RESUMO: O Supremo Tribunal Federal possui entendimento firmado no sentido de que inexiste imposição constitucional para a criação de órgãos de advocacia pública municipal. Consequentemente, os municípios que não possuem procuradorias próprias podem contratar advogados/escritórios de advocacia para a prestação de serviços jurídicos, inclusive de caráter rotineiro. O presente estudo busca investigar se semelhante contratação exige a deflagração de procedimento licitatório ou, ao revés, a inexigibilidade de licitação é admitida no ordenamento jurídico para tal fim.
Palavras chave: Municípios. Procuradorias. Serviços advocatícios. Licitação. Inexigibilidade de licitação. Supremo Tribunal Federal.
1 – Introdução
A Constituição da República de 1988, no capítulo destinado às funções essenciais à Justiça, trouxe seção própria para tratar da advocacia pública no âmbito da União, dos Estados e do Distrito Federal (arts. 131 e 132). Por outro lado, inexiste previsão explícita de procuradorias municipais no texto constitucional.
De acordo com André Ramos Tavares, tal omissão significa que a procuradoria municipal “não foi contemplada pela Constituição como instituição obrigatória”, tendo em vista a “realidade de municípios que não teriam como arcar com um quadro de advogados públicos permanentes” (TAVARES, 2010, p. 1.356).
Nessa linha, há alguns anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) possui o entendimento prevalecente de que inexiste imposição constitucional para a criação de órgãos de advocacia pública municipal (STF, Plenário, RE 225777, Rel. p/ Acórdão Min. Dias Toffoli, julg. em 24/02/2011; STF, 2ª Turma, RE 893694 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julg. em 21/10/2016).
Recentemente, a Corte Suprema reafirmou essa jurisprudência. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.331/PE, promoveu-se a análise de constitucionalidade dos §§ 1º e §3º do art. 81-A da Constituição do Estado de Pernambuco. Esses dispositivos determinavam a criação de procuradorias para o assessoramento, a consultoria jurídica, a representação judicial e a representação extrajudicial dos municípios pernambucanos, com a opção “da instituição de quadro de pessoal composto por procuradores em cargos permanentes efetivos ou da contratação de advogados ou sociedades de advogados”. Ao final, o STF proferiu acórdão assim ementado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO ADMINISTRATIVO. CONVERSÃO DA APRECIAÇÃO DA MEDIDA CAUTELAR EM JULGAMENTO DEFINITIVO DE MÉRITO. ART. 81-A DA CARTA ESTADUAL PERNAMBUCANA. INTERPRETAÇÃO QUE PERMITE OBRIGATORIEDADE DE INSTITUIÇÃO DE PROCURADORIA NOS MUNICÍPIOS. OFENSA À AUTONOMIA MUNICIPAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. NORMA QUE PERMITE A CONTRATAÇÃO DE ADVOGADOS PARTICULARES PARA A EXECUÇÃO DE ATRIBUIÇÕES DO ÓRGÃO DE ADVOCACIA PÚBLICA. EXCEPCIONALIDADE. VIOLAÇÃO À REGRA CONSTITUCIONAL DO CONCURSO PÚBLICO. ARTS. 37, CAPUT E INCISO II, 131 E 132 DA CRFB/88. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. A instituição de Procuradorias municipais depende da escolha política autônoma de cada município, no exercício da prerrogativa de sua auto-organização. 2. É inconstitucional a interpretação de norma estadual que conduza à obrigatoriedade de implementação de Procuradorias municipais, eis que inexiste norma constitucional de reprodução obrigatória que vincule o poder legislativo municipal à criação de órgãos próprios de advocacia pública. Precedentes. 3. É materialmente inconstitucional dispositivo de Constituição Estadual que estabeleça a possibilidade de contratação direta e genérica de serviços de representação judicial e extrajudicial, por ferir a regra constitucional de concurso público. 4. Realizada a opção política municipal de instituição de órgão próprio de procuradoria, a composição de seu corpo técnico está vinculada à incidência das regras constitucionais, dentre as quais o inafastável dever de promoção de concurso público (artigo 37, inciso II, da Constituição Federal). 5. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga parcialmente procedente para: (i) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 81-A, caput, da Constituição do Estado de Pernambuco, no sentido de que a instituição de Procuradorias municipais depende de escolha política autônoma de cada município, no exercício da prerrogativa de sua auto-organização, sem que essa obrigatoriedade derive automaticamente da previsão de normas estaduais; (ii) declarar a inconstitucionalidade do § 1º e do § 3º art. 81-A da Constituição do Estado de Pernambuco, tendo em vista que, feita a opção municipal pela criação de um corpo próprio de procuradores, a realização de concurso público é a única forma constitucionalmente possível de provimento desses cargos (art. 37, II, da CRFB/88), ressalvadas as situações excepcionais situações em que também à União, aos Estados e ao Distrito Federal pode ser possível a contratação de advogados externos, conforme os parâmetros reconhecidos pela jurisprudência desta Corte. (ADI 6331, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 09-04-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 24-04-2024 PUBLIC 25-04-2024)
Em suma, portanto, o Supremo Tribunal Federal reiterou que a Constituição da República não prevê a obrigatoriedade de instituição de procuradorias municipais. Todavia destacou que, caso instituído o órgão, o provimento dos seus cargos deve dar-se mediante prévia aprovação em concurso público. Ou seja, nessa hipótese, é vedada a contratação direta e genérica de advogados pelos entes municipais, sem prejuízo da existência de situações excepcionais que autorizam a contratação de advogados externos para o patrocínio de causas específicas, tal como ocorre na esfera da União, dos Estados e do Distrito Federal.
A contrario sensu, nos municípios onde inexistir a instituição de procuradorias próprias, a jurisprudência do STF valida a contratação genérica de advogados, inclusive para o desempenho de atividades jurídicas rotineiras, como, por exemplo, o ajuizamento de execuções fiscais ou a emissão de pareceres analisando a legalidade de licitações destinadas à contratação de bens e serviços comuns.
Ora, o art. 3º-A da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB) dispõe que “os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei”. A questão que se coloca, diante disso, é a seguinte: poderiam os municípios contratar renomados advogados/escritórios de advocacia, por inexigibilidade de licitação, para o desempenho de atividades jurídicas rotineiras, na hipótese de não possuírem órgão de advocacia pública?
2 – A contratação de advogados sob a égide da Lei nº 8.666/1993
O art. 37, XXI, da Constituição da República determina que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações da Administração Pública devem ser contratados mediante processo de licitação. Constata-se, assim, que a regra geral é a realização de procedimento licitatório, porém o legislador possui razoável margem de liberdade para a conformação dos casos de inexigibilidade e dispensa de licitação. Contudo, sob pena de ofensa à norma constitucional, as hipóteses de contratação direta não podem ser excessivamente alargadas a ponto de tornar a licitação exceção, em vez de regra geral.
O primeiro diploma a prever os casos de inexigibilidade e dispensa de licitação, após a promulgação da Constituição da República de 1988, foi a Lei nº 8.666/1993. A inexigibilidade diz respeito a situações em que há inviabilidade de competição, seja em virtude da exclusividade do fornecedor (impossibilidade fática), seja em razão da inexistência de critérios objetivos para a definição da melhor proposta (impossibilidade jurídica). Por outro lado, na dispensa de licitação, existe viabilidade de competição, mas a lei admite que a contratação direta pode ser apta, a critério do administrador, a atender o interesse público de forma mais célere e eficaz (OLIVEIRA, 2023, p. 445 e 464).
Uma das hipóteses de inexigibilidade de licitação previstas na Lei nº 8.666/1993 era a contratação de serviços técnicos profissionais, tais como o patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização (art. 13, V, c/c art. 25, II).
Sob a égide da Lei nº 8.666/1993, portanto, a contratação de advogados pela Administração Pública, por inexigibilidade de licitação, exigia a singularidade do objeto e a notória especialização dos profissionais contratados. Nesse sentido, vale reproduzir a Súmula nº 252 do Tribunal de Contas da União:
SÚMULA TCU 252: A inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos, a que alude o art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993, decorre da presença simultânea de três requisitos: serviço técnico especializado, entre os mencionados no art. 13 da referida lei, natureza singular do serviço e notória especialização do contratado.
Nas lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a natureza singular do serviço estaria presente sempre que “a complexidade, a relevância, os interesses públicos em jogo” tornassem necessária a “contratação com profissional notoriamente especializado” (DI PIETRO, 2005, p. 332). Em outras palavras, a singularidade ligar-se-ia à complexidade e especificidade do objeto (TORRES, 2023, p. 443). Já a notória especialização possuía definição legal, atrelando-se ao “profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato” (art. 25, §1º, da Lei nº 8.666/1993).
Destarte, à luz da Lei nº 8.666/1993, a contratação de advogados para o desempenho de atividades jurídicas rotineiras, sem elevado grau de complexidade ou relevância, não poderia ser feita por inexigibilidade de licitação, em virtude da inexistência de singularidade do objeto.
3 – A posição da OAB e a aprovação da Lei nº 14.039/2020
Em posição minoritária, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sempre sustentou a inviabilidade de competição para a contratação de serviços advocatícios. Em sua visão, a singularidade do objeto estaria atrelada à relação de confiança entre advogado e seu contratante, e não às características objetivas da contratação em si.
Em 2012, seguindo essa linha, o órgão colegiado máximo do Conselho Federal da OAB aprovou a Súmula nº 05/2012/COP, com o seguinte teor:
ADVOGADO. CONTRATAÇÃO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. Atendidos os requisitos do inciso II do art. 25 da Lei nº 8.666/93, é inexigível procedimento licitatório para contratação de serviços advocatícios pela Administração Pública, dada a singularidade da atividade, a notória especialização e a inviabilização objetiva de competição, sendo inaplicável à espécie o disposto no art. 89 (in totum) do referido diploma legal.
Alguns anos mais tarde, o Conselho Federal da OAB propôs a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 45, tendo por objeto os arts. 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993. Basicamente, intentava o conselho profissional fazer prevalecer seu entendimento no sentido de que a “subjetividade intrínseca aos critérios de notória especialização e singularidade, impedem sua determinação nos casos de competição entre advogados, o que impossibilita a instauração de procedimento licitatório” (sic), bem como de que a contratação de serviços advocatícios pelo Poder Público é “ato discricionário em essência, com fundamento na vedação da mercantilização da atividade advocatícia e na confiabilidade existente nessa relação profissional”.[1]
A Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 45 ainda não foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal, porém tudo indica que o processo objetivo será extinto, sem apreciação de mérito, haja vista a revogação da Lei nº 8.666/1993.
Seja como for, a Lei nº 14.039/2020 trouxe significativo acréscimo à Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da OAB), cujo art. 3º-A passou a prever:
Art. 3º-A. Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.
Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
Inicialmente, a propositura legislativa foi vetada pelo Presidente da República, sob o fundamento de que considerar todos os serviços advocatícios técnicos e singulares violaria “o princípio constitucional da obrigatoriedade de licitar, nos termos do inciso XXI, do art. 37 da Constituição da República, tendo em vista que a contratação de tais serviços por inexigibilidade de processo licitatório só é possível em situações extraordinárias”. Contudo, o Congresso Nacional rejeitou o integralmente veto, levando à promulgação da citada Lei.
Vale registrar que a alteração normativa foi questionada, pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.569/DF. No entanto, o processo foi extinto sem julgamento de mérito, sob o fundamento de ilegitimidade ativa ad causam.
Portanto, pela literalidade da atual redação do Estatuto da OAB, todos os serviços profissionais de advogado passaram a ser considerados, em essência, técnicos e singulares.
4 – A inexigibilidade de licitação na Lei nº 14.133/2021
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) disciplinou a contratação, por inexigibilidade, de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual do seguinte modo:
Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:
[...]
III - contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação:
a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos ou projetos executivos;
b) pareceres, perícias e avaliações em geral;
c) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
d) fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;
e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
g) restauração de obras de arte e de bens de valor histórico;
h) controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem no disposto neste inciso;
IV - objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento;
V - aquisição ou locação de imóvel cujas características de instalações e de localização tornem necessária sua escolha.
[...]
§ 3º Para fins do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se de notória especialização o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
Observa-se que o novo diploma excluiu a exigência de “natureza singular” dos serviços técnicos para sua contratação direta. Ademais, chama a atenção que a Lei nº 14.133/2021 modificou o conceito de notória especialização, considerando-a presente quando a trajetória do profissional no campo de sua especialidade “permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Corrigiu-se, assim, o excesso constante na Lei nº 8.666/1993, que exigia ser o profissional “indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”.
José dos Santos Carvalho Filho afirma que a expressão “natureza singular” constante na Lei nº 8.666/1993 “provocou mais polêmicas do que elucidações”, de modo que “em bom momento a lei vigente não a reproduziu” (CARVALHO FILHO, 2023, p. 221).
Sem embargo, a supressão do requisito da singularidade pode gerar dúvidas sobre a interpretação da hipótese de inexigibilidade prevista no art. 74, III, da Lei nº 14.133/2021 (OLIVEIRA, 2023, p. 470).
Ronny Charles Lopes de Torres pondera que “tendo em vista a evidente supressão deste requisito, pelo legislador, não deve o intérprete ignorar este fato para sublimar a vontade do legislador, impondo a sua” (TORRES, 2023, p. 444).
Não obstante, parece-nos que assiste razão a Rafael Carvalho Rezende Oliveira, ao afirmar que a ausência de menção à singularidade do serviço técnico não acarreta maiores consequências práticas (OLIVEIRA, 2023, p. 470). “Não se trata de ignorar a alteração redacional adotada pela Lei 14.133/2021”, como bem observa Marçal Justen Filho, “mas de reconhecer que a inviabilidade de competição decorre de circunstâncias específicas e diferenciadas” (JUSTEN FILHO, 2023, p. 1023).
Cumpre atentar para o fato de que o inciso III do art. 74 da Lei nº 14.133/2021 deve ser lido à luz do seu caput. A partir dessa contextualização, fica evidente que somente é inexigível a licitação nas situações em que for inviável a competição. Essa inviabilidade, em se tratando de serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual, diz respeito à ausência de critérios objetivos de julgamento.
Na contratação de serviços rotineiros, despidos de complexidade ou especificidade que os possa individualizar, é plenamente possível a competição baseada em parâmetros objetivos. Por maior que seja a notória especialização do profissional, os seus serviços não se distinguirão significativamente dos demais no desempenho de atividades corriqueiras, cuja execução independe de técnica refinada.
Logo, a supressão da exigência de “natureza singular” não elide a necessidade de demonstração da complexidade e especificidade do objeto da contratação.
5 – A questão da contratação dos serviços advocatícios
Consoante mencionado, o art. 3º-A da Lei nº 8.906/1994 qualificou todos os serviços profissionais de advogado como técnicos e singulares, em razão de sua própria natureza. Diante disso, surgiram entendimentos no sentido da desnecessidade de procedimento licitatório para a contratação de serviços jurídicos, independentemente das atividades a serem desempenhadas. Bastaria, sob essa perspectiva, que o advogado ou a sociedade de advogados possuíssem notória especialização para justificar sua contratação por inexigibilidade de licitação.
Seguindo essa linha hermenêutica, há julgados proferidos pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, como o ilustrado abaixo:
REPRESENTAÇÃO. PREFEITURA MUNICIPAL. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS TÉCNICOS DE CONSULTORIA EM ÁREA CONTÁBIL, ADMINISTRATIVA, FINANCEIRA E DE GESTÃO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. SINGULARIDADE E NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO. LEI N. 14.039/2020. REGULAR. SISTEMA DE CREDENCIAMENTO. POSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS QUE REGEM AS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS. PROCEDÊNCIA PARCIAL. APLICAÇÃO DE MULTA. DETERMINAÇÃO. ARQUIVAMENTO.1. Considerando as recentes alterações trazidas pela Lei n. 14.039/2020, segundo a qual os serviços profissionais de advogado e contador são, por sua natureza, técnicos e singulares, aliada à demonstração da notória especialização, não há que se falar em irregularidade da contratação dos serviços técnicos de consultoria em área contábil, administrativa, financeira e de gestão em administração pública, nos termos do art. 25, II, da Lei n. 8.666/1993.2. A não observância, pelo agente público, das exigências insculpidas na lei licitatória para a realização das contratações públicas mediante certames licitatórios ou procedimentos de dispensas e inexigibilidades, poderá ensejar a aplicação de multa pessoal por este Tribunal de Contas.3. É regular a utilização do sistema de credenciamento, que se perfaz por meio de inexigibilidade licitatória, com base no caput do art. 25 da Lei n. 8.666/93, sempre que o interesse público necessitar obter o maior número possível de particulares realizando a prestação do serviço, considerando que a necessidade da Administração não restará atendida com a contratação de apenas um particular, desde de que sejam observadas as exigências pré-estabelecidas no edital, com estrito cumprimento ao disposto no art. 26 da Lei 8.666/93 e aos princípios que regem os procedimentos licitatórios e as contratações públicas, em especial, os princípios da publicidade, isonomia e impessoalidade. [REPRESENTAÇÃO n. 986740. Rel. CONS. SEBASTIÃO HELVECIO. Sessão do dia 01/12/2020. Disponibilizada no DOC do dia 13/01/2021. PRIMEIRA CÂMARA]
Em semelhante aplicação do Estatuto da OAB, alterado pela Lei nº 14.039/2020, o Superior Tribunal de Justiça também já decidiu que “considerando que o serviço de advocacia é por natureza intelectual e singular, uma vez demonstrada a notória especialização e a necessidade do ente público, será possível a contratação direta” (trecho do voto vencedor proferido no AgRg no HC n. 669.347/SP). Vale conferir a ementa abaixo:
AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PENAL. ART. 89 DA LEI N. 8.666/1993. AÇÃO PENAL. PREFEITO MUNICIPAL. CONTRATAÇÃO DIRETA DE ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. REQUISITO DE SINGULARIDADE DO SERVIÇO SUPRIMIDO PELA LEI N. 14.133/2021. CARÁTER INTELECTUAL DO TRABALHO ADVOCATÍCIO. PARECER JURÍDICO FAVORÁVEL. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E DE EFETIVO PREJUÍZO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. A consumação do crime descrito no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, agora disposto no art. 337-E do CP (Lei n. 14.133/2021), exige a demonstração do dolo específico de causar dano ao erário, bem como efetivo prejuízo aos cofres públicos.
2. O crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 é norma penal em branco, cujo preceito primário depende da complementação e integração das normas que dispõem sobre hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitações, agora previstas na nova Lei de Licitações (Lei n. 14.133/2021).
3. Dado o princípio da tipicidade estrita, se o objeto a ser contratado estiver entre as hipóteses de dispensa ou de inexigibilidade de licitação, não há falar em crime, por atipicidade da conduta.
4. Conforme disposto no art. 74, III, da Lei n. 14.133/2021 e no art. 3º-A do Estatuto da Advocacia, o requisito da singularidade do serviço advocatício foi suprimido pelo legislador, devendo ser demonstrada a notória especialização do agente contratado e a natureza intelectual do trabalho a ser prestado.
5. A mera existência de corpo jurídico próprio, por si só, não inviabiliza a contratação de advogado externo para a prestação de serviço específico para o ente público.
6. Ausentes o dolo específico e o efetivo prejuízo aos cofres públicos, impõe-se a absolvição do paciente da prática prevista no art. 89 da Lei n. 8.666/1993.
7. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no HC n. 669.347/SP, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 13/12/2021, DJe de 14/2/2022.)
Entretanto, convém ponderar que a “natureza singular” do objeto da contratação não mais constitui requisito para a inexigibilidade de licitação, mas, apesar disso, permanece a necessidade de demonstração de sua complexidade e especificidade. Isso porque, como argumentado acima, o caput do art. 74 da Lei nº 14.133/2021 é claro ao afirmar que somente é inexigível a licitação nas situações em que for inviável a competição. Havendo possibilidade de competição com critérios objetivos, como invariavelmente se verifica na contratação de serviços rotineiros ou comuns, é imperiosa a deflagração de procedimento licitatório, salvo hipóteses de dispensa. Logo, dado que a singularidade do objeto não é mencionada na Nova Lei de Licitações, perde relevância a qualificação legal dos serviços de advogados como técnicos e singulares. Mais importante é aferir a possibilidade de competição baseada em critérios suficientemente objetivos.
Além disso, o próprio parágrafo único do art. 3º-A do Estatuto da OAB define a notória especialização como aquela que, baseada na trajetória do profissional, “permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Ora, o trabalho de notório advogado seria essencial ou indiscutivelmente o mais adequado para desempenhar serviço jurídico simples, desprovido de complexidade e especificidade, tal como o ajuizamento de execução fiscal? A resposta, em regra, só pode ser negativa.
Na realidade, a depender da natureza dos serviços jurídicos, é plenamente possível a competição com julgamento objetivo, o que acaba por atrair a obrigatoriedade de licitação.
Não se pode ignorar, contudo, que serviços aparentemente simples podem esconder peculiaridades, como explica Marçal Justen Filho:
“As hipóteses de inviabilidade de competição para a seleção do prestador de serviços advocatícios são muito variadas. Podem configurar-se em virtude da complexidade da questão, da especialidade da matéria, da sua relevância econômica, do local em que se exercitará a atividade, do grau de jurisdição, da quantidade de processos ou de atos processuais a serem praticados e assim por diante. A complexidade das questões processuais impede adotar um elenco exaustivo para as circunstâncias que produzem a inviabilidade de competição no âmbito da atividade advocatícia.” (JUSTEN FILHO, 2023, p. 1029)
Portanto, assiste razão a Fabrício Motta ao defender que o quadro jurídico “impõe maior atenção à proporcionalidade dos objetos a serem contratados mediante inexigibilidade, em cada caso concreto”. Isto é, o administrador público necessita sopesar as consequências práticas de sua decisão, avaliar as possíveis alternativas, analisar a necessidade e adequação da contratação por inexigibilidade, bem como ponderar os custos e benefícios da contratação de profissional com notória especialização (MOTTA, 2022, p. 266/267).
Seja como for, voltando ao tema inicial da contratação de advogados/escritórios de advocacia por municípios sem procuradorias próprias, não resta a menor dúvida de que os serviços jurídicos rotineiros devem ser contratados mediante licitação. Sem prejuízo disso, excepcionalmente, serviços específicos podem ser contratados mediante procedimento de inexigibilidade, caso se constate a inviabilidade de competição no caso concreto. Isso se dará nas hipóteses em que a complexidade, especificidade ou peculiaridade das atividades demandem sua execução por profissional com notória especialização.
6 – Conclusão
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.331/PE, reafirmou sua jurisprudência no sentido de que a Constituição da República não prevê a obrigatoriedade de instituição de procuradorias municipais. Disso decorre que, em municípios sem procuradorias próprias, é legítima a contratação genérica de advogados, inclusive para o desempenho de atividades jurídicas rotineiras.
Durante a vigência da Lei nº 8.666/1993, a contratação de advogados por inexigibilidade de licitação somente era admitida para a prestação de serviços técnico-jurídicos, de natureza singular, por profissionais notoriamente especializados.
Com o claro intuito de ampliar as hipóteses de incidência da inexigibilidade de licitação, o Estatuto da OAB, com redação dada pela Lei nº 14.039/2020, passou a prever que os serviços advocatícios são, naturalmente, técnicos e singulares.
Posteriormente, a Lei nº 14.133/2021 retirou o requisito da natureza singular para a contratação de serviços técnicos de natureza predominantemente intelectual. Não obstante, permanece incabível a inexigibilidade de licitação em hipóteses em que seja possível a competição lastreada em critérios objetivos. Esse entendimento também vale para a contratação de serviços jurídicos.
Diante desse cenário, os municípios que não possuem procuradorias próprias são obrigados a deflagrar procedimentos licitatórios para a contratação de serviços advocatícios desprovidos de complexidade, relevância e especificidade que tornem imprescindível a sua execução por profissionais com notória especialização. Caso presente alguma dessas peculiaridades, é excepcionalmente cabível a inexigibilidade de licitação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 37ª edição. São Paulo: Atlas, 2023.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª edição. São Paulo: Atlas, 2005.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. 2ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
MOTTA, Fabrício. Contratação direta: inexigibilidade e dispensa de licitação. In: Licitações e Contratos Administrativos: inovações da Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Coordenação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 11ª edição. Rio de Janeiro: Método, 2023.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 14ª edição. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023.
[1] Trechos da petição inicial da ADC nº 45.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em Direito Administrativo e Licitações e Processo Civil (UCAM). Servidor efetivo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, Alysson Vasconcelos Silva. A contratação de serviços advocatícios por municípios sem procuradorias próprias: análise do (des)cabimento de inexigibilidade de licitação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 maio 2024, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/65391/a-contratao-de-servios-advocatcios-por-municpios-sem-procuradorias-prprias-anlise-do-des-cabimento-de-inexigibilidade-de-licitao. Acesso em: 22 nov 2024.
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