No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro coube à Emenda Constitucional nº 19, de 1998, elevar o princípio da eficiência ao rol do artigo 37, o qual prevê que a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A par disso, a doutrina administrativista esclarece quanto à necessidade de aperfeiçoamento do modelo de gestão pública gerencial decorrente do princípio da eficiência – com foco nos resultados – conforme se observa abaixo:
O aspecto mais relevante do princípio da eficiência, neste sentir, será justamente o destaque que determina, do ponto de vista jurídico, à introdução na Administração Pública de técnicas de gestão de resultados e um dever jurídico geral de conduta finalística, conduzida ao interesse público, por parte dos agentes públicos. Neste sentido, explicita, destaca, mas não inova. Nem por isso, contudo, será menos importante, porquanto remeterá à necessária ideia de adequação das estruturas da Administração (redução/otimização da estrutura estatal), bem como das condutas dos agentes públicos, seus deveres específicos conaturais à gestão pública, o conteúdo de seus deveres funcionais (orientados a objetivos de interesse público), a avaliação de cumprimento de tais deveres, assim como a redefinição do modelo de remuneração e garantias funcionais.[1]
Igualmente, essa preocupação com o alcance de metas não passou despercebida por outras referências do direito administrativo brasileiro, como adiante se transcreve:
O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.[2]
Nesse contexto, na presente reflexão não se parte de uma premissa diversa da acima exposta no que concerne ao objetivo constitucional de maximização de resultados no âmbito da Administração Pública. Essa é uma coluna basilar da gestão pública que se pretende ver alinhada aos anseios da população brasileira, tão carente de serviços públicos essenciais de qualidade.
O que se buscará, em breves linhas, é descortinar a deturpação do princípio da eficiência quando se trata de teletrabalho.
Fixadas essas premissas, o cenário decorrente da pandemia do COVID19 confirmou uma tendência mundial, qual seja a adoção do teletrabalho. Essa situação do home office, não obstante a crise de saúde pública hodierna, já era aceita como ferramenta de gestão em várias áreas do setor privado e, também, público.
A título de exemplo, em 2019, o teletrabalho de tão atual e consolidado no setor estatal levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – antes mesmo da pandemia – a consolidar a possibilidade de home office para servidores públicos domiciliados no exterior.[3]
Essa permissividade do trabalho remoto, aliás, mostra-se alinhada ao princípio da eficiência na medida em que traz diversos benefícios para a Administração Pública, bem como ao próprio servidor público.
Como medida exemplificativa, segundo a Instrução Normativa (IN) nº 65, de 30 de julho de 2020[4], o teletrabalho promove a gestão da produtividade e da qualidade das entregas dos participantes; contribui com a redução de custos no Poder Público (combustível, frota veicular, espaço físico, etc.); atrai e mantém novos talentos; contribui para a motivação e o comprometimento dos participantes com os objetivos da instituição; estimula o desenvolvimento do trabalho criativo, da inovação e da cultura de governo digital; melhora a qualidade de vida dos participantes; gera e implementa mecanismos de avaliação e alocação de recursos; e promove a cultura orientada a resultados, com foco no incremento da eficiência e da efetividade dos serviços prestados à sociedade.
Ocorre, porém, que tem se tornado comum a criação de um pré-requisito para a implantação do teletrabalho nas diversas searas da Administração Pública direta e indireta, qual seja um adicional percentual de produtividade quantitativa dos servidores públicos, conforme dispõe a IN nº 65/2020:
Art. 10. O dirigente da unidade deverá editar ato normativo que estabeleça os procedimentos gerais de como será instituído o programa de gestão na unidade, que deverá conter:
[...]
VI - o percentual mínimo e máximo de produtividade adicional dos participantes em teletrabalho em relação às atividades presenciais, caso a unidade opte por essa fixação;
Nessa toada, é importante ressaltar que se mostra preocupante a criação desta exigência – majoração quantitativa de produtividade – como condicionante para a adesão e manutenção no regime de teletrabalho. Embora a norma acima disponha que o adicional não é compulsório, mas facultativo “caso a unidade opte por essa fixação” (inciso VI, do artigo 10 da IN nº 65/2020), na prática esse aumento tem se tornado a regra.
Exemplificativamente, a IN nº 681/2019 que instituiu, a título de experiência-piloto, as Centrais Especializadas de Alta Performance no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como Programa de Gestão na modalidade de teletrabalho, já dispunha que o incremento de produtividade e de desempenho percentual seria de, no mínimo, 30% (trinta por cento) superior ao previsto para o servidor público em regime de trabalho presencial:
Art. 7º Ficam instituídas, a título de experiência-piloto, pelo prazo de 12 (doze) meses, as seguintes CEAPs, nos termos do Plano de Trabalho, constante do Anexo desta Resolução:
[...]
§ 4º O Plano de Trabalho deverá conter:
I - o incremento de produtividade e de desempenho em percentual no mínimo 30% (trinta por cento) superior ao previsto para o servidor em regime de trabalho presencial;[5]
A partir dessa perspectiva é urgente pontuar que a majoração obrigatória de produtividade quantitativa poderá causar diversos prejuízos não apenas ao serviço público, mas também ao ocupante do cargo público.
No que se refere ao serviço público é possível observar que essa exigência – criada numa visão deturpada do princípio da eficiência – focaliza muito mais o aspecto quantitativo do volume de tarefas, em detrimento do fator qualitativo.
A título de exemplo, a criação de uma meta adicional mínima nesse percentual acima poderá conduzir a trabalhos realizados de modo negligente, haja vista a impossibilidade material e humana de fazer frente a um acréscimo gigantesco de tarefas, a médio e longo prazo, com o mesmo padrão de qualidade. Ou mesmo gerar um desinteresse dos servidores públicos quanto à adesão ao novel regime diante de tamanho aumento de atribuições com risco até mesmo de punição disciplinar – frustrando a implantação dessa importante ferramenta de gestão pública.
Como se sabe, aliás, o serviço público há tempos demonstra desgaste e falta de aparelhamento suficiente para as exigências sociais, além de carências de pessoal. Portanto, ainda que a curto prazo se mostre falaciosamente viável uma majoração abrupta de produtividade quantitativa sob a ótica da Administração Pública, este modelo não se sustentará a médio e longo prazo, inclusive pela inevitável repetição de equívocos que o assoberbamento de tarefas ocasionará com possíveis danos a terceiros e ao erário.
Além do mais, essa majoração poderá frustrar a própria realização do princípio constitucional do concurso público, na medida em que a Administração Pública venha a se valer dessa ferramenta (teletrabalho) como maneira de forçar um desgastante aumento da produtividade quantitativa individual do servidor público ao ponto de frustrar a realização dos certames. Uma espécie de enriquecimento sem causa da Administração Pública, acrescida, ainda, da real caracterização de redutibilidade remuneratória (aumento de trabalho sem aumento de contraprestação financeira) dos servidores públicos sujeitos ao teletrabalho.
Esse apontado assoberbamento gerará problemas de saúde física e mental aos servidores públicos, haja vista as exigências cada vez maiores por metas e produtividade como condicionante para a adesão ou manutenção no regime de home office. Imposições essas que conduzirão a práticas de assédio moral e doenças psicossomáticas geradoras de licenças médicas, readaptações ou mesmo aposentadorias por invalidez.
Nesse contexto, fica evidente que a postura adotada pela Administração Pública ao normatizar o teletrabalho com ênfase em obrigatoriedade de produção quantitativa adicional se mostra inadequada.
Ao revés, a Administração Pública moderna deveria se valer cada vez mais de consensos em busca de aspectos qualitativos e não majoritariamente quantitativos. A quantidade pode vir como consequência de um trabalho humano valorizado na perspectiva da qualidade. Se é certo que números inexpressivos não atendem aos reclames da sociedade, também o é que os exorbitantes possuem custos sofríveis para os obrigados a atingi-los. Os números não podem suplantar as pessoas, porque estas não merecem se transformar em estatísticas.
Para responder às demandas sociais infinitas, complexas e mutantes, o poder criativo humano é a solução, com o toque essencial da sensibilidade.
Não o percentual. Não a estatística. Não a métrica pura.
Por exemplo, é possível que um determinado servidor público possua o costume de praticar diversos atos administrativos reiterados, porém não tenha o hábito de refletir acerca das consequências de suas ações administrativas. Isto porque a exigência que a ele tem sido feita – na ótica obtusa da produtividade centrada no aspecto quantitativo – não lhe garante tempo para pensar no melhoramento ou criação de outras soluções administrativas.
Nem sempre exigir do servidor público que aumente a sua produtividade individual no aspecto quantitativo se traduzirá em ganho real (eficiência administrativa) para o setor público. Um exemplo claro disto é a interposição de recursos judiciais incabíveis por membros da advocacia pública. Analisada a ótica da majoração de produtividade no quesito quantitativo, bastaria ao advogado público interpor, no mínimo, 30% (trinta por cento) a mais de recursos ao Poder Judiciário para assegurar um falacioso êxito estatal. No entanto, a melhor solução para a Administração Pública poderia ser a desistência dessas irresignações com a melhoria de estratégias de caráter preventivo de conflitos, tudo isto a partir de uma autocrítica.
A vírgula e o ponto existem porque é preciso haver pausas. Uma ideia corrida é ininteligível. No mundo do trabalho também se verifica essa regra. Quando não se reflete acerca do caminho traçado fica inviável corrigir o curso. Nem sempre fazer muito é fazer mais. O muito pode desabrochar do pouco, depende de como a força humana é empregada.
Isto é, o ganho de produtividade que se deve buscar no regime de teletrabalho não passa pela ênfase em aspectos de quantidade (volume), mas sim em melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados à população. E, para isto, os planos de trabalho de servidores públicos sujeitos ao regime de home office precisam estimular os comportamentos reflexivos de conduta e uma constante autocrítica da função administrativa que se desenvolva justamente no tempo economizado entre o trajeto residência/trabalho, por exemplo.
É comum no serviço público que se siga o caminho existente. Alguém, algum dia, resolveu que seria dessa maneira. Então, todos os demais passaram décadas seguindo a mesma linha. Poucos pararam para refletir sobre o que se fez – e faz –ano após ano. Ao final de décadas se repetiram condutas que poderiam ser evitadas, bastaria um mero ato de reflexão. Mas não há que se falar em pensar quando o foco é executar. Execução, porém, não pode preceder ao planejamento. E este pressupõe o pensar. O pensamento é o pressuposto do agir eficiente.
Seria, à toda evidência, um verdadeiro desperdício de talento dos servidores públicos implantar regimes de teletrabalho sob a ótica de imposições quantitativas, ao invés de fomentar o exercício de soluções criativas, aproveitando o menor desgaste que o servidor público terá – já que dele fora retirado um peso de se deslocar ao ambiente de trabalho cotidianamente – para lhe proporcionar um momento de despertar sensitivo quanto aos problemas e possíveis soluções atuais e futuras.
Enfim, é preciso que essa reflexão passe a ser realizada no âmbito do setor público – e também privado – na medida em que o teletrabalho não poderá se tornar uma nova maneira de aprisionamento do poder criativo do ser humano. O momento é de estimular a liberdade profissional, buscando realizar a construção de uma produtividade qualitativa a partir de constantes diálogos e capacitações, pois mais importante que a quantidade de tempo é o tempo de qualidade.
Uma solução bem construída no âmago do agir criativo do servidor público multiplicará não apenas tempo e quantidade, mas consenso e satisfação ao destinatário do serviço público. O teletrabalho precisa ser formatado num modelo sustentável a médio e longo prazo. Partindo dessa premissa, não é esgotar um ser humano em trabalho extenuante de curto prazo para que entregue mais ao seu semelhante em troca de seu bem-estar de médio e longo prazo, mas sim potencializar a sua condição laborativa em busca da entrega de seu melhor, não necessariamente em maior quantidade e sim em maior valor humano agregado.
Isso é eficiência administrativa.
[1] MIRAGEM, Bruno. A nova Administração Pública e o direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 43
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2006, p. 98.
[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/servidores-do-judiciario-poderao-trabalhar-do-exterior/>. Acesso em: 02 ago. 2020.
[4] BRASIL. Ministério da Economia. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-65-de-30-de-julho-de-2020-269669395>. Acesso em: 02 ago. 2020.
[5] BRASIL. Ministério da Economia. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-681-de-24-de-maio-de-2019-133124720>. Acesso em: 02 ago. 2020.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. O teletrabalho e a deturpação do princípio da eficiência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 ago 2020, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54996/o-teletrabalho-e-a-deturpao-do-princpio-da-eficincia. Acesso em: 22 nov 2024.
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