JAKELLINE NOGUEIRA PINTO
(coautora)
RESUMO. Este trabalho trata da análise sobre a aplicação das cotas raciais no Brasil. Para isso, estebeleceu-se como objetivo geral compreender a relevância das cotas raciais como instrumento social para a promoção da igualdade e oportunidade no contexto brasileiro. A partir desse propósito, realizou-se uma pesquisa de abordagem qualitativa e objetivo descritivo. Como procedimento para a coleta de dados, adotou-se uma revisão bibliográfica, utilizando-se livros, artigos científicos, dissertações e legislação brasileira sobre o tema. Após análise qualitativa dos resultados reunidos neste estudo, concluiu-se que a ação afirmativa, a exemplo do sistema de cotas, garante que a sociedade ofereça oportunidades para aqueles historicamente excluídos do sistema por causa de sua raça, etnia, renda ou identidade.
Palavras-chave: Ações afirmativas. Cotas raciais. Igualdade. Oportunidade.
SUMÁRIO. Introdução. 1. Princípio da igualdade, ações afirmativas e cotas raciais. 2. Cotas raciais no Brasil: lutas e resistências. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 positivou diversos direitos, enfatizando a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre todos. Essa permitiu aumentar a efetividade (ou eficácia social) do princípio da igualdade, que é um dos pilares do Estado de Direito. Nesse sentido, é preciso reconhecer e proteger os direitos fundamentais, a partir do aperfeiçoamento do regime democrático (PIOVESAN, 2015).
O princípio da igualdade admite conjunturas em que as pessoas possam ser tratadas de maneiras diferentes. É um meio de aplicar luz e razão às situações essencialmente desiguais existentes na sociedade brasileira. Esse fator de desigualdade social versa sobre a existência de uma correspondência lógica entre a discriminação e o objeto diferencial, que deve estar em conformidade aos princípios constitucionais. Trata-se, portanto, de uma discriminação positiva, conhecida também como ação afirmativa, que visa a concessão de benefícios para minorias, em um contexto de ações compensatórias, que, estando marginalizadas e excluídas da sociedade, estão em desvantagem social (ROSA, 2014).
As ações afirmativas podem ser entendidas como uma política que objetiva assegurar a igualdade de oportunidades individuais e busca superar todos os tipos de discriminação (ROSA, 2014). Dentre as diversas estratégias de ações afirmativas, destaca-se o sistema de reserva de vagas, que destina um percentual das vagas nas instituições de ensino públicas e privadas para grupos minoritários. Esse sistema de reserva de vagas pode ser entendido como uma política pública compensatória, uma vez que acaba por reparar uma dívida histórica com os grupos que sofrem recorrentemente com a exclusão (ROSA, 2014).
O debate sobre as cotas é intenso e perdura até hoje entre aqueles que defendem o sistema de reserva de vagas como um instrumento de efetivação da igualdade de oportunidades e aqueles que criticam tal sistema, compreendendo-o como uma prática que reforça as diferenças e a exclusão. Diante dessas questões, tem-se como problema de pesquisa a seguinte indagação: Qual a relevância das cotas raciais como instrumento social para a promoção da igualdade e oportunidade no contexto brasileiro?
Relacionado a essa dúvida de pesquisa, o objetivo deste estudo foi compreender a relevância das cotas raciais como instrumento social para a promoção da igualdade e oportunidade no contexto brasileiro. Já os objetivos específicos foram: refletir sobre o princípio da igualdade, as ações afirmativas e a cotas raciais e a constitucionalidade desta; analisar ideias e dados relevantes sobre as cotas raciais no Brasil, especialmente após a vigência da lei; estudar lutas e resistências sobre as cotas raciais no Brasil.
Ao considerar as características e objetivos deste trabalho, elegeu-se, dentro da pesquisa qualitativa, o método descritivo, que visa descrever determinada população ou fenômeno, compreendendo efetivamente as características de um indivíduo, uma situação, ou um grupo, bem como desvendar a relação entre os eventos (GIL, 2007).
A partir desses propósitos, convém destacar que o desenvolvimento da investigação ocorrereu a partir de uma revisão bibliográfica e estudo de legislação relacionada ao tema, a fim de dar suporte teórico às discussões e responder ao problema de pesquisa. A revisão bibliográfica foi realizada em bases de dados científicos como periódicos Capes e Scielo. Além disso, foram utilizados livros que trazem doutrina sobre o tema.
Compreende-se que a relevância de estudar este tema se encontra na necessidade de promover uma sociedade onde todos sejam tratados como cidadãos, sendo respeitos seus deveres e direitos. Nesse sentido, é extremamente importante que os formuladores de políticas e legisladores trabalhem para proteger o uso de políticas de admissão com consciência racial em todo o país. Caso contrário, a desigualdade continuará a persistir e o Estado brasileiro deixará de atender aqueles que mais poderiam se beneficiar.
1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE, AÇÕES AFIRMATIVAS E COTAS RACIAIS
O direito é um instrumento utilizado para garantia da justiça social. Sendo assim, ele sempre deve buscar uma solução para os conflitos que surgem na sociedade. Ocorre que a dinâmica da vida social faz com que, em muitos casos, não exista lei vigente para amparar determinada situação fática. Nesse contexto, os princípios surgem como entes balizadores das normas constitucionais e infraconstitucionais, ampliando a extensão da norma, para que seja sanada essa problemática.[1] Nessa linha, o professor Miguel Reale conceitua os princípios constitucionais:
Princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes, também se denominam princípios certas proposições, que apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários (REALE, 1986, p. 86).
Assim, na aplicação da lei ao caso concreto, deve-se observa não só a literalidade da lei, pois muitas vezes essa aplicação acaba por cometer injustiças, já que a dinâmica da vida faz surgir diversas situações na qual nem sempre há uma lei adequada ao caso para fazer justiça. Dessa forma, os princípios surgem como entes que orientam a correta aplicação da norma para se fazer justiça. Por isso, sobre os efeitos de sua inobservância, adverte Celso Antônio Bandeira de Mello:
Princípio - já averbamos alhures - é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalização do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo [...]. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que os sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada (MELLO, 2000, p. 747-748).
Do exposto, se observa a importância dos princípios jurídicos como entes garantidores dos direitos individuais e coletivos. Sua utilização e aplicação na interpretação da lei para a garantia de direitos é primordial. Sendo assim, sobre a eficácia e utilização dos princípios no direito vale trazer o entendimento de Carlos Eduardo de Freitas Fazolli.
Em primeiro lugar, os princípios têm função normativa. Sendo normas jurídicas, podem ser concretizados e geram direitos subjetivos. Têm, ao lado das regras, função normativa. Em segundo lugar, havendo uma lacuna jurídica, esta pode ser suprida com a utilização dos princípios. Encontramos aqui uma clara função integrativa em face das omissões legislativas. Finalmente, em terceiro lugar, têm função interpretativa, ou seja, condicionam a atividade do intérprete. Nenhuma interpretação pode ser efetivada sem que se leve em conta os princípios jurídicos (FAZOL, 2007, p. 18).
Caracterizada por Ulysses Guimarães como cidadã, a Constituição Federal de 1988, em seu próprio texto inicial, já se apresenta como instrumento de instituição da democracia e com o objetivo de garantir os direitos individuais e sociais. Nesse sentido, a Carta Magna apresenta como fundamentos da República a cidadania e a dignidade humana. A Constituição evidencia, portanto, que o único modo de corrigir as desigualdades, que sempre foram um problema no País, é por meio da Lei Maior, uma vez que determina que os desiguais sejam tratados desigualmente, na medida das duas desigualdades.
Dessa forma, considera-se como diretrizes basilares da República a construção de uma sociedade livre e justa, a garantia do desenvolvimento nacional, o combate e eliminação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades de ordem social e regional e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça, idade, sexo ou qualquer outra natureza (MELO, 2001). Por essa ótica, a Constituição não apenas proibiu, ao menos teoricamente, a discriminação de qualquer ordem, como descreveu como viabilizar a igualização dinâmica e eficaz, enfatizando a necessidade de garantir efetivamente as mesmas oportunidades a todos. Piovesan (2015, p. 31-32) destaca que:
O princípio da igualdade, entre nós, encontra-se expressamente consagrado pela Constituição Federal de 1988 já no seu preâmbulo, juntamente com o pluralismo, e princípios que estão implicados no adequado tratamento jurídico da igualdade ou que estão mais aptos a atender ao que se convencionou chamar de ações afirmativas, dignidade humana, de redução das desigualdades sociais, não discriminação, com valores expressos pelo inciso III do art. 1.º ou os incisos III e IV do art. 3.º da referida norma fundamental.
O Texto Constitucional não afirma apenas que a igualdade entre todos perante a lei, mas também determina que os indivíduos devem ser respeitados conforme suas desigualdades. Melo (2001, p. 88) salienta que:
O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamento desigual. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferentes plexos de obrigações e direitos.
O princípio da igualdade ou isonomia sinaliza que todos devem ser tratados de forma equiparada pela norma, sendo proibido qualquer forma de discriminação. Esse vem previsto taxativamente na Constituição brasileira de 1988, conforme artigo 5º, inciso I, onde dispõe que homens e mulheres são iguais em direito e obrigações. Porém, na prática, a literalidade da previsão do princípio da igualdade não é suficiente para fazer justiça em todos os casos, por isso a importância do direito analisar a igualdade nas suas duas formas, dinâmica e literal no texto da lei. A igualdade formal, portanto, é sua interpretação conforme o que consta na legislação. Ela é eficaz para algumas situações ou grupos.
A igualdade material, por sua vez, atua como importante instrumento de alcance de uma igualdade de fato, pois interpretando-a nesse sentido, consegue alcançar seu objetivo, uma vez que observa as diferenças de uma categoria nas quais a lei, em sentido literal, não seria capaz de suprir. Nesse sentido, a aplicação de políticas afirmativas e legislações especiais são um método para corrigir a deficiência legislativa nos direitos da população negra.
Vale ressaltar que essa diferença não é privilégio, se trata de verdadeira justiça para uma minoria que é excluída e sofre com preconceito a cada dia. Prova disso é que ainda não é comum observar negros ocupando grandes cargos públicos, chefias, representação de destaque na área política, enfim, destaque na sociedade. Isso mostra que, há muito tempo, essa etnia vive à margem da sociedade, sem posição ou oportunidade de fala na sociedade.
A vista disso, Ives Gandra da S Martins, Gilmar F Mendes e Carlos Valder Nascimento esclarecem sobre o princípio da isonomia:
O princípio da isonomia, que conforma o direito de igualdade como direito fundamental, basicamente em sua vertente de igualdade de oportunidades, expressa-se pela tradicional expressão: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida das suas desigualdades. Isso significa que a desigualdade de tratamento legal deve ter um elemento de discriminação com fundamento racional, ou seja, que se justifique racionalmente (MARTINS; MENDES; NASCIMENTO, 2012, p. 205).
Assim também, Paulo Lucena de Menezes e Dimitri Dimoulis lecionam (2007, p. 175): “A isonomia pode ser vislumbrada como um conceito comparativo que visa estabelecer um equilíbrio entre os membros da sociedade, de forma a assegurar, mesmo que indireta e parcialmente, a efetivação da ideia de justiça”.
Nesse sentido, dialogando com a concepção de Gomes (2001), entende-se que as ações afirmativas buscam consolidar a igualdade material e a minimizar os efeitos dos problemas discriminatórios por raça, gênero, etnia, orientação sexual, condição social e compleição física, compreendendo então tanto as manifestações discriminatórias evidentes como as estruturais.
No Brasil, as ações afirmativas despontaram com maior intensidade justamente com a Constituição Federal de 1988, que já estabeleceu uma reserva de “cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão” (BRASIL, 1988).
No campo educacional, a primeira iniciativa legal se deu por meio do Projeto de Lei nº 1.332/1983 (BRASIL,1983), que propôs o sistema de reserva de vagas nas universidades para negros. Nos anos seguintes, os debates sobre as ações afirmativas foram intensificados, por meio de proposições legislativas e articulações de diversos movimentos sociais sem resultados práticos.
Depois de inúmeras tentativas de efetivar as ações afirmativas no âmbito da educação, o sistema de reserva de vagas caminhou para a efetivação, quando o Poder Público reconheceu, em 2001, a necessidade de representação dos negros em todas as esferas da sociedade, aprovando o sistema de cotas.
Antes disso, porém, no ano 2000, foi aprovada a Lei nº 3.524/2000, que determinava a reserva de 40% das vagas aos candidatos negros e pardos nas universidades estaduais do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2000) e no ano seguinte, foi promulgada a Lei nº 3.708/2001 do Estado do Rio de Janeiro, que determinava a destinação de 50% das vagas disponíveis nos cursos de graduação de todas as universidades estaduais para estudantes oriundos de escolas públicas (RIO DE JANEIRO, 2001). Também em 2001, o governo paranaense promulgou a Lei Estadual nº 13.134/2001, posteriormente modificada pela Lei Estadual nº 14.995/2006, que assegurava três vagas, em cada uma das cinco universidades estaduais, para membros de grupos indígenas da região (PARANÁ, 2001).
Em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) passou a usar o sistema de cotas para negros e índios (MARCHESAN, 2018), sendo a primeira instituição federal de ensino superior a adotar essa ação afirmativa. A Lei Federal nº 12.711/2012, popularmente conhecida como a Lei das Cotas figura como o marco legal das ações afirmativas no contexto educacional. A referida lei determinava que as universidades federais, bem como as instituições federais de ensino técnico de nível médio deveriam destinar em todo processo seletivo, pelo menos a metade do quantitativo total de vagas para estudantes que cursaram, integralmente, o ensino fundamental ou médio, conforme o caso, em escolas públicas (BRASIL, 2012).
Marchesan (2018) complementa afirmando que as políticas de ações afirmativas visam assegurar a igualdade, minimizar e/ou combater a discriminação, beneficiando grupos que são objeto de preconceito sempre que há presença de entraves para a igualdade. A autora comenta, ainda, que a implementação do sistema de reserva de vagas para acesso a instituições educacionais públicas foi uma resposta tardia a um clamor social e objetivava democratizar a oferta e promover equidade no acesso e permanência dos estudantes no ensino público.
Dentre os diferentes tipos de serviços púbicos, a rede federal de ensino é a que mais se destaca dentro do paradigma da qualidade. Como resultado disso, o ingresso nas instituições federais é marcado por intensa concorrência, já que a procura é sempre maior do que a oferta, atraindo estudantes oriundos de escolas privadas e promovendo uma desigualdade no acesso, considerando que o sistema público não prepara seus alunos para todo o processo seletivo (BARBOSA, 2018).
Assim, as escolas profissionalizantes que tinham como seu público-alvo prioritário os filhos da classe trabalhadora, passaram a atender alunos oriundos das classes mais privilegiadas. A partir disso, iniciou-se uma “luta pelo acesso a essas instituições por parcelas segregadas da sociedade” (BARBOSA, 2018). É nesse contexto de intensas desigualdades que o sistema de reserva de vagas se apresenta como uma política pública que busca promover a igualdade.
A reserva de vagas, portanto, dentro do contexto das políticas públicas, coloca-se como uma ferramenta de garantia de direitos, mais especificamente, do direito à educação previsto na Constituição Federal de 1988, servindo como mecanismo para a democratização do acesso, uma vez que tenta minimizar as desigualdades educacionais (SANTOS, 2018).
2. COTAS RACIAIS NO BRASIL: LUTAS E RESISTÊNCIAS
A história da vida dos negros no pós-abolição, dentre outras áreas, no que diz respeito a educação, o Estado e o tão pouco a sociedade da época tinham interesse que os negros tivessem uma formação profissional aliada a uma educação de qualidade, por serem considerados uma população/raça inferior. Fora do sistema educacional, uma grande massa populacional de negros foi obrigada a começar a exercer, ainda em idade precoce, atividades menos favorecidas profissionalmente para sobreviver. Uma vez fora do sistema básico de ensino, foram impedidos de acessar o ensino superior (GONÇALVES; AMBAR, 2015).
Segundo Carvalho (2006, p. 91), esse é um panorama que persiste nos dias atuais, sendo poucos os negros nas universidades, e o quadro se agrava quando se examina também o número de docentes negros. As universidades foram constituídas e consolidadas como espaços institucionais brancos e não viam a mínima necessidade de reparação da discrepância sócio-racial. Isso, eventualmente, passa a ter reflexos nas oportunidades de trabalho e de consequente ascensão social.
De acordo com Corrochano (2015), na última década, o Brasil tem visto uma expansão do ensino superior público e privado, permitindo que as universidades atendam a um segmento mais diversificado da população brasileira.
Segundo Gonçalves e Ambar (2015), uma análise da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que a expansão da educação faz uma diferença profunda, principalmente no que diz respeito aos critérios raciais . Indica que a participação de negros no ensino superior triplicou na última década, de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011. Em 2011, atingiu 65,7% do total. O ambiente acadêmico geral permanece predominantemente branco. A partir III Conferência contra o racismo, xenofobia e intolerância, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, o governo brasileiro tomou medidas para reduzir a desigualdade racial entre negros e brancos no país.
Em 2002, o Congresso Nacional Brasileiro, sob pressão acordo de Durban e dos movimentos sociais antirracista, aprovou a “Lei de Cotas” enquanto instrumento de garantia do acesso ao ensino superior de pessoas relacionadas a grupos desfavorecidos, em especial afrodescendentes e índigenas. Um ano após, criou-se a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
No entanto, de acordo com Guimaraes (2008, p. 124), aqueles que defendem a meritocracia se articularam numa ampla corrente contra as cotas raciais, aspecto que esteve presente em inúmeras manchetes de revistas e jornais do país no período. Para esse grupo, todo aquele que se esforça e estuda tem a capacidade de conquistar um espaço na universidade.
Na perspectiva adotada por essa vertente, designar vagas representa a destituição da igualdade entre “todos”, como disposto na Constituição Federal Brasileira de 1988. Esse pensamento compreende que há uma efetiva igualdade entre os indivíduos, tratando-os sem distinção. Nesse sentido, quando as cotas reivindicam critérios coletivos, ao invés de individuais, passam a compreendidas negativamente, enquanto um tipo de discriminação às avessas (BATISTA; FIGUEIREDO, 2020).
As cotas são entendidas por esse grupo como uma maneira de tornar institucional a racialização nos espaços acadêmicos, resultando conflitos raciais inexistente. Nese sentido, para Fry (2003), antes da aprovação da Lei de Cotas, as universidades públicas era acessadas legalmente mediante a comprovação da capacidade de alcançarem uma determinada pontuação, por meio de uma avaliação que não levava em conta a cor e o sexo dos candidatos. Nessa perspectiva, presença reduzida de negros nas universidades públicas não teria relação com o fator do racismo da referida avaliação, denominada vestibular, mas das dificuldade de aprendizagem enfrentadas nos anos escolares.
No entendimento de Maggie e Fry (2004), a inserção de cotas pode colaborar com a consolidação de duas raças no país e a consequente divisão da nação entre negros e brancos.
Segundo Gonçalves e Ambar (2015), esses argumentos revelam como a classe dominante brasileira, baseada no discurso da meritocracia, enquanto observa as graves violações de direitos humanos, não abidica seus privilégios. As universidades públicas surgiram no país inicialmente para colhere um público proveniente de setores da classe média e da classe dominante, diferentemente do cotidiano de estudantes negros, cuja origem da maioria é proletária.
A Lei de cotas, em 1960 foi criado no Estados Unidos uma lei para tentar amenizar os problemas e principalmente as desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros. No Brasil a Universidade Federal do Rio de Janeiro, nos anos 2000, foi a primeira instituição de ensino superior pública a implementar o sistema de cotas raciais (LEMPERT, 2015).
A Lei 12.711 de 2012, chamada Lei das Cotas, define que as Instituições de Ensino Superior vinculadas ao Ministério da Educação e as instituições federais de ensino técnico de nível médio devem reservar 50% de suas vagas para as cotas. A lei não atinge as instituições de ensino estaduais ou privadas (BRASIL, 2012).
Por meio dessas ações de políticas públicas na tentativa de amenizar o problema social da desigualdade, os governos assumiram compromissos de reverter a situação de abandono e injustiça, foram criados o o Programa Universidade para Todos (PROUNI), Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Sistema de Seleção Unificada (SISU) e o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES).
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi criado pelo Presidente Fernando Henrique Cardosos, em 1998, o Programa Universidade para Todos (POUNI), foi criado em 2005, por meio da Lei 11.096, no Governo Luiz Inácio Lula da Silva. O Sistema de Seleção Unificada (SISU), sistema em que os alunos se inscrevem para concorrer com as notas obtidas no ENEM a vagas nas Universidades Federais pelo Brasil, foi implementado no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, no ano de 2010. Todas essas políticas públicas foram criadas na para que todos tivessem acesso a uma educação superior gratuita e de qualidade, como previsto na Constituição Federal de 1988: “Art. 5º - Caput. CF- “ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e residentes no País a inviolabilidade de direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
Apesar do caráter reformista do sistema de cotas, não se deve deixar de observar seu aspecto progressista, pois conscientiza e mobiliza politicamente os negros, colocando em risco a secular opressão racial no país (DOMINGUES, 2005, p. 168). Como afirma Guimarães (2003), as cotas foram, até o momento, o único recurso encontrado para responder a essa disparidade.
Silvério (2006)[2] diz que as políticas de ação afirmativa representam políticas sociais compensatórias. Quando se designa políticas sociais compensatórias, afirma-se que são intervenções do Estado em relação às necessidades da sociedade civil, as quais permitem o alcance de direitos sociais, que são cumpridos integralmente pela sociedade. As políticas sociais compensatórias compreendem programas sociais que amenizam problemas causados em grande medida por políticas preventivas anteriores ineficazes ou por conta da permanência de meios sociais exclusivos. Uma As políticas compensatórias também podem ser duração limitada, isto é, elas podem deixar de existir, especialmente com a inexistência de recursos de exclusão social, os quais provocaram a sua origem.
As políticas de ação afirmativa são um mecanismo social com aspectos ético-pedagógicas para os diversos segmentos experimentarem o respeito às diversidades, as quais podem ser étnicas, raciais, de classe, culturais, de orientação sexual ou de gênero. Esse entendimento sobre o direito à diferença considera que as políticas universalistas ou, as políticas raciais em especial, por não perceberem a questão da cor, não consegem atender à especificidades dos indivíduos ou grupos vulneráveis, resultando na continuidade da desigualdade de direitos e oportunidades.
A partir disso, surge a compreensão da necessidade de adoção de políticas compensatórias particularistas (ou focais), as quais, levando em conta direito à diferença, passam a compreender os indivíduos ou grupos enquanto sujeitos historicamente situados, que têm origem, etnia, cor, deficiências, orientação sexual, transtornos emocionais e religiões diversas. Além disso, a separação da ideia filosófica moderna, que encarava o ser humano como uma unidade homogênea, pela ideia pós-moderna dos seres humanos que possuem as especificidades relatadas.
O objetivo da ação afirmativa é superar essas contingências e promover a igualdade entra os diferentes grupos que compõem uma sociedade. Como resultado, espera-se o aperfeiçoamento da realidade dos afro-brasileiros, e que estes tenham a possibilidade de pleitearem, por exemplo, o acesso as carreiras, às promoções, à ascensão funcional, revigorado, assim, o incentivo e a capacitação profissional permanentes (SILVA, 2001, p. 11-12).
Em âmbito político, os políticas de ação afirmativa têm coomo resultado o entendimento de que o esforço para garantir uma igualdade real não deve acontecer apenas por meio da aplicação geral das mesmas normas de direito para todos. Nesse sentido, é necerssário que igualdade se concretize também com medidas específicas que atentem para as situações específicas das minorias e de indivíduos que integram segmentos em desvantagem. As políticas afirmativas fazem com que o panorama comecer a a integrar transformações positivas e eficazes.
CONCLUSÃO
As cotas raciais são requisitos numéricos para contratação, promoção, admissão ou graduação de indivíduos de um segmento racial. Geralmente, se estabelecem as cotas raciais com forma de reduzir a discriminação racial, abordando a reduzida representação e o racismo que se evidencia em relação a esses grupos ou em oposição à maioria da população desfavorecida. Além disso, as cotas têm sido historicamente utilizadas para cultivar a discriminação contra segmentos minoritários, reduzindo o acesso a instituições relevantes que garantem educação e emprego. Tais cotas podem criadas pelo poder público, com o respaldo de sanções governamentais.
A ação afirmativa é uma dos melhores meios que as instituições têm para garantir a promoção da diversidade e permitir que os excluídos do sistema tenham a chance de ascender socialmente. Nesse sentido, práticas de admissão conscientes da raça continuam sendo relevantes na conquista da equidade racial.
Por décadas, oportunidades de estudo e trabalho foram negadas a pessoas negras. Como resultado, essas permanecem amplamente pouco representadas nas instituições de primeira linha do país. A ação afirmativa combate os efeitos dessa discriminação ao permitir que as instituições sejam mais propositivas na forma como avaliam os candidatos. Nesse sentido, conclui-se que a ação afirmativa, a exemplo do sistema de cotas, garante que a sociedade ofereça oportunidades para aqueles historicamente excluídos do sistema por causa de sua raça, etnia, renda ou identidade.
Compreende-se a necessidade da realização de novos estudos sobre este tema, de tal forma que a compreensão a respeito pela sociedade seja cada vez mais ampliada, pressionando o Estado brasileiro para que aprove políticas públicas capaz de prevenir e reduzir as desigualdades sociais. Nesse sentido, é importante que sejam tratadas com maior profundidade como a discriminação racial colabora com a desigualdade e quais formas efetivas de combate a esse desafio podem ser adotadas na realidade brasileira.
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[1] A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é considerada como uma verdadeira carta de princípios, que impôs eficácia a todas as suas normas definidores de direitos e de garantias fundamentais (DIAS, 2021). Os princípios costumam ser definidos como preceitos de um sistema, servindo de base para toda estrutura normativa. Pode-se afirmar que os princípios “são como diretrizes imprescindíveis a configuração do Estado, determinando-lhe o modo e a forma de ser (BULOS, 2021).
[2] Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN – professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro – NEAB/UFSCar.
Bacharelando em Direito pela Estácio de Sá.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Ellem Cristina Marinho. Cotas raciais: um instrumento social para a promoção da igualdade e oportunidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2022, 04:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59573/cotas-raciais-um-instrumento-social-para-a-promoo-da-igualdade-e-oportunidade. Acesso em: 04 dez 2024.
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