RESUMO: O presente estudo visa analisar a divergência doutrinária e jurisprudencial instaurada na seara jurídica acerca da aplicação da audiência de custódia no âmbito do procedimento de apuração da prática de ato infracional, mormente diante da ausência de legislação tutelando o assunto.
PALAVRAS-CHAVE: ato infracional, audiência de custódia, proteção integral, absoluta prioridade.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A (DES)NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL. 2.1. O DIREITO À PROTEÇÃO INTEGRAL. 2.2 DO PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL. 2.3. O EMPREGO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 4. REFERÊNCIAS.
O tratamento dado à responsabilidade dos adolescentes pela prática de atos infracionais passou por uma profunda mudança com o advento da Constituição de 1988 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, superando sistemas tutelares que os inferiorizavam e justificavam sua irresponsabilidade com base na sua incapacidade.
Os adolescentes passam, portanto, a serem tratados como sujeitos de direito,
destinatário de uma medida socioeducativa quando seu agir configurar uma conduta delituosa, denominada tecnicamente de ato infracional.
Esse remodelamento realizado pela doutrina da proteção integral passa a reconhecer os infantes como pessoas em desenvolvimento, conforme o princípio do melhor interesse, restringindo-lhes a liberdade apenas em casos excepcionais.
Nesse diapasão, instaurou-se uma divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da extensão da aplicação da audiência de custódia para menores apreendidos em flagrante. De um lado defende-se sua realização como forma de garantir a celeridade do procedimento de apuração do ato infracional mediante a racionalização da intervenção judicial. De outro norte, entende-se que a sistemática prevista pela legislação juvenil prevê um procedimento ágil, garantindo ao adolescente que a restrição de sua liberdade seja apenas excepcional.
A relevância do tema é inquestionável, tanto mais diante da aplicação dos princípios que regem os direitos da criança e do adolescente como o superior interesse, a proteção integral e a absoluta prioridade.
2. A (DES)NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL
A quebra de paradigma no tratamento dado às crianças e aos adolescentes no ordenamento jurídico pátrio somente pode ser verificada a partir da concepção da Constituição Federal de 1988, que erigiu como dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar às crianças e aos adolescentes, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, CF).
A mudança de tratamento dada em relação à tutela infanto-juvenil, na esteira da Declaração Universal de Direitos da Criança de 1959 e da Convenção Internacional sobre Direitos da Criança e do Adolescente de 1989, verifica-se diante da constatação de que se passa a tratá-los como sujeitos de direitos, os quais devem ter garantidos sua proteção integral conforme condição de pessoas em desenvolvimento peculiar.
Sob esse prisma, revogou-se o antigo Código de Menores, o qual determinava que somente àqueles menores de 18 anos, em situação irregular, poderiam ser sujeitos à intervenção estatal. Segundo essa ultraprassada perspectiva, a solução das controvérsias envolvendo menores dava-se no âmbito preponderantemente jurisdicional, não havendo diferenciação entre infantes em situação de risco e adolescentes infratores. Considerava-se, assim, uma questão que envolvia um problema social no qual o Estado somente seria chamado a intervir quando estritamente necessário, dando um tratamento aos menores como se fossem um "objeto" de proteção. Abdicava-se, desse modo, de um modelo de prevenção, em que seriam assegurados seus direitos fundamentais, para tratar das situações envolvendo crianças e adolescentes somente quando houvesse violações.
Essa nova visão consagrada pela Carta Magna passou a ser regulamentada no âmbito infraconstitucional a partir do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, encampando a doutrina da proteção integral e a singularidade dos sujeitos em questão.
O novo diploma passou a considerar a existência de apenas uma única infância, gozando as crianças e adolescentes, independentemente de sua situação fática ou jurídica, de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem (art. 3, caput e §único, ECA).
Além disso, a instituição da doutrina da proteção integral promoveu uma descentralização do atendimento infanto-juvenil, passando diversas controvérsias a serem resolvidas no âmbito administrativo, por meio dos Conselhos Tutelares e dos Conselho de Direitos das Crianças e Adolescentes, sob fiscalização do Ministério Público. Restringiu-se, desse modo, a intervenção do poder judiciário às hipóteses em que inviável solução nas demais searas ou quando relacionada à restrição dos direitos fundamentais.
Ademais, promoveu-se uma diferenciação entre o adolescente infrator e o infante que se encontra em situação de risco, destinando àquele as medidas sócio-educativas, e a este as medidas de proteção. Sob esse viés, o sistema de institucionalização, aparentemente concebido como regra na doutrina da situação irregular e que não diferenciava seus participantes, torna-se exceção na doutrina da proteção integral, respeitando-se a condição peculiar de ser humano em desenvolvimento.
Centralizou-se a família e promoveu-se seu empoderamento, encarregando não apenas ao poder público, mas também àquela junto da comunidade e da sociedade em geral a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 4, ECA).
Nesse cenário, para asseguração dos direitos das crianças e dos adolescentes é hialino a existência de alguns postulados normativos que preponderam sobre o sistema infanto-juvenil, sendo eles: o superior interesse da criança e do adolescente, a proteção integral e a prioridade absoluta.
O princípio do melhor interesse da criança ou do adolescente traduz a ideia de que, na análise do caso concreto, o aplicador do direito deve buscar a solução que proporcione o maior benefício possível para a criança ou adolescente, ou seja, que dê maior concretude aos seus direitos fundamentais.
Por sua vez, a proteção integral tem como objetivo garantir a instituição de direitos fundamentais específicos e compatíveis com seus sujeitos especiais, unificando o tratamento despendido às crianças e adolescentes, na qual todos devem ser sujeitos de direitos e gozam de um conjunto de mecanismos jurídicos voltados a sua tutela.
A garantia de prioridade absoluta estabelece que a tutela de direitos da criança e do adolescente tem sempre precedência sobre a tutela de quaisquer outros direitos ou interesses, decorrendo daí a prioridade máxima a ser respeitada pela família, pela sociedade e pelo Estado. Os direitos decorrentes da prioridade absoluta compreendem: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; e d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude
Como dito, a partir destes postulados, fundamentam-se os demais princípios previstos no estatuto dentre eles: condição das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, responsabilidade primária e solidária do Poder Público, privacidade, intervenção precoce e mínima, proporcionalidade, atualidade, responsabilidade parental, prevalência da família, obrigatoriedade de informação e oitiva e participação da criança e adolescente compulsória (art. 100, ECA).
Infere-se, segundo tais princípios, que nenhuma criança ou adolescente poderá ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (art. 5, ECA).
Há, em verdade, que sempre se realizar uma interpretação favorável do Estatuto da Criança e do Adolescente ao Menor para a concretização de seus direitos fundamentais, observando-se os fins sociais a que ele se dirige (Art. 6, ECA).
Nesse diapasão, atentando-se ao vetor axiológico máximo do ordenamento jurídico, qual seja a garantia da dignidade da pessoa humana, os direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente quando da prática de atos infracionais devem ser valorados para que se possa promover a brevidade e a excepcionalidade das medidas a serem aplicadas, sem descurar do dever de respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
De proêmio, cumpre elucidar que o modelo de responsabilização penal juvenil deve observância a inimputabilidade das crianças e dos adolescentes por meio do critério etário (art. 228 da Constituição Federal e art. 104 da Lei n. 8.069/1990), uma vez que os menores de 18 (dezoito) anos não podem ser submetidos à legislação penal.
Nesse cenário, a lei infraconstitucional sobre os direitos das crianças e dos adolescentes conceitua o ato infracional como a conduta praticada pelos menores de 18 (dezoito) anos que seja descrita como crime ou contravenção.
A respeito do tema, Karyna Sposato elucida que:
Em face do princípio da legalidade, a definição de ato infracional, ao remeter-se à conduta descrita como crime, está diretamente relacionada à atribuição da pena pelo direito penal comum. Resulta claro e evidente que a existência do ato infracional restringe-se às hipóteses legais aptas a sancionar o adulto. Adotou-se, portanto, técnica de tipificação delegada, pois tudo o que é considerado crime para o adulto também é em igual medida considerado para o adolescente. Ao adolescente, contudo, imputa-se a mesma responsabilidade em face do crime ou da contravenção penal, em que pesem as diferenças substantivas entre essas duas espécies de delito. A conduta praticada pelo adolescente somente se afigurará como ato infracional se, e somente se, contiver os mesmos aspectos definitórios da infração penal (SPOSATO, 2013, p. 40).
No mesmo sentido, Paulo Henrique Aranda Fuller Guilherme Madeira Dezem Flávio Martins Alves Nunes Júnior (2009., p. 81) preconizam que:
Adota-se um mecanismo de tipicidade remetida (ao direito penal comum), que incorpora o princípio da legalidade -reserva legal e anterioridade - ao sistema de responsabilidade especial do ECA (art. 5°, XXXIX, da CF; art. 40, n. 2, a, da Convenção sobre os Direitos da Criança - Dec. 99.710/1990). A substituição da doutrina da situação irregular (etapa tutelar) pela doutrina da proteção integral (etapa garantista - art. 1.°) ensejou uma limitação do poder punitivo estatal: a possibilidade de intervenção punitiva por medida socioeducativa (art. 112) somente pode ser cogitada em face de uma conduta que seja tipiicada como infração penal para os adultos. Em outras palavras, as situações de risco do art. 98 permitem a aplicação apenas das medidas de proteção (art. 101), pois as medidas socioeducativas (manifestação do poder punitivo estatal) dependem da configuração de um ato infracional praticado por adolescente (art. 112, caput).
Há, portanto, uma dualidade no sistema de responsabilização previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro, em que os adultos estarão sujeitos a penas e medidas de segurança e os menores de 18 anos a medidas socioeducativas e de proteção, em consonância com a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.
O modelo de responsabilidade especial trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente realizou, também, uma distinção interna entre crianças, menores de 12 anos, e adolescentes, menores de 18 anos (art. 2). Com substrato na capacidade de entendimento, prevê o diploma legal que as crianças estarão sujeitas à medida de proteção no caso da prática de ato infracional enquanto os adolescentes estarão sujeitos também às medidas socioeducativas.
Nesse caminhar, cumpre elucidar que a aplicação das medidas socioeducativas a adolescentes que praticam atos infracionais sujeita-se a um procedimento próprio, delineado pelos artigos 171 a 190 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Sem descurar dos princípios da prioridade absoluta e da proteção integral, este diploma pressupõe a observância de que a aplicação da restrição de liberdade ao adolescente apenas pode ser decretada de forma excepcional, respeitando-se sua condição peculiar de sujeito em desenvolvimento e os direitos que lhe são assegurados para sua defesa.
Assim, na hipótese em que um adolescente pratique um ato infracional, é possível que este seja apreendido em flagrante ou por força de mandado judicial. Caso a apreensão seja em flagrante, deve-se encaminhá-lo desde logo à autoridade (art. 172, ECA). Por sua vez, havendo mandado judicial para sua apreensão, o adolescente deve ser encaminhado à autoridade judiciária que expediu o ato (art. 171, ECA).
Sendo o adolescente apreendido em flagrante pelo cometimento de um ato infracional mediante violência ou grave ameaça à pessoa, a autoridade policial encaminhará, desde logo, o adolescente ao representante do Ministério Público (art. 175, ECA).
A partir da colheita de peças de informação (art. 173 a 178 do ECA), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) regulamenta a oitiva informal de adolescentes a quem se imputa a prática de ato infracional:
Art. 179. Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas.
Parágrafo único. Em caso de não apresentação, o representante do Ministério Público notificará os pais ou responsável para apresentação do adolescente, podendo requisitar o concurso das polícias civil e militar.
Insta destacar que a audiência de oitiva informal do adolescente possui natureza administrativa, antecedendo a fase judicial. O caráter extrajudicial da audiência informal visa formar a convicção do Ministério Público a fim de que, ao final, decida a respeito da promoção do arquivamento do procedimento de apuração de ato infracional, concessão de remissão ou representação pela prática de ato infracional para aplicação de medida socioeducativa.
Considerando o auxílio na formação do convencimento do Órgão Ministerial, Guilherme Nucci leciona que a oitiva informal:
Trata-se de uma providência importante para auxiliar a formação do convencimento do membro do Ministério Público para que possa decidir o que fazer: promover o arquivamento dos autos, conceder a remissão ou representar. Além disso, poderá opinar pela liberação do jovem ou manutenção da internação provisória. Essa oitiva não é condição de procedibilidade para o oferecimento da representação, pelas seguintes razões: a) inexiste previsão legal expressa para isso; b) a ampla defesa se realiza em juízo – e não fora dele; c) trata-se de oitiva informal, não reduzida a termo, de modo que é inócua a sua obrigatoriedade para dar prosseguimento à ação socioeducativa, pois nada fica documentado; d) este artigo ainda sugere a oitiva informal, além dos pais do menor, da vítima e testemunhas, evidenciando a formação da convicção do promotor a respeito de como proceder. (Nucci, 2014, p. 1613-1614).
Considerando o exposto, depreende-se que a oitiva informal permite que o membro do Ministério Público possa ter um contato direto com o adolescente, formando seu convencimento acerca da melhor medida a ser aplicada em relação ao ato praticado, segundo os princípios que regem a seara juvenil.
Essa oportunidade de comunicação com o adolescente, no entanto, tem sido questionada no âmbito jurídico, uma vez que com o implemento da audiência de custódia para os maiores de 18 anos, defende-se sua mesma aplicação no âmbito da justiça da infância e da juventude, expandindo as oportunidades de defesa dos adolescentes.
A partir da implementação da audiência de custódia no ordenamento jurídico pátrio, regulamentada pela Resolução 213/15 do Conselho Nacional de Justiça, passou-se a questionar no âmbito doutrinário e jurisprudencial a possibilidade de extensão deste procedimento aos adolescentes autores de atos infracionais.
Consoante a edição da sobredita Resolução, “toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão" (art. 1º).
Com substrato nas normas internacionais sobre direitos humanos, ratificadas e internalizadas com status normativo supralegal, operou-se uma adequação do ordenamento jurídico interno às normas internacionais que preveem a imediata apresentação do preso em caso de prisão em flagrante.
De acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica:
“Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.” (artigo 7º, “5)
Nesse mesmo teor, dispõe o artigo 9º, “3”, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos:
"Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença."
Observa-se, nesse caminhar, que o objetivo da audiência de custódia cinge em apresentar o indivíduo preso em flagrante à autoridade judicial competente no mesmo momento em que realizada a apreensão a fim de que possa esclarecer as circunstâncias da sua detenção, realizando sua oitiva, sem adentrar-se ao mérito de sua conduta. Nas lições de Nestor Tavorá e Rosmar Alencar:
Audiência de custódia é a providência que decorre da imediata apresentação do preso ao juiz. Esse encontro com o magistrado oportuniza um interrogatório para fazer valer direitos fundamentais assegurados à pessoa presa. Deve-se seguir imediatamente após à efetivação da providência cerceadora de liberdade. É “interrogatório de garantia” que torna possível ao autuado informar ao juiz suas razões sobre o fato a ele atribuído. Ao cabo, é meio de controle judicial acerca da licitude das prisões (TAVORÁ, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues, 2016, p. 1249).
Acrescenta Eugênio Pacelli sobre a previsão da realização da audiência:
Quanto ao procedimento na realização da citada audiência de custódia, deve-se atentar para o seguinte: não se trata de uma antecipação do interrogatório. Mais ainda: não se está abrindo a oportunidade para o avanço acerca das circunstâncias e elementares do delito posto então sob suspeita. A audiência destina-se tão somente ao exame da necessidade de se manter a custódia prisional, o que significa que o magistrado deve conduzir a entrevista sob tal e exclusiva perspectiva. Não lhe deve ser permitida a indagação acerca da existência dos fatos, mas apenas sobre a legalidade da prisão, sobre a autuação dos envolvidos, sobre a sua formação profissional e educacional, bem como sobre suas condições pessoais de vida (família, trabalho etc). (PACELLI, 2017, p. 555-556).
O plenário do Supremo Tribunal Federal, enfrentando o tema, declarou a constitucionalidade e a legalidade da implementação da audiência de custódia, seguindo a Convenção Americana de Direitos Humanos e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO CONJUNTO 03/2015 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. 1. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada “audiência de custódia”, cuja denominação sugere-se “audiência de apresentação”. 2. O direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal de habeas corpus, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe é apresentado, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes. 3. O habeas corpus ad subjiciendum, em sua origem remota, consistia na determinação do juiz de apresentação do preso para aferição da legalidade da sua prisão, o que ainda se faz presente na legislação processual penal (artigo 656 do CPP). 4. O ato normativo sob o crivo da fiscalização abstrata de constitucionalidade contempla, em seus artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º normas estritamente regulamentadoras do procedimento legal de habeas corpus instaurado perante o Juiz de primeira instância, em nada exorbitando ou contrariando a lei processual vigente, restando, assim, inexistência de conflito com a lei, o que torna inadmissível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade para a sua impugnação, porquanto o status do CPP não gera violação constitucional, posto legislação infraconstitucional. 5. As disposições administrativas do ato impugnado (artigos 2º, 4° 8°, 9º, 10 e 11), sobre a organização do funcionamento das unidades jurisdicionais do Tribunal de Justiça, situam-se dentro dos limites da sua autogestão (artigo 96, inciso I, alínea a, da CRFB). Fundada diretamente na Constituição Federal, admitindo ad argumentandum impugnação pela via da ação direta de inconstitucionalidade, mercê de materialmente inviável a demanda. 6. In casu, a parte do ato impugnado que versa sobre as rotinas cartorárias e providências administrativas ligadas à audiência de custódia em nada ofende a reserva de lei ou norma constitucional. 7. Os artigos 5º, inciso II, e 22, inciso I, da Constituição Federal não foram violados, na medida em que há legislação federal em sentido estrito legitimando a audiência de apresentação. 8. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem e o Código de Processo Penal, posto ostentarem eficácia geral e erga omnes, atingem a esfera de atuação dos Delegados de Polícia, conjurando a alegação de violação da cláusula pétrea de separação de poderes. 9. A Associação Nacional dos Delegados de Polícia – ADEPOL, entidade de classe de âmbito nacional, que congrega a totalidade da categoria dos Delegados de Polícia (civis e federais), tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade (artigo 103, inciso IX, da CRFB). Precedentes. 10. A pertinência temática entre os objetivos da associação autora e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade é inequívoca, uma vez que a realização das audiências de custódia repercute na atividade dos Delegados de Polícia, encarregados da apresentação do preso em Juízo. 11. Ação direta de inconstitucionalidade PARCIALMENTE CONHECIDA e, nessa parte, JULGADA IMPROCEDENTE, indicando a adoção da referida prática da audiência de apresentação por todos os tribunais do país. (STF, ADI 5240, Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016).
Sob essa perspectiva, passou-se a cogitar a aplicação do procedimento da audiência de custódia na seara da infância e da juventude aos adolescentes apreendidos em flagrante na prática de atos infracionais.
Entretanto, a utilização do procedimento da audiência de custódia na justiça da infância e da juventude não tem recebido uma ampla aceitação da comunidade jurista.
Segundo o magistrado Márcio da Silva Alexandre, em obra publicada aduzindo “A ilegalidade da audiência de custódia para adolescentes”, infere-se que:
Em relação ao adolescente, não existem as preocupações que motivaram a regulamentação da audiência de custódia no âmbito processual penal. A situação flagrancial do adolescente é bastante diferente. Passa ele pelo crivo da autoridade policial, do promotor de Justiça e do Juiz, no dia de sua apreensão. Há assim um controle triplo sobre ela. Por fim, vale ressaltar que, ultrapassado prazo improrrogável, sem julgamento, o adolescente deve ser liberado da internação provisória de ofício pelo Juiz imediatamente, sob pena de vir a responder por crime previsto no art. 234 do ECA. Diante desse quadro, certo é que os objetivos visados pela Resolução 213/CNJ já são alcançados pela observância do procedimento previsto no ECA, pelo que não se vê vantagem em se adotá-la no âmbito do Direito Menorista. Além disso, a citada Resolução afronta os dispositivos que regulam a oitiva informal e a concessão remissão extrajudicial, razão por que é ilegal no tema.
No mesmo sentido, o Grupo Nacional de Direitos Humanos do conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça emitiu nota técnica rechaçando a possibilidade de normatização das audiências de custódia de adolescentes por considera-la ilegal à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Ressalte-se a patente ilegalidade da mencionada proposta, uma vez que o legislador já estabeleceu, nos artigos 107 e 172 a 181, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente, um rito sumário para a liberação, na delegacia, sem necessidade de apreciação do Poder Judiciário, de adolescentes que praticam atos infracionais de menor gravidade e sem repercussão social. Nos casos em que houver necessidade do adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública, em função da gravidade do ato infracional praticado e sua repercussão social. Nos casos de infrações graves e repercussão social, deverá o adolescente apreendido ser apresentado ao Ministério Público no mesmo dia ou no primeiro dia útil imediato. Admitir a extensão das “audiências de custódia” para adolescentes apreendidos em razão da prática de atos infracionais é fazer uma interpretação equivocada da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Resolução nº 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (Nota Técnica nº 02/2016 da Comissão Permanente da Infância e Juventude do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça)
Consoante exposto pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos, a aplicação das normas de Direito Penal e Processual Penal, nada obstante servirem de parâmetro para interpretação sistemática da responsabilização por uma conduta que infrinja os ditames legais, apenas deve ser subsidiariamente aplicada às normas de Direito da Criança e do Adolescente.
Até porque, verifica-se a existência de norma expressa para que o adolescente custodiado seja apresentado ao Ministério Público em até 24 (vinte e quatro) horas após sua apreensão (art. 175, §1º, da Lei nº 8.069/90), ocasião em que será realizada sua oitiva informal e poderá ser analisada a melhor medida que se adequa ao caso concreto além das circunstâncias que levaram sua custódia e o modo como se procedeu para sua feição.
Insta mencionar que, na forma do Estatuto da Criança e do Adolescente, tem-se que a liberação imediata do adolescente apreendido é utilizada como regra, de modo que apenas excepcionalmente será realizada sua oitiva informal. Em qualquer caso, a custódia do adolescente somente terá espaço quando houver imperiosa necessidade de sua imposição.
Ademais, diante das especificidades do Estatuto da Criança e do Adolescente, caso seja oferecida a representação pelo Ministério Público, no primeiro ato processual, ou seja, já na audiência de apresentação, a autoridade judiciária terá contato pessoal com o adolescente e poderá, desde logo, conceder a remissão (art. 184 a 186, ECA).
Inclusive, no Fórum Nacional dos Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência, realizado em 2014, firmou-se a tese de que “as propostas de normatização, pelas Varas, Tribunais de Justiça e Conselho Nacional de Justiça, das denominadas ‘audiências de custódia de menores’, são ilegais, pois o rito estabelecido na Lei 8.069/90 está em consonância com os direitos e garantias previstos no artigo 7°, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), atendendo melhor ao superior interesse do adolescente apreendido”. (Enunciado 6)
Com substrato nas proposituras acima, a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado do Congresso Nacional rejeitou o Projeto de Lei 7908/17, o qual determinava que o adolescente apreendido em flagrante ato infracional fosse, obrigatoriamente, apresentado em até 24 horas à autoridade judicial competente.
Em contrapartida, após a edição do Enunciado n. 6 do Proinfância, o Comitê da ONU sobre Direitos da Criança publicou a Observação Geral N. 10, estabelecendo que “Todo menor detido e privado de liberdade deverá ser colocado à disposição de uma autoridade competente em um prazo de 24 horas para que se examine a legalidade de sua privação ou a continuidade desta” (parágrafo 83).
Nesse prisma, no caso dos Irmãos Landaeta Mejias e outros vs Venezuela, a Corte Internacional de Direitos Humanos também se posicionou pela aplicação da garantia da da audiência de custódia ao adolescente infrator apreendido, de modo que de ser concedido o mesmo tratamento àqueles maiores de dezoito anos que são apreendidos em flagrante.
Extrai-se o seguinte entendimento doutrinário sobre a realização das audiências de custódia para os adolescentes que não tiverem sido previamente liberados por iniciativa do próprio agente Ministerial:
Isto permitirá a desejável (e necessária) "racionalização" da intervenção judicial, de modo que a "apresentação" do adolescente apreendido ao Juiz, em observância ao mencionado "princípio da intervenção mínima", assim como ao disposto nos arts. 184 e 186, da Lei nº 8.069/90 e item 14.1, das "Regras de Beijing" (dentre outras normas e princípios aplicáveis), somente seja efetuada após formalizada a acusação pelo Ministério Público, por meio do oferecimento da representação socioeducativa, sendo a observância do prazo de "24 horas" para tanto cabível, apenas, se o adolescente não tiver sido previamente liberado por iniciativa do próprio agente Ministerial. (DIGIÁCOMO, 2016, P. 138)
Por sua vez, Rômulo De Andrade Moreira (2019), Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, assevera que:
Determina-se que “toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.” Ao se referir à apreensão, a Resolução, evidentemente, apesar de não ser necessário, fez questão de reafirmar que o adolescente infrator deve também ser apresentado ao Juiz da Infância e da Juventude. Afinal de contas, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos vale para todos os humanos.
Em arremate, alguns Estados passaram a implementar a audiência de custódia para menores como no Maranhão, em que foi editada a Portaria Conjunta nº 1/2017 pela 2ª Vara da Infância e Juventude de São Luís, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública do Núcleo da Infância e Juventude e pela Fundação da Criança e do Adolescente, os quais fixaram que os adolescentes apreendidos em flagrante devem ser encaminhados ao Núcleo de Atendimento Inicial (NAI) para posterior apresentação ao Promotor de Justiça.
Por sua vez, no Mato Grosso do Sul, o Provimento nº 360, de 1º de março de 2016, alterando dispositivos do Provimento nº 352, de 1º de outubro de 2015, para estender a realização do ato aos adolescentes apreendidos pela prática de ato infracional
Nada obstante, a utilização das audiências de custódia para menores pelos demais Estados tem sido vista com cautela, dado o temor de se acarretar uma inversão tumultuária no rito da apuração do ato infracional, uma vez que a condução do adolescente à presença do magistrado pode transformar a regra da liberação imediata em circunstância excepcional.
A doutrina da proteção integral e da absoluta prioridade, implementadas pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no âmbito do direito infanto-juvenil, impõe que a restrição da liberdade do adolescente infrator seja determinada apenas em situações excepcionais.
O procedimento previsto para a apuração do ato infracional, em especial no que tange a oitiva indireta do adolescente, teve sua divergência instaurada a partir da implementação das audiências de custódia para adultos.
Nesse caminhar, passou-se a defender de um viés a expansão do instrumento para a Justiça da Infância e da Juventude a fim de garantir a celeridade do sistema e a mínima intervenção judiciária. Nada obstante, mencionada proposta não foi amplamente aceita no seio jurídico tendo em vista que o diploma juvenil estabelece explicitamente as regras a serem adotadas no caso de apreensão em flagrante de adolescente pela prática de ato infracional.
Sob esse prisma, observou-se que alguns Estados já implementaram a audiência de custódia para menores, enquanto outros se mostram receosos de sua adoção tumultuar o andamento do procedimento afeto à responsabilização do adolescente.
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Pós-Graduada em Direito Ambiental – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Constitucional – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Penal – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Sanitário – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito da Criança e do Adolescente – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Difuso e Coletivo– Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Público – Anhanguera Uniderp. Pós-Graduada em Direito Processual Penal – Escola do Ministério Público de Santa Catarina. Pós-Graduada em Direito Processual Civil – Damásio Educacional. Bacharel em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIMONI, Lanna Gabriela Bruning. A (des)necessidade da realização da audiência de custódia no procedimento de apuração de ato infracional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jun 2020, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54812/a-des-necessidade-da-realizao-da-audincia-de-custdia-no-procedimento-de-apurao-de-ato-infracional. Acesso em: 22 nov 2024.
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