensável entre o magistrado e a lei, fonte da qual deve emanar a sua legitimidade de atuação”. Dessa forma, o magistrado deve motivar as suas decisões, fundamentando de acordo com as disposições legais.
Entende De Lucca (2015) que a atividade jurisdicional deve observar o princípio máximo do devido processo legal, que não só disciplina o exercício do poder, como protege garantias e faculdades tidas como essenciais aos sujeitos do processo. Portanto, ao se pensar em devido processo legal, inegável se faz a sua conexão com a motivação e fundamentação das decisões judiciais.
Aduz o § 1º do referido art. 315 do Código de Processo Penal que na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.
Mais uma vez vê-se aqui a motivação como requisito para tal decretação, não só da prisão preventiva, como de qualquer outra medida cautelar, onde o juiz deve indicar concretamente, ou seja, não apenas baseado em presunções, que há a existência de fatos novos ou contemporâneos no caso concreto que justifiquem tal medida, de modo a não cercear a qualquer custo a liberdade do acusado, que é a regra, visto que neste estágio não há trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
O § 2º do já citado dispositivo traz hipóteses onde não se considera fundamentada as decisões judiciais, quais sejam:
I- limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II- empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III- invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV- não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V- limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos. (CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941).
Portanto, o legislador fez questão de deixar claro as hipóteses onde não se considera fundamentada uma decisão, como meras reproduções da lei sem adequá-las ao caso concreto, aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, motivos que não justificam a decisão, não enfrentamento de todos os argumentos que poderiam justificar a decisão adotada e limitação à invocação de precedentes ou súmulas sem demonstrar a adequação ao caso.
Assim, mostra-se indispensável a apresentação de motivação e fundamentação das decisões judiciais, sem as quais considera-se nula a prisão, acarretando, com isso, a liberdade do acusado.
4.4 MEDIDA REVOGÁVEL
A prisão preventiva, como medida cautelar, pode ser revogada, cumprindo as disposições do art. 316 do Código de Processo Penal, que disciplina a possibilidade do juiz, de ofício ou a requerimento das partes, revogar a mesma, quando no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
Rangel (2014) defende que a expressão poderá, contida no dispositivo, não pode significar uma simples faculdade do magistrado, tendo em vista que se trata de um direito de liberdade, e uma vez presentes os requisitos legais, quais sejam o desaparecimento de fumus commissi delicti e o periculum libertatis, há o direito do acusado de que lhe seja concedida a liberdade.
Constata-se, portanto, que mesmo tendo sido decretada de forma legal, uma vez desaparecendo os motivos que a determinaram, deve o juiz revogar a prisão preventiva, bem como poderá voltar a decretá-la se sucederem razões que a justifiquem.
Prevê ainda o parágrafo único, incluído pela lei n. 13.964/2019, que uma vez decretada a prisão preventiva, o órgão emissor da decisão deverá revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, conforme decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.
Portanto, estipulou o legislador um marco temporal em que deve ser analisada a real necessidade da manutenção da prisão preventiva, com decisão fundamentada, para que, caso não subsista mais o motivo, deva ser imediatamente revogada, sob pena de torná-la ilegal.
4.5 DECRETAÇÃO DE OFÍCIO
Apenas o juízo ou tribunal competente pode decretar a prisão preventiva, desde que a decisão seja fundamentada, a partir de prévio pedido do Ministério Público (detentor da ação penal) ou mediante representação da autoridade policial, que é o Delegado de Polícia.
Quanto à oficialidade do juízo, em razão de o sistema adotado pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código de Processo Penal vigente ser o sistema acusatório, estabelece o art. 311 do CPP que não cabe prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz.
Vale trazer à baila a nova redação dada pelo Pacote Anticrime ao artigo 311 do CPP: em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
Em que pese essa nova redação do art. 311 do CPP, que, expressamente veda a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz, é importante frisar que em razão da cultura inquisitória da qual o processo penal foi originalmente influenciado, era até recentemente admitido que o juiz decretasse de ofício a prisão preventiva no curso do processo ou que convertesse a prisão em flagrante em preventiva, sem ser provocado.
Antes da alteração trazida pelo pacote anticrime o artigo 311 do CPP, tinha a seguinte redação:
Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de oficio, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
Havia críticas a essa previsão legal, visto que essa faculdade que era dada ao magistrado, de poder decretar de ofício a prisão preventiva, inegavelmente colocava em risco o princípio basilar da imparcialidade e confrontava frontalmente com o sistema acusatório.
Nesse sentido, Geraldo Prado, (2005, p. 182), ao dissertar sobre o tema já se posicionou discordando da previsão legal de atuação do juiz de ofício, asseverando que “é incompatível com o Sistema Acusatório o poder do juiz, por exemplo, de ofício, decretar a prisão preventiva do indiciado”.
Outrossim, Lopes Júnior (2020) levantou um duplo erro sobre esse tema, o primeiro era o fato de que o juiz estaria atuando como parte e não como um terceiro alheio, confronta assim o sistema acusatório e o segundo erro frisado por ele foi que esse ativismo judicial vai de encontro ao princípio da imparcialidade.
Vale reiterar que o artigo 3-A do CPP, estabelece de forma expressa que é o sistema processual acusatório o adotado pela nossa Carta Magna, além do mais, ainda nesse artigo há uma vedação ao magistrado de agir de ofício e assim adentrar na esfera que pertence às partes.
Sendo assim, é vedado ao magistrado, atuar como defensor ou acusador, pois isso cabe à partes, logo o dever do juiz é assegurar as regras procedimentais e julgar conforme ao que foi produzido pelas partes.
No tocante à imparcialidade, trata-se de um dos mais importantes temas do Processo Penal, pois em um sistema processual acusatório não há que se pensar em outra forma de atuação do magistrado. Este deve ser imparcial em suas decisões, que, no entendimento de Lopes Júnior (2018) representa a atuação estatal como terceiro no processo, alheio a qualquer interesse das partes, seja no polo ativo ou passivo.
Ademais, é necessário também que o juiz se resguarde de praticar atos investigatórios que o conduza a ter pré-juízos sobre os fatos, para que só assim possa ser efetivado a imparcialidade objetiva e o juiz não venha a realizar prejulgamento da causa.
Coutinho (2001) ensina que o juiz não está acima das partes, mas além de que quaisquer objetivos delas, ou seja, o juiz é inegavelmente o garantido, do devido processo legal, e de todos os direitos fundamentais estabelecidos ao réu.
Corroborando com essa linha de raciocínio, é importante destacar a redação do parágrafo 2º do artigo 282 do CPP, que estabelece que “as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público”
Ademais, vale citar entendimento jurisprudencial sobre o tema:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DE OFÍCIO NA FASE INVESTIGATIVA. ILEGALIDADE. Na fase do inquérito policial, o decreto de prisão preventiva, editado de ofício pela autoridade judiciária, ausente o requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial, expõe flagrante violação do art. 311 do Código de Processo Penal, caracterizando constrangimento ilegal, reparável pela concessão da ordem mandamental. ORDEM CONHECIDA E CONCEDIDA.
(TJ-GO - HC: 05805906320188090000, Relator: Sival Guerra Pires, Data de Julgamento: 26/02/2019, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ de 26/02/2019)
Portanto, a alteração realizada pelo legislador, em retirar a possibilidade de o juiz decretar de ofício a prisão preventiva na fase processual, trata-se de medida positiva cujo o objetivo principal foi resguardar o sistema acusatório e, assim, a imparcialidade do juiz. Além do mais, com a nova com a inclusão do artigo 3-A do CPP, é cristalino que o Sistema processual acusatório, adotado pela Constituição Federal de 1988 é também expressamente legal.
Diante do exposto, para garantia de que o magistrado agirá com a devida imparcialidade no caso concreto, não basta a mera separação das funções de acusar, defender e julgar, mas o afastamento deste de qualquer atividade que implique em poder instrutório no processo.
Sendo vedado assim, que magistrado exerça atividades típicas daqueles que tenham paixão e interesse em determinado resultado do processo, pois a responsabilidade de produzir provas deve se restringir às partes, para que só assim seja concretizada a imparcialidade do juízo.
5 CONCLUSÃO
O presente artigo buscou analisar a compatibilidade entre a atuação de ofício do juiz na decretação da prisão preventiva e os ditames constitucionais, à luz das alterações promovidas pela lei n. 13.964/2019.
Para tanto, destacou-se os sistemas processuais penais, com suas respectivas características, na medida em que o sistema adotado será fundamental para determinar a forma de aplicação das normas penais.
Ademais, evidenciou-se a supremacia da Constituição Federal, localizando-se esta no topo da hierarquia normativa brasileira, no sentido de demonstrar que todos as normas e institutos devem observância obrigatória aos seus preceitos.
Pôde-se constatar, então, a opção feita pelo constituinte ao sistema acusatório, fundamental em um Estado democrático de direito, na medida em que este traz disposições importantes, como quanto à gestão da prova, a qual deve estar a cargo das partes, à inércia do julgador e a devida imparcialidade com que este deve proceder.
Nesse entendimento, é fundamental o § 2º do art. 282 do Código de Processo Penal, em sua atual redação, ao disciplinar que as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.
Diante disso, observou-se que a nova redação do art. 311 do Código de Processo Penal, dada pela lei n. 13.964/2019, veio alinhar de forma expressa o CPP com a Constituição Federal, ao vedar a possibilidade do juiz decretar a prisão preventiva de ofício.
Também, nesse sentido, o art. 3º-A do CPP, incluso pela referida lei, ao estabelecer que o Processo Penal terá estrutura acusatória, sendo vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação, deixa claro que esse sistema preza pela imparcialidade do julgador.
Portanto, conclui-se que a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz não se compatibiliza com aquilo que preceitua o texto constitucional. Ao passo que as mencionadas alterações ao Código de Processo Penal, pela lei n. 13.964/2019, estão em harmonia com a Constituição Federal, quando apontam para vedação de produção de prova de ofício pelo magistrado ou qualquer comportamento que vá de encontro ao sistema acusatório.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto Lei 3.689 de 3 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 02. abr. 2020
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 05. abr. 2020.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In: Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
CUNHA, Rogério Sanches. Código penal comentado para concursos. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
DE LUCCA, Rodrigo Ramina. O dever de motivação das decisões judiciais. Salvador: Juspodivm, 2015.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 7 ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
______. Direito Processual Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 4, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das Leis processuais Penais. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
______. Direito Processual Penal. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2014.
SIQUEIRA JR, Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 18.ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
______, Tribunal de Justiça de MG. APELAÇÃO CRIMINAL. Apelação Recursal nº1051408033843700. Relator Ministro Alexandre Victor de Carvalho. 11 de junho de 2019. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/busca?q=TJ-MG+-+APR%3A+10514080338437001. Acesso em 15 maio. 2020
______, Tribunal de Justiça de GO. DECRETAÇÃO DA PRISSÃO PREVENTIVA DEOFÍCIO NA FASE INVESTIGATIVA. Habeas Corpus nº 05805906320188090000. Relator Sival Guerra Pires. 26 de fevereiro de 2019. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/busca?q=TJ-GO+-+HC%3A+05805906320188090000. Acesso em 15 maio. 2020.
[1]Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho. E-mail: [email protected]
[2] Orientador. Professor do Centro Universitário Santo Agostinho. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
Bacharelando do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Emerson Leandro da Silva. A decretação da prisão preventiva de ofício e o novo pacote anticrime Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 maio 2020, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54596/a-decretao-da-priso-preventiva-de-ofcio-e-o-novo-pacote-anticrime. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Precisa estar logado para fazer comentários.